Educação anti-racista : caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03

Coleção Educação para Todos – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.

236 p. (Coleção Educação para Todos)

Fonte: Domínio Publico

 

Autores

Andréia Lisboa de Sousa
Carlos Moore Wedderburn
Eliane dos Santos Cavalleiro
Francisca Maria do Nascimento Sousa
Marcos Ferreira dos Santos
Nelson Fernando Inocêncio da Silva
Nilma Lino Gomes
Rafael Sanzio Araújo dos Anjos
Sales Augusto dos Santos

 

Introdução

A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do Ministério da Educação (MEC), entre seus objetivos, busca oferecer às professoras e aos professores informações e conhecimentos estratégicos para a compreensão e o combate do preconceito e da discriminação raciais nas relações pedagógicas e educacionais das escolas brasileiras. À luz do alcance da dinâmica das relações raciais no âmbito da educação, esse reconhecimento figura como um passo importante, uma condição necessária para enfrentarmos o racismo brasileiro.
Da mesma sorte, o melhor entendimento do racismo no cotidiano da educação também é condição sine qua non para se arquitetar um novo projeto de educação que possibilite a inserção social igualitária e destravar o potencial intelectual, embotado pelo racismo, de todos(as) os(as) brasileiros(as), independentemente de cor/raça, gênero, renda, entre outras distinções. Tal fato contribuirá para o desenvolvimento de um pensamento comprometido com o anti-racismo, combatente da idéia de inferioridade/superioridade de indivíduos ou de grupos raciais e étnicos, que caminha para a compreensão integral do sujeito e no qual a diversidade humana seja formal e substantivamente respeitada e valorizada.
Na educação brasileira, a ausência de uma reflexão sobre as relações raciais no planejamento escolar tem impedido a promoção de relações interpessoais respeitáveis e igualitárias entre os agentes sociais que integram o cotidiano da escola. O silêncio sobre o racismo, o preconceito e a discriminação raciais nas diversas instituições educacionais contribui para que as diferenças de fenótipo entre negros e brancos sejam entendidas como desigualdades naturais.

 

Mais do que isso, reproduzem ou constroem os negros como sinônimos de seres inferiores.
O silêncio escolar sobre o racismo cotidiano não só impede o florescimento do potencial intelectual de milhares de mentes brilhantes nas escolas brasileiras, tanto de alunos negros quanto de brancos, como também nos embrutece ao longo de nossas vidas, impedindo-nos de sermos seres realmente livres “para ser o que for e ser tudo” – livres dos preconceitos, dos estereótipos, dos estigmas, entre outros males. Portanto, como professores(as) ou cidadãos(ãs) comuns, não podemos mais nos silenciar diante do crime de racismo no cotidiano escolar, em especial se desejamos realmente ser considerados educadores e ser sujeitos de nossa própria história.
Em estudos anteriores,1 foi possível comprovar que a existência do racismo, do preconceito e da discriminação raciais na sociedade brasileira e, em

especial, no cotidiano escolar acarretam aos indivíduos negros: auto-rejeição, desenvolvimento de baixa auto-estima com ausência de reconhecimento de

capacidade pessoal; rejeição ao seu outro igual racialmente; timidez, pouca ou nenhuma participação em sala de aula; ausência de reconhecimento positivo de seu pertencimento racial; dificuldades no processo de aprendizagem; recusa em ir à escola e, conseqüentemente, evasão escolar. Para o aluno branco, ao contrário acarretam: a cristalização de um sentimento irreal de superioridade, proporcionando a criação de um círculo vicioso que reforça a discriminação racial no cotidiano escolar, bem como em outros espaços da esfera pública.
Não há como negar que o preconceito e a discriminação raciais constituem um problema de grande monta para a criança negra, visto que essa sofre direta
e cotidianamente maus tratos, agressões e injustiças, os quais afetam a sua infância e comprometem todo o seu desenvolvimento intelectual. A escola e
seus agentes, os profissionais da educação em geral, têm demonstrado omissão quanto ao dever de respeitar a diversidade racial e reconhecer com dignidade as crianças e a juventude negra.
O racismo e seus derivados no cotidiano e nos sistemas de ensino não podem ser subavaliados ou silenciados pelos quadros de professores(as). É imprescindível identificá-los e combatê-los. Assim como é pungente que todos(as) os(as) educadores(as) digam não ao racismo e juntos promovam o respeito mútuo e a possibilidade de se falar sobre as diferenças humanas sem medo, sem receio, sem preconceito e, acima de tudo, sem discriminação.
No cotidiano escolar, considerável parcela de profissionais da educação diz não perceber os conflitos e as discriminações raciais entre os próprios alunos
e entre professores e alunos. Por esse mesmo caminho, muitos também não compreendem em quais momentos ocorrem atitudes e práticas discriminatórias e preconceituosas que impedem a realização de uma educação anti-discriminatória.
Porém, um olhar um pouco mais atento e preocupado com as relações estabelecidas na escola flagra situações que constatam a existência de um
tratamento diferenciado que hierarquiza o pertencimento racial dos alunos.
Essa diferenciação de tratamento, uma atitude anti-educativa, concorre para a difusão, a reprodução e a permanência do racismo no interior das escolas e na nossa sociedade como um todo.
O conflito e a discriminação raciais na escola não se restringem às relações interpessoais. Os diversos materiais didático-pedagógicos – livros, revistas,
jornais, entre outros – utilizados em sala de aula, que, em geral, apresentam apenas pessoas brancas com e como referência positiva, também são ingredientes caros ao processo discriminatório no cotidiano escolar. Quase sem exceção, os negros aparecem nesses materiais apenas para ilustrar o período escravista do Brasil-Colônia ou, então, para ilustrar situações de subserviência ou de desprestígio social. A utilização de recursos pedagógicos com esse caráter remonta a um processo de socialização racista, marcadamente branco-eurocêntrico e etnocêntrico, que historicamente enaltece imagens de indivíduos brancos, do continente europeu e estadunidense como referências positivas em detrimento dos negros e do continente africano.
Afora isso, há outros fatores que, outrossim, favorecem a interiorização/ cristalização de idéias preconceituosas e atitudes discriminatórias contra os(as)
alunos(as) negros(as). Dissimulações, apelidos, xingamentos, ironias consolidam a perpetuação de preconceitos e discriminações raciais latentes.

 

Situações nas quais estudantes negros(as) são tratados(as) por seus colegas e/ou professores(as) com termos preconceituosos e discriminatórios sinalizam a reiterada prática de investida contra a humanidade dos primeiros, numa tentativa de transformálos em animais irracionais ou coisas, não sujeitos sociais: “urubu”, “macaco”, “picolé de asfalto”, “a coisa está preta”, “humor negro”, “carvãozinho”, “filhote de cruz-credo”, etc.
Todos os profissionais da educação que favorecem consciente ou inconscientemente a manutenção, a indução ou a propagação de racismo, preconceitos e discriminação raciais no espaço escolar devem ser questionados e se auto-questionar quanto ao exercício de sua profissão de educador. Buscar soluções para esses problemas não é um trabalho apenas em favor dos(as) alunos(as) negros(as), representa um trabalho em favor de todos(as) os(as) brasileiros(as), quer sejam pessoas pretas, pardas, indígenas, brancas ou amarelas.
Uma educação anti-racista não só proporciona o bem-estar do ser humano, em geral, como também promove a construção saudável da cidadania e da
democracia brasileiras. Portanto, nós, educadores(as) brasileiros(as), necessitamos urgentemente contemplar no interior das escolas a discussão acerca das relações raciais no Brasil, bem como de nossa diversidade racial. Nessa linha, é preciso não só boa vontade e sensibilidade dos profissionais da educação, mas também o fornecimento de material didático-pedagógico anti-racista e recursos auxiliares aos professores para que possam ministrar aulas combatendo o preconceito e a discriminação raciais. É com esse objetivo que a Secad publica este livro.
Trata-se apenas de um dos instrumentos – não mais nem menos importante que outros – na luta anti-racista no cotidiano escolar. Esse esforço vai no sentido de contribuir para que se forje uma educação inclusiva, livre de preconceitos, democrática e não etnocêntrica.
Assim, esse livro visou a reunir trabalhos de autores que trazem reflexões acerca da implementação da Lei no 10.639, de 9 de Janeiro de 2003, sancionada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da qual se torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Africanas e Afro-brasileiras nos estabelecimentos de Educação Básica, oficiais e particulares. Parte dos textos presentes nesta obra mantém estreita relação com os Fóruns Estaduais de Educação e Diversidade Étnico-Racial, que foram organizados pela Secad, no ano de 2004, em parceira com as Secretarias Estaduais de Educação, com os Movimentos Sociais Negros e com Universidades Federais.
O livro está dividido em três partes. A primeira parte refere-se à “Contextualização da Lei no 10.639”, na qual se abordam a luta histórica dos
Movimentos Sociais Negros por uma educação anti-racista, bem como os conceitos necessários à iniciação do estudo das relações raciais no Brasil. Essa
seção conta com apenas dois artigos. A segunda parte, intitulada “Por uma educação anti-racista”, conta com quatro artigos que tratam de aspectos do
racismo em sala de aula. Essa parte do livro buscar situar o racismo no cotidiano escolar, encarando-o como um problema central a ser enfrentado no processo de promoção de uma educação anti-racista. A terceira parte do livro, “Ensino de História da África no Brasil”, almeja não apenas nos aproximar do mundo africano, por meio do conhecimento científico, para o compreendermos melhor, como também atacar a ausência de ensinamentos a esse respeito no Brasil.

 

Dessa sorte, de forma mais detalhada, na seção “Contextualização da Lei no 10.639”, temos o artigo “A Lei no 10.639/2003 como fruto da luta nti-racista
do Movimento Negro”, de Sales Augusto dos Santos, pesquisador e organizador deste livro. O autor busca demonstrar que essa lei não surgiu do nada ou
da boa vontade política, mas é sim resultado de anos de lutas e pressões do Movimento Social Negro por uma educação não eurocêntrica e anti-racista.
Santos demonstra, por meio das agendas de reivindicações do Movimento Negro ao longo do século XX, que a reivindicação pela obrigatoriedade do
ensino da história do continente africano em sua diversidade, dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e dos negros na
formação da sociedade brasileira sempre perpassou as demandas apontadas pelo Movimento Negro para o Estado brasileiro. Essa exigência constava,
por exemplo, na declaração final do I Congresso do Negro Brasileiro, que foi promovido pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1950. Portanto, para
Santos, o Movimento Negro, bem como muitos intelectuais negros engajados na luta anti-racista, levaram mais de meio século para conseguir formalmente a obrigatoriedade do ensino supracitado.
O segundo e último artigo desta parte do livro, “Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão”,
da professora Nilma Lino Gomes, apresenta a discussão de alguns termos e conceitos-chave utilizados no debate sobre as relações raciais no Brasil, tais
como: identidade, identidade negra, raça, raça social, etnia, diversidade cultural, racismo, preconceito racial, discriminação racial, etnocentrismo e democracia racial. A discussão é realizada a partir do diálogo entre a produção acadêmica e os movimentos sociais, na tentativa de articular a reflexão teórica, a discussão política e o campo educacional. Foram escolhidos como principais interlocutores teóricos de diversas áreas do conhecimento que problematizam o campo das relações raciais, assim como artigos já escritos pela própria autora. Trata-se de uma discussão de conceitos fundamentais para os educadores que desejam iniciar e aprofundar o conhecimento sobre as relações raciais brasileiras.
O artigo “Discriminação racial e pluralismo em escolas públicas da cidade de São Paulo”, de minha autoria, dá início ao conjunto de textos que compõem a
segunda parte desta obra, “Por uma educação anti-racista”. A fim de contribuir no processo de elucidação dos aspectos apresentados pelos autores que criticam o ensino pautado numa conceituação etnocêntrica, que privilegia os padrões estéticos, culturais e sociais branco-europeus, esse artigo é resultado de uma pesquisa etnográfica sobre as relações raciais em três escolas públicas de São Paulo, que realizei nos anos de 2003 e 2004. Por essa ocasião, identifico o quanto o racismo impregnado nas relações sociais prejudica o aprendizado dos estudantes, bem como a participação desses, de seus pais e dos profissionais negros que transitam em escolas públicas.
Na seqüência, figura o artigo de Francisca Maria do Nascimento Sousa, “Linguagens escolares e reprodução do preconceito”, o qual tem por objetivo
discutir a influência da escola no processo de construção da auto-estima de alunos(as) negros(as), principalmente a partir da análise das diversas modalidades de linguagem utilizada para realizar o seu processo educativo. A autora procura demonstrar como as linguagens verbal e não-verbal têm dificultado o desenvolvimento de uma auto-estima positiva por parte dos(as) estudantes negros(as), e como essas têm ajudado a solidificar concepções preconceituosas e discriminatórias em relação a esse segmento da população brasileira.
O terceiro artigo da segunda parte, “Africanidade e religiosidade: uma possibilidade de abordagem sobre as sagradas matrizes africanas na escola”, é
de autoria do professor Nelson Fernando Inocêncio da Silva. O autor procura colocar no centro da discussão certos limites que emperram o desenvolvimento de atividades relacionadas aos estudos das tradições de matriz africana no ambiente escolar. Silva reconhece a necessidade de refletirmos sobre o significado de uma escola laica e sugere formas de tratamento das mitologias negras na escola que não equivalham à doutrinação religiosa. Propõe também algumas alternativas que possam permitir a superação de noções preconcebidas, as quais em muito têm contribuído para a manutenção da resistência entre os(as) estudantes(as) no que concerne aos conteúdos que tratam da cultura negra, em particular aqueles que aludem ao universo mítico e religioso. Nelson F. Inocêncio da Silva procura demonstrar que os posicionamentos contrários a essa abordagem são constantemente permeados pelo medo, constituindo-se em uma espécie de “negrofobia”.
Abrindo a terceira e última parte do livro, “Ensino da História dos Povos Negros no Brasil”, temos o artigo “Novas bases para o ensino da História
da África no Brasil – concepções preliminares”, do professor Carlos Moore Wedderburn. O objetivo central do artigo é o fornecimento informações e
conhecimentos para a introdução do ensino de História da África no Brasil, atentando-se para o fato de essa área de conhecimento das ciências humanas
ser “um campo fértil para a subjetividade” e necessitar, portanto, da produção de um “conhecimento orgânico”. Carlos Moore nos alerta que, em geral,
as correntes históricas adotadas pelos historiadores banalizam os efeitos do racismo. Nessa linha, o autor acrescenta que, para se valorizar a participação da cultura africana perante a humanidade, como um todo, fazem-se necessárias a utilização e a difusão de material didático adequado, bem como as de trabalhos e/ou pesquisas historiográficos produzidos por autores do continente africano.
Desse quadro, enfim, emerge a necessidade de construção de procedimentos metodológicos e epistemológicos específicos.
O segundo texto leva o título “A África, a educação brasileira e a geografia”, do professor Rafael Sanzio de Araújo dos Santos. Objetiva auxiliar na ampliação das informações e do conhecimento sobre aspectos geográficos da diáspora africana e seu rebatimento na formação do território e do povo brasileiro. Sanzio aborda brevemente, na parte inicial do artigo, alguns aspectos fundamentais da geografia e da historiografia africanas, particularmente sobre a dinâmica do tráfico de povos africanos para a América. Em seguida, trata de referências aos antigos quilombos, sítios geográficos em que se agrupavam povos negros que se rebelavam contra o sistema escravista da época, formando comunidades livres. Nessa parte, Sanzio também trata da expressão espacial dos remanescentes desses antigos quilombos na atualidade e aspectos contemporâneos da formação da população de ascendência africana no Brasil. Com essa estruturação, acena para uma melhor compreensão de alguns dos processos geográficos e históricos que contribuíram e contribuem para a formação do povo e para a organização do território brasileiro.

 

Em seguida, vem o artigo “A Representação da personagem feminina negra na literatura infanto-juvenil brasileira”, de Andréia Lisboa. A autora aborda a
trajetória da personagem feminina negra na literatura infanto-juvenil (LIJU) brasileira, apresentando algumas obras que podem ser utilizadas como exemplos para visualizar a presença e a inserção de personagens femininas negras nos livros infanto-juvenis. Realiza uma reflexão sobre essas personagens na literatura adulta, a fim de que promover a visualização da influência dessa literatura na produção das(os) autoras(es) infanto-juvenis. Em seguida, descreve obras que remetem a um panorama sobre as possibilidades de representação da personagem feminina negra na LIJU nas décadas de 1980, 1990 e 2000, elencando, por fim, uma série de desafios para a produção de livros com personagens negras.
A obra encerra-se com o artigo de Marcos Ferreira dos Santos, “Ancestralidade e convivência no processo identitário: a dor do espinho e a arte da paixão entre Karabá e Kiriku”. O autor recapitula sua experiência particular para dialogar com o lastro sócio-histórico em que se inserem a promulgação e o desafio de implementação da Lei no 10.639. Nesse sentido, Ferreira dos Santos passa a limpo os pressupostos balizadores da educação no Brasil, produtos de uma “tradição branco-ocidental”, e traz à baila a importância de uma série de valores oriundos da “cosmovisão afro-ameríndia” na construção de um novo modo de ensino-aprendizagem de fato libertário.
Prezados profissionais da educação, espero que a leitura e/ou o estudo dessa temática seja tão estimulante para vocês quanto foi para nós, quando
da elaboração do presente livro. Nossa expectativa é promover, com a sua colaboração, sua solidariedade, sua compreensão, seu conhecimento, seu trabalho e sua dedicação, mas também com a sua crítica, uma luta pela erradicação do racismo no cotidiano escolar. Ao realizarmos essa tarefa, portanto, almejamos dar um passo importante rumo à promoção de uma educação reconhecedora e valorizadora dos afro-brasileiros.


Eliane dos Santos Cavalleiro

Coordenadora-Geral de Diversidade e Inclusão Educacional
da Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade – Secad/MEC

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Educação anti-racista : caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03

 

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