Edificar o lar

O medo, a opressão e a violência foram a principal ferramenta para a manutenção do poder, e as mulheres são as principais vítimas

FONTEO Globo, por Ana Paula Lisboa
Ana Paula Lisboa (Foto: Arquivo/ O Globo)

Na verdade eu venho pensando mais fortemente nisso desde que vi a notícia sobre o brutal assassinato da pastora Sara Mariano. Ela foi morta pelo marido — segundo a polícia, um crime planejado pelo menos um mês antes. O corpo de Sara foi encontrado carbonizado, depois de o próprio assassino prestar queixa do desaparecimento e fazer vídeo de apelo nas redes sociais, dizendo que não sabia o que havia acontecido com a esposa. Ele confessou dias depois.

Foram divulgados os áudios em que Sara conta à mãe que estava preocupada porque o marido pretendia comprar uma arma e ela sabia do que ele era capaz. Sara sustentava ela, o marido e a filha de 11 anos com pregações e como cantora, ministrando principalmente para o público feminino.

Cruzes colocadas na Praia de Copacabana no Dia Internacional da Mulher, em 2023, em protesto contra o feminicídio — Foto: Márcia Foletto

Sara cantava e pregava sobre fé, justiça, amor, esperança, restituição e proclamava que Deus tinha propósito para tudo, até mesmo para a dor.

Como sempre, não foram poucos os que colocaram a culpa na vítima. A defesa de Ederlan Mariano correu para justificar a ação do marido dizendo que ele descobriu diversas traições de Sara. Na internet disseram que a pastora foi alertada pela família e amigos sobre a índole do cônjuge, mas que ela não ouvia ninguém e preferiu continuar ao seu lado. Como se alguém pudesse preferir algo assim pra própria vida.

Há algumas semanas, outra mulher cristã, Patrícia Ramos, denunciou o ex-marido por estelionato sentimental, violência doméstica nas formas física, moral, psicológica e patrimonial, estelionato com falsidade ideológica, furto mediante fraude e perseguição.

Eu não sei bem quando comecei a seguir Patrícia, mas a maioria dos que chegaram até ela no início da carreira foi pelos vídeos irônicos sobre o mundo evangélico. Patrícia tinha (e tem!) uma autoestima invejável. Ela se declarava “linda e perfeita, feita à imagem e semelhança de Deus”.

As críticas que chegaram após as denúncias, e mesmo antes, quando ela anunciou a separação, diziam para ela dizer o que havia feito pra merecer a agressão, que ela fingia um casamento perfeito e que a culpa era dela, por ter principalmente se afastado de Deus, já que uma mulher cristã “edifica o seu lar”.

A violência contra a mulher tem marcadores fortes na raça e na classe. Segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, mulheres são 75% das vítimas de violência física e sexual no Brasil. Dessas, 60% são mulheres negras. No Nordeste, região de Sara, mulheres pretas e pardas têm mais que o dobro da probabilidade de sofrer violência física em relação às mulheres brancas.

Numa pesquisa rápida, não encontrei dados que tenham o marcador da religião entre as denúncias de violência doméstica. Mas seria importante — já que, segundo o IBGE, os negros são 60% dos evangélicos no Brasil.

Como uma ex-cristã, eu sempre fiz e faço questão de escrever aqui o quanto a igreja, especialmente a evangélica, foi parte fundamental da minha formação como mulher. Desde sempre, o medo, a opressão e a violência foram a principal ferramenta para a manutenção do poder, e as mulheres são as principais vítimas.

É verdade, está lá em Provérbios 14:1 e eu concordo plenamente: “A mulher sábia edifica o seu lar”. E o nosso lar, primeiramente, somos nós mesmas.

-+=
Sair da versão mobile