Doze anos de escravidão: O Filme e as Mulheres no filme – Por: Heloisa Pires Lima

FONTEPor Eloisa Pires, Enviado para o Portal Geledés
(Foto: Reprodução/ 12 Anos de Escravidão)

Toda a autobiografia sequência os acontecimentos não propriamente como ocorreram. O que restou deles ou como foram percebidos é o que aparece na reconstrução. O filme -12 anos de escravidão – sob a direção do londrino Steve McQueen consegue explorar muito bem essa dinâmica. O roteiro adapta a autobiografia (1853) de Solomon Northup- em sua existência de homem nascido livre ao norte e escravizado ao sul dos Estados Unidos. A trama abre janelas para a História. Ali está o algodão como fronteira entre distritos juridicamente opostos, a religião protestanteem sua saga de contradições e os empreiteiros da corrente que conduzirá a emancipação (1863). Os fatos conhecidos, no entanto, são apenas pano de fundo para o acerto. E digo já do acerto, demonstrado na audiência que a fita vem recebendo, destacando a comunicação que troca o racional pelo sensível. A arte de conduzir quem está fora para dentro da cena se ocupa derecolher detalhes no provável cenário histórico. Assim é o chicote posicionado em segundo plano para colocar em primeiro, o som que seu movimento produz. A câmara aprofunda o tempo do corte na pele até ferir a plateia. O violino, no entanto, segue ordinário em sua sonoridade periférica. O ruído da corda arrebentando é o que será realçado e dará continuidade ao desfecho fatal aplicado ao instrumento. A metáfora bem executada para reviver as dimensões do cativeiro recolhe fragmentos de uma memória que aciona os sentidos humanos para narrar os fatosbaseados no registro Oitocentista. E é assim que arrasta o público para a experiência. Quem não sentiu o bico da pena afinada de um galho de árvore que insiste em não absorver a escrita? Este “nós” surge numa zona de penumbra entre o claro e o escuro, o grito e o suspender da respiração, o prazer e a desgraça, o distante em sua aproximação. A narrativa vai perfilando imagens sensoriais capazes de expressar angústia como a sequência dos filetes de brasa do papel queimando noturnamente até sumirem na escuridão. Aliás, não tão somente papel e sim uma carta decisiva.

Corre história, corre memória, corre
Sabe aquela sensação (é apenas uma sensação) de observar alguém vindo em sua direção ? Na tela, o movimento de um rapaz que chega há poucos passos de Solomon é interrompido por quem dele se mostra proprietário. Sem deixar de notar o sujeito escravizado e sem alterar a conduta capitalista, a situação na loja formula uma indagação sobre a inacabada lembrança: o que o rapaz poderia querer com ele, o que quereria lhe dizer?Esse tipo de relações pontua a diferença entre os homens negros perante a materialidade do escravismo. Mas, que enfatiza o relacionamento entre eles. Porém, não há respingo algum de maniqueísmo nessa abordagem. O protagonista não discute a escravidão para além da sua condição de livre tornado escravo. Ele não é o herói do coletivo nesse relato. Somente após a película encerrar, ficamos sabendo de seu envolvimento com a causa que proclamará a emancipação no país. Ela não deixa de aparecer, mas fica do lado de fora.

Todavia, o personagem também não é passivo. As diversas interlocuções vão arquitetando a dimensão humana lhe conferida e o dinamismo de como ele lida com sua vivência paradoxal. O traço não é caricatural. Solomontem a fraqueza em não reagir e a coragem de reagir, encontra o momento certo e o errado de confiar e contar segredos, toma a decisão de escapar e a opção de permanecer, possui habilidades como a de elaborar argumentos para se salvar e internaliza a servidão. E ele chicoteia Patsey, a heroínavivida por Lupita Nyong´o enquanto a plateia torce para ele não fazê-lo. A decisão de chicotear aparece mais forte e encobre a de não chicotearquando ele usa o discurso religioso julgando amedrontar o adversário. Estaé uma das sequências para perceber o quanto o filme privilegia as mulheres.

Doze Mulheres numa só
O esplendor da narrativa sensorial? O sabonete nas mãos da mocinha negra. Desta vez, o olfato alude os contrastes daquele ambiente. Nada é mais feminino que o perfume ou a visão de Patsey confeccionando bonecas de palha no milharal. Mas o deleite apenas estrutura a passagem para as tensões que seguem explorando contrapontos. E ela aparece projetada na garotinha sob as garras de seu repulsivo agressor ou na idosa que enterra acomunidade ou no automatismo daquelas que perderam a voz e nainconformada que chora os filhos. Esta última avança de um segundo plano, acentua o choro que vai aumentando à exaustão para fazer compreender o tamanho de sua intensidade. E a obra não perdoa as mulheres brancas. O roteiro é implacável ao escancarar a crueldade delas.Quem não sentiu a dor no rosto atingido pelo objeto atirado? A regalia branca avilta, deprecia, menospreza, humilha, sangra, cega e mata. Essa assoberba na tortura contra mulheres negras se conserva em novos formatos nos dias atuais quando são ofendidas com a conivência de pérfidos homens.

E esse tomar partido pelo feminino negro é um aspecto da obra queultrapassa a história particular das bases escravagistas delimitadas numa geografia e alcança dilemas mais universais. E o principal nesse escopo de visão é facilitar perceber uma memória cativa. Pois, todos nós vivemos o trauma de uma história inimaginável se não fosse tão permanentemente real. Ela continua pulsando, mas, cercada. Pela via racional, pode estarapaziguada por qualquer clichê discursivo. Ignorar o legado é tapar olhos, nariz e ouvidos enquanto se atravessa estradas onde ocorrem enforcamentos, se senta em mesas para o chá e os doces em meio àlatifúndios de violência. Os séculos seguiram e, aparentemente tudo mudou. Mas o argumento do filme é pessimista, nós ainda não mudamos.Somos os mesmos dentro e fora da tela.

E faz sentido para o Brasil?
Se a arte tem esse poder de revelar o imperceptível, interessa pensar o filmeolhando o Brasil. O foco sobre um breve episódio em pleno 2014 quando já está aprovado o Estatuto da Igualdade Racial, talvez possa ajudar a visualizar a situação local. Uma empresa, a Rede Globo de Televisão,constrange publicamente uma profissional negra e nada acontece. Esta é uma história de muitos requintes e envolve um dos ícones da nação, o carnaval, marca esta, absorvida na transmissão dos desfiles da Cidade Maravilhosa tanto interna quanto para o exterior. Uma modelo éselecionada para o logotipo Globeleza, principal marketing do evento ocasional. A mais recente ficará associada ao ultraje dirigido a uma mulher negra por ela ser negra. A despeito de muitas nuanças já contidas na agressividade cultural postas nas “brincadeiras” a que submetem as candidatas, o voto popular elegeu uma jovem cujo padrão fenotípico é apele bem escura e cabelos bem crespos. Nayara Justino, entretanto, foi logoretirada da vinheta. A emissora veiculou como justificativa para esconder a moça, o fato de ter recebido críticas na veiculação, um conjunto de comentários racistas surgidos após o resultado. Sem entrar nos meandros debastidores e menos ainda nas crenças e valores envolvendo o símbolo, o fato é que a empresa de forma evidente compactuou com o racismo e expôs, abertamente, a profissional ao constrangimento. Qual é a diferença entre o caso e os antigos anúncios de “Boa Aparência”? Insulto acompanhado da proibição dela dar entrevistas. Mas, o episódio parece menor e a violência segue imputável.

Voltando ao filme americano, há para reparo como aquela sociedade se percebe ao difundir seus ícones. Por meio de- 12Anos de Escravidão- umadiferença é notória entre a América do Norte da época e sociedade brasileira de nossos dias. O critério no diferencial? A Lei. Para a plateia, lá está o cumprimento da Legislação sob a bandeira dos direitos civis demonstrando o fortalecimento do Estado de Direito e a democracia como alto valor. Steve McQueen focaliza as botas do agente da Lei evidenciando o Estado que recupera a cidadania negra sem distingui-la do direito de quem a conteste. Nesta representação todas as tramoias ilegais envolvendo o caso tem o limite na legislação dos distritos.

Quem sabe o enredo sensorial auxilie cotejar a perspectiva das relações raciais como eixo central para o nosso devir. Estamos, enquanto sociedade, no limiar entre nos mantermos vivos ou nos deixarmos morrer nesse confronto. Assim como a corda no pescoço que faz a garganta de Solomon(e a nossa) salivar e grunhir com o escasso respiro. A duração do esforço de sobreviver depende do quanto ele aguenta erguendo a ponta dos dedos do pé na lama. O time é exato para sentirmos o drama histórico. A razão é mais lenta que as sensações. Por isso, se torna um arsenal para revisitar próprias histórias, desmanchando ideias cristalizadas. A sensibilização que esvazia pode vir a ser preenchida pela novidade. E, sejamos otimistas. A premissa sensorial já tocou o circuito do Oscar. No Brasil a película vem provocando e produzindo artigos. Alguns demonstram a ausência das histórias que partam de repertórios associados à população negra nas nossas videotecas. Aliás, facilmente explicável, pois qualquer expressão artística que traga o ponto de vista existencial negro logo passa a ser classificado (e evitada) como politicamente correto e, em seguida, lhe aplicam a etiqueta que a desqualifica para qualquer produtor (lembra? O incorreto se passava naquela época em que se podia constranger impunemente). Que venham outros ângulos a somar os inúmeros aspectos que a obra possa sugerir. Que a sobrevida de 12 Anos de Escravidão,estimule todos os sentidos. Reconheçamos sua importância no XIX, no XXI e para qualquer lugar.

 

 

 

 

 

 


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