Eduardo de Oliveira e Oliveira sobre a USP: “nós temos direito a essa instituição”

Em tempos de mar revolto, dois acontecimentos recentes em julho convidaram os brasileiros a olhar mais longe e com mais vagar para seu horizonte histórico. No dia 9, o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, maior porto escravista da história da humanidade, foi declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Um pouco antes, no dia 4, outra notícia de há muito esperada: a Universidade de São Paulo, mais importante universidade do Brasil, aprovou cotas raciais e de escola pública em seu concorrido vestibular.

Por Rafael Petry Trapp para o Portal Geledés 

Eduardo de Oliveira e Oliveira (1972). Fonte: Acervo pessoal de Bárbara Marruecos

Essas conquistas são resultado da confluência de muitos fatores, mas provém essencialmente de décadas de reflexões, lutas e reivindicações por parte dos movimentos negros brasileiros. No caso da USP, o ano de 2017 não poderia ser mais auspicioso. Exatamente 40 anos atrás, de 22 de maio a 8 de junho de 1977, nos antigos barracões onde se localizava a Faculdade de Psicologia, realizou-se um dos mais significativos eventos da história do ativismo antirracista no Brasil: a “Quinzena do Negro da USP”, idealizada e organizada pelo sociólogo negro Eduardo de Oliveira e Oliveira (1924-1980).

Nos idos de 1977, Eduardo finalizava o texto de sua tese de doutorado em Sociologia na USP, intitulada “História e Consciência de Raça”, que buscava, em linhas gerais, traçar um panorama histórico e sociológico da ideologia racial dos afro-brasileiros em São Paulo no século XX. O sociólogo tinha sido o primeiro autoidentificado negro a entrar na graduação e na pós-graduação em Ciências Sociais dessa universidade, ainda em 1968. Em 1971, no I Encontro Internacional de Estudos Brasileiros da USP, perguntou ao público – majoritariamente branco – do evento o então estudante de mestrado: “por que o negro não foi discutido”?

A Quinzena do Negro foi uma oportunidade para essa discussão. Mas não se tratava de um evento acadêmico usual. A proposta era fazer um ciclo de debates organizado por negros e para negros, pois tudo o que se fizera até então na USP sobre o tema havia sido realizado por intelectuais brancos, sendo o mais importante e proeminente deles o sociólogo Florestan Fernandes. O título de um dos textos de Eduardo do mesmo ano de 1977, apresentado na SBPC, é revelador: “De uma ciência Para e não tanto Sobre o negro”. No programa da Quinzena, ele escreveu: “Esta quinzena, às vésperas dos 90 anos da abolição da escravatura […] caracteriza-se por um aspecto que nos parece da maior relevância – revelar o negro como criatura e criador. Numa palavra: Sujeito”.

O evento na USP consistiu em palestras, rodas de conversa, exposição de obras de arte africanas e de jornais da Imprensa Negra paulista – ambos da coleção particular de Eduardo – e ainda uma mostra de filmes no Museu da Imagem e do Som. Patrocinada pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, que tinha como secretário nesse período o bibliófilo José Mindlin, amigo de Eduardo, a Quinzena foi amplamente noticiada pelos jornais da época, e esteve sob a mira do Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo. Apesar de considerar a ideia “excelente”, um relatório de um agente da Ditadura presente no Arquivo Público de São Paulo dizia ser “perigoso [que] a coordenação [estivesse] na mão do citado elemento”, Eduardo, que tinha ligações com o movimento negro norte-americano e “vinha desenvolvendo atividades no campo do ‘negro’ numa perspectiva negativa”.

Da Quinzena participaram intelectuais e ativistas negros – e brancos – com os quais o sociólogo se relacionava em São Paulo, no Rio de Janeiro e também nos Estados Unidos. Beatriz Nascimento, Hamilton Cardoso, Clóvis Moura, Orlanda Campos, entre muitos outros, foram alguns dos intelectuais que integraram o quadro do “pensamento negro” que Eduardo desejava compor e fazer dialogar, tal como ele deixa claro em uma entrevista no documentário “O negro, da senzala ao soul” (1977), da TV Cultura.

Essa movimentação era parte de um contexto amplo de discussão política sobre a questão racial no Brasil que estava a se desenvolver nesse período do final da década de 1970, desdobramento do ocaso da Ditadura Militar. Por sinal, o Movimento Negro Unificado seria criado em São Paulo, em 1978, também sob a influência da Quinzena, da qual muitos de seus fundadores participaram. Lutava-se nessa época contra o racismo e pela desconstrução do mito da “democracia racial”, ideia que os militares haviam tomado como um dos dogmas oficiais do Brasil. O momento da Quinzena marcava a presença, real e simbólica, dos negros dentro da Universidade de São Paulo, discutindo as questões que lhes eram caras a partir de seu próprio ponto de vista. Outro documentário, “Orí”, de Raquel Gerber (1989), traz uma eloquente fala de Eduardo:

 

Nós temos direito a essa instituição, sobretudo essa aqui [a USP] que é pública. E o fato de fazer [a Quinzena do Negro] dentro da universidade é para que a universidade assuma sua responsabilidade para formar mais negros, para que possam, como Beatriz [Nascimento], que passou por uma universidade, de ir ao quilombo, à favela, seja lá onde for, e dar os ensinamentos dela lá. Agora, sem uma universidade, sem um crédito, seria até impossível eu conseguir esta semana aqui, porque eu seria apenas um negro. Hoje, depois de dez anos ou doze anos de trabalho, já me mandam entrar e sentar, porque eu sou Eduardo de Oliveira e Oliveira, que tem um título, que não pretende ser doutor, que não se branqueou, mas que usa disso como instrumento de trabalho para poder se afirmar como negro e ajudar a que outros negros se afirmem como tal.

 

A força e a atualidade dessas palavras saltam aos olhos. Agora, depois de 40 anos da Quinzena do Negro, e de 83 anos desde sua fundação, a USP enfrenta seu passado e a realidade ainda verdadeira de ser uma instituição para brancos e afinal abre suas pesadas portas para que, como sonhou Eduardo, os afro-brasileiros e estudantes pobres possam ter uma chance de se formar em uma prestigiosa universidade e ocupar espaços e posições de poder.

Assim como sua amiga Beatriz, precoce e tragicamente desaparecida deste mundo, em 1995, Eduardo não viveu para ver sua utopia – como ele diz em uma carta em 1978 – se realizar. Doente, acossado pelo racismo e homofobia, não conseguiu finalizar sua tese. Faleceu em dezembro de 1980, em Itapira, interior de São Paulo. Seus muitos projetos para o negro brasileiro e para a educação das relações raciais no Brasil perderam-se.

As ideias, todavia, como vemos, permaneceram vivas, e os 40 anos da Quinzena do Negro são ocasião para refletir sobre o papel das universidades no combate ao racismo. Por outras linhas tortas o sonho de Eduardo se realiza com a oportunidade que a USP, ainda que tardiamente, oferece de modificar o seu presente, na tentativa de uma sociedade mais justa e igualitária.

 

Rafael Petry Trapp

Doutorando em História na UFF

 

Referências

 

Fontes históricas oriundas do Acervo de Eduardo de Oliveira e Oliveira na UFSCAR

Cf. GUIMARÃES, Vera; HAYASHI, Maria. Inventário analítico da coleção “Eduardo de Oliveira e Oliveira”. São Carlos: Arquivo de História Contemporânea/Secretaria da Cultura de São Paulo, 1984.

 

OLIVEIRA, Eduardo de Oliveira e. Uma Quinzena do Negro. In: ARAÚJO, Emanoel (Curadoria). Para nunca esquecer: negras memórias, memórias de negros. Brasília: Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, 2001.

 

______. Discurso na Quinzena do Negro. In: RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a Trajetória de Vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial/Instituto Kuanza, 2007.

 

Documentário “O negro, da senzala ao soul”. TV Cultura, 1977. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5AVPrXwxh1A>.

 

Documentário “Orí”. Raquel Gerber, 1989. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=DBxLx8D99b4>.

 

Relatório sobre a Quinzena do Negro. 1977. Acervo do DEOPS. Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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