Duas histórias, faça sua escolha

Detalhamento dos óbitos

No caderno dedicado a sua reforma gráfica, no último domingo (14 de março de 2010), o jornal “O Estado de S. Paulo” destinou uma página aos seus 135 anos de “história e credibilidade”. Fomos assim informados de que a primeira edição do jornal, que se chamava então “A Província de São Paulo”, foi lançada em 4 de janeiro de 1875 e “foi impressa à luz de velas de sebo, numa máquina comprada de segunda mão movida pelos músculos de seis negros libertos”.

Essa meia dúzia de negros anônimos teve oportunidade de utilizar bastante seus músculos para imprimir as idéias de “um grupo de republicanos”, uma vez que, segundo informa a reportagem do Estadão, “foi necessária quase uma noite de trabalho”.

Posso ainda ver, como numa pintura, o grupo de “idealistas” fumando, saboreando o bom café paulista, conversando sobre suas convicções republicanas, de que conhecemos bem o calibre, enquanto aguardam ansiosamente o resultado da agitação daqueles seis torços negros talvez despidos à luz das velas de sebo.

A julgar pelas fotos divulgadas, no mesmo caderno, dos atuais colunistas e articulistas e de técnicos envolvidos nos bastidores com a reforma do jornal e do site, ninguém precisa mais, passados 135 anos, de velas de sebo e trabalhadores negros para botar notícia na rua. Não duvido de que até mesmo no manejo das impressoras se reproduza a quase exclusividade branca que vemos nas imagens do caderno especial de domingo último. Tudo agora muda profundamente nas mídias do Estadão, segundo anunciam, exceto a cor dos profissionais que lá trabalham.

Em 1876, em Recife, um grupo de libertos e livres trabalhou duro, com os músculos e com a inteligência, para botar na rua o jornal “O Homem”. Trabalhavam em benefício de idéias que nunca seriam assimiladas pelos republicanos paulistas ou de qualquer outro estado brasileiro. Amparavam-se numa brecha da Constituição de 1824, que afirmava que todo cidadão podia ser admitido nos cargos públicos “sem outra diferença que não a de seus talentos e virtudes”. O título da publicação era uma radical afirmação da humanidade e dos direitos humanos dos “homens de cor”. Ver Leonardo Dantas da Silva, A Imprensa e a Abolição (fac-símiles de jornais e revistas abolicionistas editados em Pernambuco ). Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 1988.

Demitidos de seus cargos, os ‘homens de cor’ reagem, denunciam a violação da Constituição e apelam para a única alternativa que vislumbram possível: “À vista de tanto atrevimento, à vista de um desafio tão provocador, o que cumpre aos homens de cor fazer? É evidente que a não quererem ser afinal reduzidos à mísera sorte dos hilotas da antiga Grécia, ou dos párias da Índia que não gozam de nenhuma consideração social; a não quererem legar a seus filhos tão mísera condição, importa que quanto antes se associem e reúnam, pois que da união resulta a força, para o fim de vingar seus direitos de homens e de cidadãos…”

É esta uma pequena mostra do que perdem as faculdades de Comunicação que, regra geral, continuam ignorando as contribuições da imprensa negra. Sabemos bem a quais interesses servem essas lacunas curriculares. O que se transmite (e o que se apaga ou distorce) nas faculdades é suporte para as práticas discriminatórias nas empresas jornalísticas. Entre a primeira edição da “Província” e a primeira edição de “O Homem”, o intervalo é de cerca de um ano (13 de janeiro de 1876). De um lado, a metonímia redutora (“músculos”) com que se pretende amesquinhar a participação negra na história da imprensa. Trabalhadores braçais utilizados na divulgação de ideais supostamente universais. De outro, seres humanos lutando para que fossem respeitados seus direitos. O que fazer? Eles responderam, e sua resposta permanece válida também para os dias de hoje: se organizar e lutar, por nosso presente e nosso futuro.

Fonte: Írohín

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