A compulsão eleitoral moveu o prefeito do Rio de Janeiro a tornar pública, em rede social, o plano de internar compulsoriamente “usuários de drogas” (sic) em situação de rua. A própria escolha de palavras para identificar os alvos da política pública encomendada ao secretário municipal de Saúde, Daniel Soranz, revela um Eduardo Paes mais preocupado com segurança pública do que com assistência a dependentes químicos em vulnerabilidade extrema. É receita de pré-campanha eleitoral, com pitadas de moralismo e higienismo.
No momento em que São Paulo dispersa a tiro, porrada e bomba a cena de consumo de crack forjada há mais de década, e o Supremo Tribunal Federal é emparedado por parlamentares por, entre outras agendas, julgar a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, o prefeito carioca jogou fora a chance de engajar a sociedade num debate sério sobre saúde pública. Em verdade, fez aceno à porção do eleitorado — conservador, por óbvio — que adora solução simplória para problema complexo ou, nas palavras de Lúcia Xavier, fundadora da ONG Criola, “prefere controle a cuidado”.
Na rede X, antigo Twitter, o prefeito escreveu:
— Já determinei ao Secretário @danielsoranz que prepare proposta para que possamos implantar no Rio a internação compulsória de usuários de drogas. Não é mais admissível que diferentes áreas de nossa cidade fiquem com pessoas nas ruas que não aceitam qualquer tipo de acolhimento e que, mesmo abordadas em diferentes oportunidades pelas equipes da prefeitura e autoridades policiais, acabem cometendo crimes.
Precisou de pouco mais de 400 caracteres para propor medida higienista e criminalizar dependentes químicos. Esqueceu que nem todo adicto comete crime; e que não faltam criminosos caretas.
O secretário de Saúde atenuou a determinação do chefe. Sugeriu que a política pública alcançaria 130 dependentes químicos com indicação clínica para internação de curta permanência. Uma bem-vinda adequação da bravata política à legislação. A publicação de Paes recebeu críticas imediatas de especialistas do calibre de Drauzio Varella, médico, e padre Júlio Lancellotti, que assiste pessoas em situação de rua. Ontem à noite, foi a vez de a Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal publicarem nota técnica conjunta apontando a inconstitucionalidade da internação compulsória de usuários de drogas.
No documento de 14 páginas, o defensor público Thales Arcoverde Treiger e o procurador da República Julio José Araujo Junior alertam sobre o risco de violação aos direitos constitucionais à liberdade e à saúde. De um lado, a internação compulsória é privação de liberdade sob pretexto de tratamento de saúde. De outro, saúde é direito, não obrigação imposta aos cidadãos.
— O Estado não pode continuar adotando estratégias de higienismo social, nem pode seguir reforçando mecanismos violadores de direitos humanos, a pretexto de promover tratamento em saúde mental. Medidas dessa ordem violam tanto a ordem legal e constitucional interna quanto tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é parte — diz a nota técnica.
A internação compulsória é admitida em caso de cometimento de delito ou por determinação médica, conforme entendimento balizado por leis federal e municipal, bem como Termo de Ajustamento de Conduta celebrado pelo governo fluminense com o MP-RJ. Trata-se de medida excepcional e de caráter individual. Para os autores, sob pena de violação generalizada de direitos humanos, não pode ser aplicada como política pública maciça de cunho higienista.
A Resolução 40/2020 do Conselho Nacional de Direitos Humanos proíbe o uso do sistema de assistência social como instrumento de limpeza social. O poder público não está autorizado a remover pessoas em situação de rua em razão de populares e comerciantes incomodados. Está escrito.
A vulnerabilidade social é crescente no Rio e no país há quase uma década, em decorrência de recessão, precarização do mercado de trabalho, queda de renda, pandemia. A população em situação de rua aumentou nas metrópoles brasileiras e, com ela, o número de dependentes químicos em abandono. Às autoridades de saúde cabe oferecer assistência adequada, na forma de tratamento ambulatorial, medidas de redução de danos e, eventualmente, internação por tempo determinado. A rede de assistência social promove acolhimento, reativação de laços familiares, comunitários, reinserção no mercado de trabalho. O enfrentamento à violência é papel da política de segurança pública ancorada mais em inteligência, menos em confronto. Confinar usuários de drogas não reduz crime, apenas altera cenas.