E se uma pessoa negra tivesse desviado quase um milhão?

FONTEPor Hislla Ramalho, enviado ao Portal Geledés
Alicia Dudy Muller Veiga, de 25 anos, confessou à polícia que desviou R$ 937 mil arrecadados por alunos para a formatura (Foto: Reprodução redes sociais / Flipar)

Inicio esse texto colocando que pessoas pretas não precisam de motivos para serem xingadas, canceladas, massacradas e linchadas socialmente.  E se essas pessoas cometerem algum tipo de crime, aí o Brasil fala logo “bandido bom é bandido morto”, não é mesmo? De fato, a população brasileira é racista e, nada novo sob esse sol e céu. Mas, o ponto que me traz aqui é: o poder de inverter a narrativa descaradamente quando se  trata de corpos brancos. Eu me pergunto e te pergunto, como uma mulher branca que desvia quase um milhão sai do status de “bandida” para “menina-prodígio sem amigos”? Com direito a contar a história, e de ser “humanizada” pelos canais de notícias e matérias de jornais. 

Ironias à parte, afirmo, embasada em Silvio Almeida, Joice Berth, Djamilla Ribeiro, Sueli Carneiro, Kabengele Munanga e muitas outras e muitos outros, que o racismo desumaniza os corpos pretos, é um sistema de negação de direitos (inclusive o de contar sua história), é uma tecnologia de poder que se atualiza. Grada Kilomba (2019) vai colocar que o racismo tem três características: a construção da diferença; as diferenças construídas estarem inseparavelmente ligadas a valores hierárquicos; e o poder histórico, político, social e econômico. Para ela, “é a combinação do preconceito e do poder que forma o racismo. E, nesse sentido, o racismo é a supremacia branca” (2019; p.76).

Poder é uma palavra importante aqui porque, quem pode contar a história aqui no Brasil?  Quem constrói as narrativas? Se uma pessoa negra, ou não branca, (por mais que viesse de origem humilde e fosse estudante de faculdade de Medicina) tivesse desviado quase um milhão, como essa sociedade colocaria a pessoa? Contaria a história de vida a fim de  humanizá-la? As manchetes a chamariam de “prodígio”, a colocaria no quadro de solidão e doença? Ou apontaria para a pena de morte e diria “fora Direitos Humanos”; repetiria a frase inicialmente mencionada e jogaria a pessoa para a morte? Sabe-se que para pessoas pretas não há diálogo, não há espaço para humanização, para contar a sua história. O espaço é o julgamento, cancelamento e muitas vezes a morte.

Mas o que esperar de uma sociedade em que o racismo é estrutural? Nesse sistema, pessoas negras são o diferente do padrão, a anomalia, o problema e então, consequentemente, palavras como “atrocidade, horror, mostruosidade, animalidade” dentre outras estão em um campo semântico-imaginário para relatar casos em que pessoas negras tenham cometido algum desvio da norma social, algum crime, mesmo que seja desviar, roubar, furtar etc. As palavras mencionadas acima não são utilizadas na história da mulher que roubou 937 mil. Pelo contrário, existe um pacto da branquitude para que a ação criminosa saia do campo do choque, do susto, do absurdo quando cometido por uma pessoa branca e venha para o campo da possibilidade de existência, da doença, da necessidade, da sobrevivência por parte do indivíduo. A  possibilidade de contar a sua versão da história está presente – a origem humilde, a inteligência e determinação, e o infeliz acontecido talvez por estar com o psicológico afetado.  É esse olhar social que não está presente quando se trata de uma pessoa negra. Será que os detentos que cometeram o mesmo crime da mulher tiveram uma matéria contando os problemas que tinham dentro de casa e na vida, ou mesmo contando um pouco de sua história?

Existe um pacto “narcísico”, de autopreservação da branquitude que passa pelo silêncio, pela omissão pela distorção do lugar do branco. Nesse contexto, eles são a referência de condição humana. Então, uma mulher branca que desvia quase um milhão não pode ter a marca de “bandida criminosa”, pelo contrário, ela comete um crime e a marca é “jovem estudante, menina prodígio solitária abalada psicologicamente” e por aí vai. Na matéria à qual me refiro há 1 ocorrência da palavra “crime”, há 5 ocorrências da palavra “estudante”, 4 ocorrências da palavra “aluna” geralmente ligada a “brilhante e prodígio”. Não há menção da palavra “bandido”, nem “roubar” e nem “furtar”. Há uma menção a palavra “desvio”. Os adjetivos criam uma esfera de: mente brilhante com ansiedade, compulsão, fria e calculista, e estrategista. Sendo assim, lembrem de analisar/ observar as próximas matérias quando tiver fazendo referência a uma pessoa negra. Quais são as palavras utilizadas no relato de casos? O campo semântico poderá estar carregado de palavras com significação negativa reforçando e reproduzindo um imaginário racista, ou seja, desumanizando pessoas negras.

Finalizo essa reflexão citando o pensamento de Silvio Almeida  (2019) quando diz:

Muitas explicações sobre o racismo afirmam a existência de uma supremacia branca. A supremacia branca pode ser definida como a dominação exercida pelas pessoas brancas em diversos âmbitos da vida social. Essa dominação resulta de um sistema que por seu próprio modo de funcionamento atribui vantagens e privilégios políticos, econômicos e afetivos às pessoas brancas. O problema de considerar o racismo como obra da supremacia branca ocorre quando se considera este termo fora de um contexto histórico. Não há uma essência branca impressa na alma de indivíduos de pele clara que os levaria a arquitetar sistemas de dominação racial. Pensar desse modo simplista e essencialista a questão racial pode conduzir-nos a uma série de equívocos que só tornam ainda mais difícil a desconstrução do racismo. Dizer que o racismo é resultado de uma ahistórica e fantasmagórica supremacia branca reduz o combate ao racismo a elementos retóricos, ocultando suas determinações econômicas e políticas. Não se nega que uma das características do racismo é a dominação de um determinado grupo racial sobre outro, mas o problema está em saber como e em que circunstâncias essa dominação acontece. A ideia de supremacia branca pode ser útil para compreender o racismo se for tratada a partir do conceito de hegemonia e analisada pelas lentes das teorias críticas da branquidade ou branquitude. […] A supremacia branca é uma forma de hegemonia, ou seja, uma forma de dominação que é exercida não apenas pelo exercício bruto do poder, pela pura força, mas também pelo estabelecimento de mediações e pela formação de consensos ideológicos. A dominação racial é exercida pelo poder, mas também pelo complexo cultural em que as desigualdades, a violência e a discriminação racial são absorvidas como componentes da vida social. […]ser branco é também o resultado de uma construção social que materialmente se expressa na dominação exercida por indivíduos considerados brancos ou na supremacia branca. O branco – lembra-nos Achille Mbembe – é “uma categoria racial que foi pacientemente construída no ponto de encontro entre o direito e os regimes de extorsão da força de trabalho”. A admiração e a valorização das características físicas e dos padrões de “beleza” dos povos europeus é também um indicador de quais indivíduos e grupos são considerados os ocupantes naturais de lugares de poder e destaque. (ALEMIDA, 2019, p. 47-48).


¹  Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/02/14/alicia-muller-perfil-faculdade-medicina-usp-formatura-golpe-desvio.htm>.


REFERÊNCIAS 

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. Companhia das Letras, 2022.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Editora Cobogó, 2019.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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