E quem se responsabiliza pelo abandono da mãe?

FOTO: Daisy Serena

E mais: se a mulher escondeu a gravidez por medo de ser demitida é porque essa conversa já aconteceu com os patrões

Por Djamila Ribeiro Do Carta Capital

FOTO: Daisy Serena

A notícia de que uma mulher abandonou um recém-nascido no bairro de Higienópolis, em São Paulo, ganhou repercussão. Câmeras de segurança próximas ao local do abandono a  flagraram deixando a criança dentro de uma sacola.

No dia 7 de outubro, a mulher foi identificada e presa por policiais civis. As imagens da mulher sendo levada pela polícia são de cortar o coração.

Logo, choveram comentários nas redes sociais xingando a mulher de desnaturada, criminosa, quase assassina. Policiais posaram para fotos com o bebê que foi encaminhado para um abrigo.

Não quero de forma alguma dizer que concordo com abandono de crianças. Não concordo, mas vamos pensar sob outras perspectivas.

A mulher de 37 anos, que é empregada doméstica e não foi identificada, em depoimento à polícia disse ter tido a criança sozinha no quarto de empregada do apartamento onde trabalha e não ter contado aos patrões por ter medo de ser demitida, já que já é mãe de uma menina de três anos.

As pessoas que julgam e apedrejam essa mulher nem sequer se questionam sobre a violência à qual essa mulher foi submetida. Eu imagino o medo que ela carregou durante a gestação com medo de ser descoberta. Eu imagino a angústia e solidão ao ter a criança sozinha.

Eu questiono a ausência do pai nessa situação, ele também não deve ser responsabilizado pelo abandono? Por que os jornalistas não se preocuparam com esse fato? Como os patrões não perceberam a gravidez da funcionária?

Num país machista que impõe a maternidade como destino às mulheres, é necessário pensar para além do senso comum. O aborto é criminalizado, o Estado não permite que mulheres tenham autonomia sobre seus corpos. Porém, segundo diversas pesquisas, é sabido que mulheres fazem esse procedimento.

A criminalização determina quais delas vão morrer ou não. Quais delas terão que passar pelo desespero de abandonar seus filhos por medo de perder o emprego e quais não terão. Mulheres de classe privilegiada pagam por procedimentos seguros enquanto as pobres, em sua maioria negras, ou ficam com danos graves à saúde e morrem ou são submetidas ao desespero. É necessário debater a omissão e ilegalidade do Estado aqui.

Se essa mulher escondeu a gravidez por medo de ser demitida é porque, provavelmente, essa conversa já deveria ter acontecido com os patrões. Se isso não fosse um problema para permanecer no trabalho, ela não precisaria de uma atitude tão desesperada. O fato de ela trabalhar nessas condições, viver num quarto pós senzala, nem preciso comentar.

Mas nem sequer se mencionar a responsabilidade do pai demonstra o quanto essa sociedade é machista e impõe essa tarefa somente a mulher como se engravidássemos por vírus. O quanto as construções sociais privilegiam os homens e criam valores que colocam a mulher num lugar de quase impossível transcendência, para usar um termo de Simone de Beauvoir.

Desde muito cedo somos ensinadas de que devemos ser mães, cria-se a ideia romântica de maternidade e nos enfiam goela abaixo naturalizando esse lugar. Mais além, cria-se a culpa. Não é incomum ouvir: “que mãe é essa que permite isso?” ou “mãe que é mãe aguenta tudo”.

Mas mãe é ser humano, e não uma supermulher com superpoderes. Por trás de uma mãe que aguenta tudo há uma mulher que desistiu de muita coisa e um pai ausente desculpado pelo patriarcado.

Quem se responsabiliza pelo desespero dessa mulher? Sim, essa mulher abandonou sua filha, mas já havia sido abandonada muito antes pelo pai da criança, pelo Estado e por essa sociedade cruel e hipócrita.

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