Eguguns: Um culto sedimentado na crença de que laços ancestrais são eternos

Todas as culturas costumam ter os seus ritos e repertórios variados sobre a morte.  Nas tradições afro-brasileiras, o cuidado com quem parte segue o princípio da preservação da memória coletiva. No candomblé as várias nações realizam suas cerimônias fúnebres como o axexê do povo ketu. Mas, na Ilha de Itaparica, está preservada uma vertente muito específica do entendimento sobre a morte nesse vasto legado herdado das culturas africanas: o culto aos eguguns.

Por Cleidiana Ramos Do Flor de Dendê

Dentre os terreiros que mantêm essa tradição está o  Omo Ilê Agboula, que, a cada 2 de novembro, realiza uma grande festa. Conheci um pouco dessa comunidade há três anos. O primeiro contato foi uma palestra realizada pelo seu líder, o alagbá Balbino Daniel de Paula no III Encontro de Nações de Candomblé.

Após entoar um cântico e traduzi-lo do iorubá para o português, seo Balbino perguntou quantas pessoas ali tinham medo dos seus parentes que já haviam morrido e antes de explicar um pouco do culto disse: “Ele não celebra a morte, mas a vida porque mostra que ela pode continuar para além da matéria de uma forma muito forte e concreta”.

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A segurança de seo Balbino em falar de um culto que sempre foi marcado pelo temor por conta da aura de segredo que o cerca chamou a minha atenção, principalmente por ele insistir que as tradições do Agboula ensinam sobre a vida. Esse discurso está presente em muitas tradições religiosas, mas o que me surpreendeu nesse caso específico é a ausência da memória marcada apenas pela saudade.

Pesquisa

Um livro clássico e que traz um estudo amplo sobre esse culto é Os Nagô e a morte. A pesquisa foi realizada pela antropóloga Juana Elbein dos Santos e publicada em 1975, mas continua extremamente atual diante das informações detalhadas sobre a estrutura do culto que apresenta.

Nunca assisti a um dos ritos por razões relacionadas, principalmente, a minha pouca idade como iniciada no candomblé, o que impõe algumas restrições. Por questões de pesquisa – para o mestrado trabalhei com uma coleção de imagens sobre as religiões afro-brasileiras-  vi alguns registros, inclusive vídeos. E, por meio destes documentos e também por depoimentos de quem acompanha ou pequisa esse culto sei que os eguguns aconselham, repreendem, mas, sobretudo vem dançar e festejar com a comunidade que protegem e educam.

Também  tive a sorte de entrevistar se o Balbino duas vezes. A primeira oportunidade foi para o jornal A Tarde, meses depois da sua palestra. A reportagem não era específica sobre os ritos e, sim,  um pedido de ajuda. As instalações do Agboula necessitavam de reparos.

O chão do barracão tinha uma rachadura que se estendia da porta até a parte central onde ele me explicou que os eguguns dançam. Construções no entorno do terreiro prejudicavam a estrutura e a privacidade necessária para alguns dos ritos. Um ano depois voltei a conversar com ele para preparar um conteúdo publicado na revista Muito.

Do que apreendi desses encontros, os eguguns são a materialização de uma parte da energia que animou determinadas pessoas. Por questões de trajetória espiritual e por meio de rituais específicos, algumas delas retornam à terra para aconselhar e, principalmente, manter os laços afetivos com a sua família biológica, mas também com aqueles que se uniram a ela por outros caminhos, sobretudo os de busca espiritual.

Reencontros

No culto dos eguguns é possível presenciar um encontro de ancestrais africanos com os seus descendentes que ajudaram e trabalharam para sedimentar essa prática religiosa. Nessa tradição a atividade sacerdotal é exclusiva dos homens. São eles que assumem os cargos que possibilitam a presença dos  eguguns e a sua circulação pelo espaço sagrado. Às mulheres foram reservadas alguns funções, como o preparo das comidas sagradas e a possibilidade de ser investidas em cargos de honra, como Mãe Senhora, que foi ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá e deu de presente o terreno onde atualmente está o Agboulá.

Alapini é  o mais alto posto nesse culto e é reservado para aquele que tem conhecimento profundo dos mistérios e normas do culto. Ele costuma ser escolhido por um conselho formado pelos líderes de todos os terreiros que seguem essa tradição. Atualmente, o posto está vago desde a partida para o outro plano do grande Mestre Didi (1971-2013). Foi o alapini Mestre Didi que fundou, em 1980, o Ilê Asipá, o único em Salvador totalmente dedicado aos eguguns.

O líder de cada comunidade é o alagbá, posto de seu Balbino. Os outros sacerdotes são os ojés. Alguns deles tem outro cargo para desempenhar determinadas funções. A mais conhecida, dentre as suas atribuições, é o cuidado com os eguguns nas festas públicas. Eles os orientam com o apoio de uns bastões que garantem a distância recomendada entre eles e o público.

No fim do ano passado, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)  tombou o terreiro como patrimônio cultural do Brasil. Vejam o vídeo de parte da cerimônia em que seo Balbino fala, com uma emoção enorme dos motivos da comunidade para buscar esse tipo de proteção:

s, explica que o culto chegou ao Brasil vindo da África Ocidental e que há referências sobre a fundação de terreiros dessa tradição na primeira metade do século XIX. Ela reforça a sua concentração na Ilha de Itaparica.A antropóloga lista o Terreiro de Vera Cruz, fundado em 1820, o Mocambo, de 1830, o Encarnação de 1840 e o Tuntum  que aponta ter se formado por volta de 1850.

“ Todos esses “terreiros” e, alguns outros que não enumeramos, eram bem conhecidos e existiram aproximadamente entre 1820 e 1935 funcionando regularmente, segundo seus calendários litúrgicos, com hierarquias e rituais bem definidos. (…) O Ilê Agbóula na Ilha de Itaparica foi fundado durante o primeiro quarto deste século e descende em linha direta dos antigos “terreiros”. (…)”,  cita Juana Elbein na página 119 do seu livro.

Desafios

Com a concentração dos terreiros em Itaparica, o culto sempre foi muito cercado pelo segredo e  por conta disso vítima de perseguição. Uma delas foi registrada na edição de 21 de junho de 1940 pelo jornal A Tarde. Um trecho da matéria intitulada Varejada a Igreja Negra e presos os bárbaros sacerdotes dá bem a dimensão do milagre desses terreiros atravessarem as décadas resistindo:

“A polícia bahiana, em feliz diligencia, apreendeu, ante-ôntem, à noite, na ilha de Itaparica, em Amoreiras, um casal de pais de santo e copioso material da liturgia fetichista. (…). Continuando as buscas, os policiais encontraram grande quantidade de material proprio do culto fetichesta (sic): cadeiras de resplendor e acolchoadas; caveiras e ossos; crânios de animais; um ceptro de aço enfeitado de fitas de várias cores, tendo na ponta superior uma pomba de metal e na inferior um espeto (catapó); uma imagem esculpida na pedra representando um deus barrigudo, muito semelhante a Buda (Deus Nanan); várias mascaras de madeira habilmente esculpidas; um quadro da “mãe d´agua”; vários batuques, cabaças, etc.”

A imagem que acompanha a matéria mostra Eduardo e sua esposa Margarida em uma cena composta como as que a polícia usa no presente para apresentar traficantes de drogas. Eles estão, na capa do jornal que era líder de público, ao lado dos objetos sagrados apreendidos.

Quatro décadas depois, A Tarde foi ao Agboula. Em uma reportagem de página assinada por Reynivaldo Brito continua a aura de mistério, mas dessa vez o objetivo era tentar explicar porque ele causa  temor. Na minha dissertação de mestrado, o Discurso da Luz  analisei as imagens dessa matéria e identifiquei uma curiosidade. As fotos foram feitas por Louriel Barbosa, filho biológico de Mãe Olga de Alaketu. Foi, segundo o texto, por conta disso que a equipe obteve mais confiança da comunidade  para fazer a reportagem. Uma das imagens da matéria é a do então alagbá Antonio Daniel de Paula:

Em 2013, eu e o repórter fotográfico Raul Spinassé retornamos ao Agboula,  via A Tarde,  mas dessa vez para ajudar a comunidade a  demonstrar que não há mistério em cultuar algo que é muito próximo da vida, como salientou várias vezes seo Balbino. Na reportagem  também discutimos o processo de tombamento do terreiro que estava parado.

Já tem um tempo que não converso com o pessoal do Agboula. Tentei na tarde de ontem, mas depois lembrei que eles estão concentrados para as obrigações rituais, pois o que tem sustentando essa tradição é a certeza de que a aliança se renova pela troca de cuidados entre os dois lados da moeda da vida.

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