Edmond Dantés existiu. Era pai de Dumas. E era negro

FONTEPor Eber Freitas, Do Livreiro Nomade
(Foto: Imagem retirada do site Livreiro Nomade)

É impossível não se emocionar com a história do Conde de Monte Cristo, ainda que pela adaptação cinematográfica. A obra clássica escrita por Alexandre Dumas, autor que, entre outras coisas, inventou a indústria do livro, vendeu cerca de 250 milhões de cópias em seus 170 anos de existência. É um dos maiores sucessos literários do ocidente, atrás apenas de O Peregrino e Dom Quixote.

Porém um fato que há até pouco tempo era ignorado é que o personagem principal, Edmond Dantés, foi profundamente inspirado em uma pessoa que caminhou entre nós. E essa pessoa foi nada menos que o pai de Alexandre Dumas, um ex-escravo que se uniu às hostes de Napoleão Bonaparte e ascendeu à posição de general: Thomas-Alexandre Dumas, o Diabo Negro. A imponente figura também emprestou sua influência para Os Três Mosqueteiros, outro sucesso editorial.

Thomas nasceu em Santo Domingo, então colônia francesa no Caribe, batizado como Thomas-Alexandre Davy de la Pailleterie. Seu pai, o nobre francês Alexandre Antoine Davy — Marquês de la Pailleterie — migrou das terras gaulesas para viver com o irmão, Charles, um bem-sucedido plantador de açúcar — o petróleo do século 18. Pode-se dizer que a parceria não deu muito certo, os dois brigaram violentamente, e Alexandre fugiu, arrebatando consigo três escravos. Um deles não foi roubado, mas comprado, e caro: Marie Cessette, com quem Alexandre teve quatro filhos mulatos. Thomas era o seu favorito.

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Capa do livro ‘Conde Negro’ (Foto: Reprodução/ Objetiva)

O relacionamento com a família não durou, e ele vendeu todos para conseguir voltar à França. Mas Thomas foi negociado a um contrato condicional, e assim que Alexandre assumiu o castelo da família na Normandia, trouxe-o de volta em 1776. Como a escravidão era ilegal na França desde 1315, Thomas foi automaticamente liberto, e recebeu educação formal, um luxo negado aos seus irmãos. Nessa condição e com bons relacionamentos aristocráticos, conseguiu ingresso nas forças armadas. E aqui começa a ficar interessante.

Com 24 anos de idade Thomas era um soldado raso. Aos 31 liderava um destacamento de 53 mil homens como general do exército francês nos Alpes. Conseguiu uma vitória estratégica na abertura das rotas alpinas, o que deu à França uma vantagem estratégica contra o Império Austríaco no norte da Itália. O apelido de Dumas entre os inimigos era Schwarzer Teufel, ou Diabo Negro. A alcunha não veio gratuitamente: na tomada da ponte sobre o rio Isarco, dominada pelos austríacos, testemunhas afirmam que ele conseguiu triunfar no braço com a ajuda de menos de vinte homens, depois que meia dúzia amorteceu as balas dos mosquetes. Paul-Ferdinand Dermouncort, amigo pessoal e combatente ao lado de Dumas, afirma que ele “fez mais sozinho com sua força Hercúlea do que vinte e cinco de nós juntos. Quando digo vinte e cinco eu exagero; as balas austríacas fizeram seu trabalho, e cinco ou seis dos nossos homens estavam caídos”.

Napoleão concedeu um epíteto mais gentil: Horatius Cocles, em memória do soldado romano que defendeu uma ponte sozinho contra um esquadrão etrusco. Porém os dois não demoraram a se desentender. A Expedição do Egito não teve o mesmo sucesso obtido contra o Império Austríaco. O cansaço, calor e ausência de suprimentos puseram à prova a lealdade das tropas. Muitos homens se mataram. Dumas e outros generais confabularam críticas ao comandante supremo, consideraram recusar ordens de marchar sobre o Cairo. Algum tempo depois, Napoleão confrontou Thomas a respeito da tentativa de motim e ameaçou executá-lo por sedição. As palavras do imperador teriam sido: “posso facilmente substituí-lo por um brigadeiro”. Dumas pediu para ser dispensado e voltar à França, uma tarefa logisticamente complicada após a destruição da frota franco-espanhola pelos britânicos sob o comando de Horatio Nelson.

Arriscou embarcar em um navio entre soldados e civis, clandestinamente. Um temporal por pouco não afundou o navio, mas empurrou-o para as praias do Reino de Nápoles, que naquele momento em particular estava em guerra contra a França. Dumas ficou preso entre 1799 e 1801, e teve todos os bens confiscados. Quando foi solto, estava semi-paralisado, quase cego de um olho e surdo, porém conseguiu se recuperar — ele suspeitava que estava sendo envenenado na prisão. Thomas recebeu auxílios médicos de um grupo favorável à França enquanto cativo.

Desde 1792 Dumas era casado com Marie Louise Labouret, mãe do escritor Alexandre Dumas, que nasceria em 1802. Ele não voltou ao campo de batalha nem teve direito à pensão do exército, sendo forçado a trabalhar mesmo debilitado, a despeito das cartas solicitando auxílio ao próprio imperador. Ironicamente ele morreu de câncer no estômago, mesma enfermidade que ceifaria a vida de Napoleão. O herói sempre foi representado como um homem branco.

Todas essas informações foram desenterradas pelo historiador Tom Reiss, que ganhou um Pulitzer de biografia em 2013 pela obra The Black Count, lançada no Brasil este ano pela Editora Objetiva. Reiss procurou evidências em cartas antigas e documentos históricos trancafiados em um museu na pequena cidade onde Thomas Dumas teria falecido. Foi necessário explodir um cofre da família para recuperar alguns manuscritos, já que a única pessoa que conhecia o segredo era uma bibliotecária falecida. Nem nas próprias memórias de Alexandre Dumas é possível encontrar referências objetivas ao pai, que é vagamente citado como homem branco. Em entrevistas à imprensa, Reiss é enfático em afirmar que era inaceitável para o povo francês que um mestiço assumisse um papel central na história do país — tanto na esfera militar quanto na literária.

A biografia do militar deve ganhar uma adaptação para o cinema em breve: Cary Fukunaga, diretor da consagrada série True Detective, planeja levar a narrativa do Conde Negro para as telas grandes.

Foto em destaque: Reprodução/ Livreiro Nomade

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