Dona Cleone marcou a história dos movimentos sociais

Ela trabalhou intensamente pelas 'mulheres em situação de prostituição'

FONTEFolha de São Paulo, por Djamila Ribeiro
Djamila Ribeiro (Foto: Victor Affaro)

Dona Cleone Santos marcou seu nome na história dos movimentos sociais do Brasil. Foi sindicalista, lutou junto ao movimento de moradia e, em parte significativa, esteve em situação de prostituição no parque da Luz, na região central de São Paulo.

Ali viveu momentos que preferiu esquecer, mas principalmente encontrou a causa de sua vida naquela situação que experienciava junto às mulheres no “paredão”, à mercê da miserabilidade aproveitada pelos homens. Muitas das mulheres em situação de prostituição eram mães, assim como Cleone. Outras, avós, e ainda havia aquelas que eram bisavós.

Dona Cleone conseguiu sair daquela situação e retornou ao parque da Luz anos depois, quando juntou forças junto à Irmã Regina, freira da Igreja Católica, para fundar a Organização Mulheres da Luz.

A organização se destina a ajudar mulheres nessas situações. Dona Cleone e Irmã Regina começaram a entregar-lhes cestas básicas, fraldas e roupas, mas também a trabalhar junto a elas, oferecendo formação política e cursos profissionalizantes e munindo-as de instrumentais para que conseguissem encontrar uma saída dali.

Dona Cleone passou a falar publicamente sobre o tema e a demandar reuniões em gabinetes. Eu estava como secretária-adjunta de Direitos Humanos na cidade de São Paulo àquela época, foi quando a conheci. Era uma gestão de esquerda, mas, mesmo Dona Cleone sendo uma mulher de história em movimentos sociais, sua presença causava alguns incômodos.

Isso porque Dona Cleone ouvia essas mulheres e estava cada mais convicta de que a regulamentação da prostituição traria ganhos apenas aos donos das casas de prostituição e de forma nenhuma isso dialogaria com a realidade da imensa maioria das mulheres nessa situação.

Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 18.mai.23 – Aline Bispo

Ela defendia políticas de combate à pobreza vivida por essas mulheres. A regulamentação da atividade, de outro lado, era pauta de projetos de lei propostos por congressistas do campo progressista.

Voz dissonante em parte do campo, Dona Cleone seguiu seu trabalho. Ela, inclusive, se referia a esse grupo apenas como “mulheres em situação de prostituição”, conforme debatido na Pastoral da Mulher Marginalizada, em 2005.

Os estigmas são profundos e geram violências diversas nos quartos, nas ruas e, inclusive, dentro das famílias dessas mulheres. A discriminação está como um peso arrastado pelas canelas maltratadas durante a vida dessas mulheres, motivo pelo qual Dona Cleone atuava também contra a conformação por parte de muitas que acreditavam não ter direito a nada, nem direito a sonhar.

Como afirmou em uma entrevista na CartaCapital: “Para nós, é muito importante não tirarmos o direito de sonhar dessas mulheres, porque esse sonho de sair, eu acho que é o que ajuda a sobreviver dentro de uma situação de tanta violência, de tanta exclusão, invisibilidade. Então, a gente faz questão de colocar ‘em situação de prostituição’”.

Tinha muito orgulho do trabalho social que deixou raízes, formou mulheres em cursos técnicos profissionalizantes e universidades. Tinha também força para ser uma voz constante contra a violência diária entre quatro paredes cometida por homens que se entendem no direito de supremacia sobre essas mulheres. São violências ocultas, que a sociedade brasileira finge que não vê.

Naquela reunião, ela me pediu que elaborasse uma política municipal de assistência social, formação e encaminhamentos profissionais, mas voltado às mulheres em situação de prostituição. Foi logo no final da gestão, e a derrota na eleição impossibilitou que essa política fosse adiante.

Mas nos reencontramos tempos depois e fizemos algumas parcerias. Tive a honra de poder escutá-la e aprender mais sobre uma realidade difícil, mas, infelizmente, muitas vezes romantizada e tratada de forma midiática. Ouvi sua voz doce, recebi seu abraço carinhoso.

Neste obituário, fica registrada minha imensa admiração e a certeza de seu retorno festejado aos ancestrais. Dona Cleone tem sua morada nos corações das muitas mulheres que nela se inspiram e que seguem em frente pela luta por dignidade.

Dona Cleone, presente!

-+=
Sair da versão mobile