Donas de si: mulheres negras contra o patriarcalismo na Bahia (1876-1883)

FONTEEnviado para o Portal Geledés, por Karine Teixeira Damasceno
Karine Teixeira Damasceno é Pós-Doutoranda em História Social da Cultura – Programa de Pós-Graduação em História da PUC-Rio; Doutora em História Social pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Neste texto, convido leitoras e leitores a recuar um pouco no tempo. Mais precisamente, para um momento às vésperas da Abolição na Freguesia de Humildes, em Feira de Santana, a fim de conhecer fragmentos da trajetória de uma dentre várias mulheres negras que, nessas últimas décadas da escravidão, lutou incansavelmente por sua liberdade na Província da Bahia. Trata-se da escravizada Joanna, de cor parda, 22 anos, solteira, lavradora e capaz de qualquer trabalho. Em 1876, por meio de uma petição à justiça municipal, Joanna afirmou que sua falecida ex-senhora, dona Anna Francisca de Jesus, doou-lhe em 29 de março de 1859 – isto é, quando Joanna tinha 5 anos – à sua sobrinha, dona Maria Joaquina de São José, pedindo a mesma para alforriá-la. Mas, como constatei em minhas pesquisas e também veremos aqui, ser bem sucedida na negociação da carta de alforria com a senhora ou senhor não era garantia da concretização da liberdade legal.

Além de apresentar sua queixa no mencionado documento, como era de praxe, Joanna solicitou ainda que fosse nomeado um curador para defendê-la e que fosse colocada em um depósito durante o processo judicial. É importante destacar que o curador era um personagem fundamental em uma ação de liberdade, pois as cativas e cativos não tinham o direito de falar por si judicialmente e o curador – bacharel em direito ou rábula – era quem teria a responsabilidade de representar seus interesses diante da justiça. Já o depósito tinha como objetivo possibilitar que a autora ou autor desse tipo de ação judicial pudesse defender o direito que acreditava ter, de serem livres, sem correr o risco de sofrer qualquer assédio do senhor, ou suposto senhor. Por isso, nossa protagonista foi recolhida a um depositário público, onde deveria permanecer enquanto o processo estivesse em andamento. 

Na ocasião da doação de Joanna, de acordo com a versão apresentada pelo curador e confirmada por testemunhas, dona Anna Francisca de Jesus pediu para informar na escritura, passada em nota pelo escrivão de paz daquela freguesia – Francisco Xisto de São Francisco –, que por morte da sobrinha a escravizada deveria ficar livre. No entanto, por engano ou má vontade, o escrivão não incluiu esta condição. Então, insatisfeita, a proprietária pediu que fosse passada outra escritura. Mas ele se recusou, convencendo-a de que seu desejo seria satisfeito se a sobrinha (dona Maria Joaquina), enquanto nova proprietária da cativa, mandasse passar uma carta de liberdade alforriando-a com a mencionada condição. É importante atentar para o reaparecimento deste escrivão no desfecho do caso, que veremos mais à frente. Então, conforme prometido à tia, dona Maria Joaquina de São José concedeu a Joanna uma carta de alforria gratuita, com a condição de acompanhá-la até o fim da vida.

Entretanto, como depois disso dona Maria Joaquina casou-se com o senhor Innocencio José de Oliveira – provavelmente, um pequeno proprietário, algo comum na região –, e o marido a coagiu a voltar atrás de sua decisão e inutilizar este primeiro documento de alforria. Mandou escrever uma segunda carta, com a condição de acompanhar ambos até o fim da vida, para somente depois disso poder gozar de sua liberdade. Segundo seu curador, tanto a primeira carta quanto a segunda ficaram sobre a posse do coronel Antonio Lopes de Oliveira Torres, o escrivão e também guardião do documento. Ao ser ouvido, este declarou que, passado um tempo, recebeu a visita do réu em companhia de seu cunhado (irmão da esposa), Francisco Antonio de Oliveira, também testemunha da existência da carta de alforria, solicitando em nome da esposa que esta lhe fosse entregue. Por não ver nenhum problema no pedido, entregou-lhe o documento. Segundo a testemunha, soube depois de um tempo que foi o marido quem decidiu pedir a carta e sem o consentimento da esposa, a inutilizou. Como já estava doente, ao ver o que o marido havia feito, dona Maria Joaquina de São José acabou por falecer – talvez até de desgosto.

Dentre as poucas informações que consegui saber sobre a vida de Joanna, por meio de seu registro de matrícula, foi possível constatar que ela recebeu os primeiros ensinamentos para lutar pela liberdade legal de sua mãe, Estevan – uma mulher liberta. Provavelmente, Estevan também foi uma escravizada pertencente à Anna Francisca de Jesus e, assim como outras mulheres negras da mesma condição, negociou a própria liberdade e a da filha pequena. Embora não tenha podido obter maiores informações sobre sua vida, é crível que Estevan estivesse por ali, invisível aos olhos da maioria, confabulando para libertar a filha do cativeiro. Dessa vez, em âmbito judicial.

Ao vasculhar o passado de mulheres negras – escravizadas, libertas e livres – mais de uma vez na documentação, pude perceber ainda a existência de duelos entre mulheres proprietárias e o poder patriarcal, o qual se explicitava através da prática de alguns homens como de Innocencio José de Oliveira. Ao se apressar para cumprir o desejo da tia antes de casar, dona Maria Joaquina de São José já tinha em mente que não poderia mais dispor de seus bens depois de casada. Em seu novo estado civil, ela estaria legalmente submetida à vontade do futuro marido, o qual poderia não aceitar libertar Joanna conforme a promessa feita à tia. Dito e feito. Após o casamento, Innocencio José de Oliveira não se deixou deter pelas decisões anteriores ao matrimônio e tentou, de todas as maneiras, fazer valer sua vontade. Usando do poder e autoridade que a sociedade patriarcal lhe conferia enquanto homem, persuadiu a esposa a fazer o que ele queria. No entanto, ele enfrentou alguma resistência por parte de dona Maria Joaquina, visto que ela teria destruído a segunda carta de liberdade sem o seu consentimento, conforme esta versão dos fatos.

No depoimento sobre o ocorrido, o já citado Antonio Lopes de Oliveira Torres, por exemplo, disse que dona Maria Joaquina de São José o procurou depois do casamento. Chorando, ela pediu a carta de alforria com a justificativa de que seu marido a havia ameaçado, afirmando que, caso ela não lhe entregasse o documento, ele expulsaria Joanna de sua casa, pois não estava disposto a sustentar “negras forras”. Para fazer valer seu interesse (de poder contar também com os serviços da cativa na velhice), Innocencio José de Oliveira resolveu colocar a esposa e a escravizada em seus devidos lugares. A primeira, senhora casada e provavelmente branca, no lugar de submissa ao marido; enquanto a segunda deveria aceitar o de triplamente subalternizada, pois além de ser mulher também era preta e escravizada. Dessa maneira, demonstrou para ambas que era ele quem realmente mandava.

O relato sugere ainda que na concepção do marido, a alforria condicional já colocava Joanna na condição de “forra” e que sustentá-la o onerava. Mas na prática, ela – provavelmente uma cativa doméstica – continuaria exercendo as mesmas atividades anteriores à escrita da carta de alforria. No entanto, como o espaço da casa e a realização do trabalho doméstico eram considerados assuntos de “mulher”, não é difícil que ele tenha avaliado e concluído que, pessoalmente, não tinha nada a ganhar com a condição de liberdade imposta a Joanna. É preciso observar também que sua fala estava bem conectada ao universo cultural da segunda metade do século XIX, em que eram formuladas e compartilhadas socialmente diversas concepções racistas e sexistas. Desse modo, no ponto de vista de Innocencio Oliveira, embora Joanna fosse considerada uma desqualificada por ser negra, ela só seria aceita em sua casa se continuasse ocupando a única posição aceitável para ela: a de escravizada.Obviamente, nenhuma das duas cartas foi apresentada à justiça. Embora todas as testemunhas tenham afirmado ter pelo menos ouvido falar delas, e algumas tenham afirmado ter testemunhado a escrita de ambas, o fato do curador não ter apresentado à escritura de doação em que foi baseada a ação judicial foi determinante para que o juiz de direito da Comarca da cidade de Feira de Santana julgasse a ação de liberdade nula, determinando Joanna enquanto propriedade do viúvo Innocencio José de Oliveira. De acordo com a Lei de 28 de setembro de 1871, quando a sentença fosse contrária à liberdade haveria apelações. Foi o que aconteceu nesse caso envolvendo Joanna.

Ação de Liberdade, com autoria de Joanna de Tal (escravizada) contra o réu Inocêncio José de Oliveira. Tribunal de Relação da Bahia/Juízo de Direito, Feira de Santana-BA, 1876. Fonte: APEB – Sessão Judiciária: Ações de Liberdade, 56/1997/05, fls. 21.

Entre a sentença em primeira instância e o julgamento da segunda, isto é, pelo Tribunal de Relação da Bahia, localizado em Salvador (capital da Província), aconteceram dois fatos novos. Primeiro, a denúncia feita contra o escrivão Francisco Xisto de São Francisco foi aceita pela justiça, o que resultou na punição deste funcionário público, recebendo como pena o afastamento de seu cargo e tendo ainda que pagar multa pelo crime, conforme previsto no Código Penal de 1830. O outro fato diz respeito ao réu, Innocencio José de Oliveira: apesar de todos os esforços para manter seu domínio sobre a libertanda (Joanna), ele foi a óbito antes do desfecho do processo. Em vista disso, o procurador Joaquim Gomes de Azevedo e os demais herdeiros – a saber: Augusto Lucio de Oliveira, Marinho G. de Oliveira e Umbelina Maria de São José –, de quem o primeiro também era tutor nato, deram continuidade à defesa do direito legal sobre a Joanna, por entenderem que se tratava de uma parte do patrimônio da família deixado por Innocencio José de Oliveira.

Depois de tantos embargos e desembargos, mais uma libertanda venceu o poder senhorial nos tribunais e conquistou o direito de ser dona de sua própria vida. Joanna foi declarada liberta pelo 1° Procurador Desembargador do Tribunal de Relação da Bahia, Francellino Guimarães, em 11 de dezembro de 1883. Seu caso teve um desfecho feliz. Isso tudo foi possível devido sua insubordinação ao poder patriarcal e por ter tido ciência que tinha certos direitos, enfrentando assim os homens da família das ex-senhoras e vencendo-os na justiça para, agora, ser dona de si! Então, os esforços de sua mãe em negociar sua liberdade desde pequena, bem como o seu próprio investimento nesse processo, não foram inúteis e resultaram no registro de seu drama na busca pela garantia da liberdade.

É importante destacar que várias pessoas libertas viam a sua liberdade escapar por entre os dedos, mesmo depois de anos negociando a carta de alforria. E provavelmente, a maior parte dessas histórias nunca serão conhecidas. Isso torna ainda mais preciosos esses vestígios encontrados sobre o entrelaçamento da vida de mulheres, como Joanna e tantas outras, com a justiça, especialmente na posição de autoras de ações por liberdade. Embora mulheres e homens escravizados acionassem cada vez mais a justiça, contestando o domínio senhorial, nem sempre as sentenças eram favoráveis à liberdade, como aconteceu no caso de Joanna num primeiro momento. No entanto, do ponto de vista histórico, todos esses casos noticiam o potencial demolidor que cada uma dessas personagens tinha ao acionar a justiça, a qual só arbitrava em torno de leis que reforçavam, até pouco tempo, a dominação do Estado. Isto é, o atrevimento dessas pessoas contribuiu para que as gerações que viessem depois delas pudessem vislumbrar um novo tempo, de liberdade e maior autonomia.

Finalizo este texto com a esperança de que os fragmentos da trajetória de Joanna, trazidos aqui para bem exemplificar a luta de mulheres negras contra a escravização e o patriarcalismo na sociedade oitocentista, possam inspirar a luta por direitos de muitas outras mulheres negras em nosso tempo, bem como a luta daquelas que estão por vir em gerações futuras.

Assista ao vídeo da historiadora Karine Teixeira Damasceno no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): 

Ensino Fundamental: EF08HI15 (8º Ano: Identificar e analisar o equilíbrio das forças e os sujeitos envolvidos nas disputas políticas durante o Primeiro e o Segundo Reinado; (EF08HI19) Formular questionamentos sobre o legado da escravidão nas Américas, com base na seleção e consulta de fontes de diferentes naturezas; (EF09HI26) – 9° Ano:  Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas.

Ensino médio: (EM13CHS601) – Identificar e analisar as demandas e os protagonismos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das populações afrodescendentes (incluindo as quilombolas) no Brasil contemporâneo considerando a história das Américas e o contexto de exclusão e inclusão precária desses grupos na ordem social e econômica atual, promovendo ações para a redução das desigualdades étnico-raciais no país.

-+=
Sair da versão mobile