“É considerado normal 100 mil pessoas morrerem e a maioria ser pobre, negra, do Nordeste, da periferia, do Norte, indígena”

Em casa, Emanuelle Góes analisa dados sobre as disparidades raciais na pandemia Arquivo pessoal

Depoimento concedido a Maria Guimarães

Trabalho com racismo na saúde: o acesso a serviços e as desigualdades entre pessoas negras e brancas. O foco da minha pesquisa são as mulheres negras, em comparação às brancas. 

No doutorado trabalhei com direitos reprodutivos, o foco era como as mulheres de diferentes grupos raciais são atendidas quando estão em situação de abortamento. Verifiquei que as mulheres negras tinham mais dificuldade e também medo de procurar atendimento, por receio de serem maltratadas. Esse medo se confirma, porque realmente elas sofrem barreiras institucionais, como aguardar mais por uma vaga. Tudo o que já é naturalmente difícil para as mulheres no processo de aborto, que também envolve estigma, se potencializa para as mulheres negras por causa do racismo institucional. 

No ano passado iniciei um pós-doutorado para estudar desigualdades raciais e mortalidade por câncer de colo de útero e de mama no Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde (Cidacs/Fiocruz). Meu universo é a coorte de 100 milhões de brasileiras e brasileiros, que são as bases de dados vinculadas de pessoas registradas no cadastro único com os dados dos sistemas de informações em saúde. É a população mais pobre do país. Mesmo assim, nos dados iniciais já observamos diferenças entre os grupos raciais. 

A análise dos dados ainda está bem inicial, mas vejo, sobretudo a partir de estudos anteriores, que as mulheres negras do Nordeste e as indígenas no Norte do país são as que mais morrem de câncer de colo de útero. É uma doença infecciosa relacionada à falta de acesso à prevenção, com a realização do exame de Papanicolau: se a pessoa identifica e trata o HPV [papilomavírus humano], não adoece. Por isso é associada à pobreza e às desigualdades, e permanece em evidência no Brasil principalmente entre as mulheres negras e indígenas, nas regiões Norte e Nordeste. 

Já o câncer de mama tem relação com comportamentos modificáveis e externos como alimentação, exercício e uso de hormônios. Tudo isso torna mais vulnerável o grupo que está na margem, mas ainda não analisei os dados detidamente para poder falar. 

Faço parte do Elsa-Brasil [Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto], que é uma coorte que acompanha funcionários e professores de universidades federais do Brasil. Observamos desigualdade nesse estrato mesmo sendo um grupo homogêneo em termos socioeconômicos. Nos dois extremos, vemos que a questão racial é determinante no acesso à saúde. Nos Estados Unidos a epidemiologista Nancy Krieger, da Universidade Harvard, também analisa aspectos raciais do câncer de mama. Ela conclui que a disparidade no acesso a serviços de saúde é o que faz diferença: a detecção acontece mais tardiamente para as mulheres negras.

Com a pandemia, tenho trabalhado em casa. No início quase toda a equipe, que tem maioria de epidemiologistas, reduziu suas linhas de pesquisa para dedicar-se à pandemia. Foi criada a Rede CoVida, que é uma rede de solidariedade e informação em ciência. Produzimos notas técnicas e material ilustrativo para a conscientização do público. 

No meu caso, tenho feito uma reflexão sobre a desigualdade nos impactos da pandemia – da doença e das medidas – para grupos raciais, a população negra em particular. Para as mulheres, há o aumento na violência doméstica. O uso de máscara na rua é uma questão para os homens negros, porque a polícia faz filtragem racial, aborda mais, reflexo do racismo institucional. Escrevi, junto com as epidemiologistas Dandara Ramos e Andrêa Ferreira, da Rede CoVida, sobre como os homens negros enfrentam o dilema de ser abordados pela polícia por usarem máscara ou pegar Covid-19 por não as usarem. Eles estão mais no mercado informal, expostos à violência na rua. Essa análise é bem interessante para mostrar que não só a doença, mas as medidas também têm aprofundado a violência ligada ao racismo. Nos Estados Unidos era indicado que os homens negros usassem máscara cirúrgica, porque causava menos reação da polícia do que outros tipos de máscara.

A minha dedicação é no sentido de olhar as desigualdades raciais e refletir sobre isso. Sabemos que isolamento e uso de máscara são as medidas corretas. O que precisamos resolver é a violência, combatendo o racismo institucional e discutindo segurança pública, assim como a violência doméstica. 

Os dados do Ministério da Saúde têm mostrado que as pessoas brancas adoecem mais e são mais internadas, enquanto as negras têm o maior número de óbitos. A população negra não tem o processo de se internar e se recuperar, ela morre direto porque acessa o serviço de saúde mais tardiamente, no estágio adiantado da doença. Comorbidades como diabetes e hipertensão também têm prevalência maior nesses grupos. No Brasil ainda entram na conta outras doenças, como tuberculose, sífilis e HIV. Em presídios a tuberculose é uma questão do cotidiano e também deveria ser considerada entre as comorbidades Covid-19. 

Esses grupos em situação de vulnerabilidade adoecem mais porque têm condições de vida mais precárias e estão distantes dos serviços de saúde de média e alta complexidade, que em geral estão no centro das cidades. Podemos observar como é atendida a pessoa que chega no serviço de saúde: se o protocolo não for seguido da mesma maneira para grupos raciais, é porque houve discriminação. Acabo de baixar esses dados do DataSus para analisar o número de diagnósticos e de testes, comorbidades, como o paciente foi encaminhado no serviço de saúde, entre outros aspectos. É considerado normal 100 mil pessoas morrerem e a maioria ser pobre, negra, do Nordeste, da periferia, do Norte, indígena – essas populações sempre estiveram à margem. 

No trabalho em casa, ainda não consegui organizar meu tempo. Aceito tudo quanto é convite para escrever e participar de eventos virtuais. Agora voltaram as reuniões e fico com mil ideias para pesquisa. Meu companheiro também é pesquisador, geógrafo, então às vezes discutimos os dados juntos. Ainda me sinto em um furacão de atividades. Sempre digo que daqui a pouco vai melhorar, talvez em setembro. 

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

 

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