Ele Não Porque Eu Sou Negro

Arte- André Zanardo

Qualquer um que se preste a ler e estudar, com um mínimo de seriedade, a história da população negra no Brasil jamais afirmaria que não há racismo no Brasil e muito menos que os portugueses jamais pisaram no continente africano. Pensamentos estes expressados por aquele que não se deve dizer o nome, ou “o coiso” se preferirem.

por Gabriel Alex Pinto de Oliveira no Justificando

Arte- André Zanardo

Pois é, em qualquer livro de história aceito no sistema de ensino brasileiro, a escravidão é posta, ainda que brevemente, como um fator importante na constituição do país. Assim, qualquer criança de esteja no oitavo ano saberá, ou pelo menos deveria saber, que pessoas da etnia negra já foram consideradas como mercadoria no Brasil hápouco mais de 130 anos.

Agora, para fugir do lugar comum e mergulhar mais fundo naquilo em que não vemos nos livros rasos que circulam nas escolas ao tratarem da questão racial brasileira, é necessário primeiro força de vontade, em segundo dedicação, e, por fim, muita paciência. O que quero dizer com isso é que uma criança negra, ao se deparar com a história de seus possíveis ancestrais escravizados neste país, precisará ou de uma estrutura familiar boa ou de um(a) excelente professor(a) de história que lhe mostre o outro lado da verdade por de trás daquilo que consta no livro da escola.

Hoje já contamos com uma extensa bibliografia que pode ser vir muito bem a quem se interessar em estudar a fundo o assunto para se verificar que fatores sociais, econômicos e políticos influenciaram decisivamente na constituição da desigualdade racial que temos enfrentado nos dias de hoje.

Meias verdades ou inverdades descaradas como as ditadas pelo presidenciável tendem a ser reproduzidas como verdade por aqueles que preferem manter um discurso de ódio ou subjugação em relação à população negra. E isso nós negros não podemos permitir mais.

Assim, existem diversos motivos muitos óbvios para que uma pessoa negra não queira votar no referido cidadão. Vamos a elas.

Primeiramente, depois da abolição da escravatura, e que, diga-se de passagem, não foi um ato de benevolência da Princesa Isabel, mas resultado de uma pressão política e social liderada pelo movimento abolicionista negro, os corpos negros não podem ser tratados como mercadoria. Assim, a alusão ao peso dos cidadãos brasileiros quilombolas em arrobas (medida utilizada para pesar gado), que me desculpem os excelsos magistrados, é sim um ato de demonstração de um pensamento racista. Não podemos olvidar que na mesma oportunidade ele se referiu às comunidades quilombolas como inférteis e imprestáveis, além de insinuar que nossa etnia como um todo não teria “vergonha na cara”.

Ele não só faz declarações racistas como nega a existência do próprio racismo. Para este senhor, se o racismo não existe no Brasil, onde é que ele estaria? Apenas nos livros de história dos quais ele não lê? Se utiliza da figura de negros simpatizantes à ele para se esquivar de acusações e culpabilizar a população negra por suas mazelas. Verdadeira síndrome da mitificação do “vitimismo” é que esse senhor padece.

Sejamos francos, ainda que você, branco, negro, indígena ou de qualquer outra etnia, não acredite em reparação histórica, em cotas raciais ou em ações afirmativas, não poderá negar que houve dos anos que seguiram desde o primeiro homem ou mulher negra que pisou neste continente escravizado(a) até os dias atuais uma série inenarrável de atrocidades e injustiças cometidas contra a população negra neste país. Negar isso é puro mau-caratismo.

Vamos aos fatos históricos que poucos sabem ou admitem:

1) a abolição da escravidão foi conquistada com mobilização e luta social;

2) não houve qualquer política pública para proteger, abrigar ou reparar as milhares de famílias negras ex-escravizadas que não possuíam qualquer tipo de patrimônio ou modo de subsistência próprio para se sustentar após o fim da escravidão;

3) antes da decretação do fim da abolição e nos anos que se seguiram, o Estado brasileiro iniciou uma política de incentivo à imigração europeia a fim de “branquear” a população brasileira;

4) imigrantes brancos receberam terras e dinheiro do governo (sejam eles portugueses, os primeiros a chegar [invadir] por aqui, sejam italianos, alemães…) o que nunca ocorreu com a população negra;

5) nos primeiros anos pós-abolição os negros se organizaram em diversas associações, jornais e organizações, e chegaram até mesmo a fundar um partido para defender propostas que enfrentassem o racismo institucional do Estado brasileiro, mas foram compulsoriamente desmobilizados com a implementação do Estado Novo;

6) vários mecanismos legais foram criados para impedir que os negros tivessem acesso ao estudo e que ascendessem socialmente, inclusive criminalizando as práticas das populações negras como o samba e a capoeira, além de prender por “vadiagem” os negros que não tinham trabalho, início do que seria conhecido nos dias atuais como encarceramento em massa, sendo esta população marginalizada conforme foram sendo verificadas a expansão dos centros das principais metrópoles brasileiras;

7) a comunidade negra no início do século XX se identificava majoritariamente com o pensamento ideológico de direita, após a instauração do Estado Novo de Getúlio Vargas e a desmobilização compulsória do movimento negro, nos anos que se seguiram os pensamento ideológico se aproximaria do que seria o que entende-se por “centro” até chegar em meados de 1977 no pensamento ideológico de esquerda, o que demonstra que, por mais que tentem negar: a) os negros se interessam hámuito por política; b) nenhuma das ideologias citadas deu conta de solucionar integralmente os problemas da comunidade negra; c) a questão racial é estrutural e não pode ser resumida a uma ideologia política;

8) de 13 de maio de 1888 à 13 de maio de 2018 (130 anos) a população negra permaneceu majoritariamente dentro dos piores índices de desenvolvimento social brasileiro, demonstrando que a realidade da desigualdade no país permanece e somente será alterado se políticas públicas continuarem a serem implementadas, não somente por dois ou três anos, mas por longos anos a fio. Estimativa do Ipea aponta que se mantivermos o mesmo ritmo de políticas afirmativas, as desigualdades de renda per capita entre famílias brancas e negras se encerrará em 2029.

Tantos fatos históricos que são a razão direta devermos as mazelas que a população negra enfrenta diariamente no Brasil não pode ser apagado ou suprimido por um candidato que mostra total desprezo e desconhecimento pela história do país.

Poderia me estender em muitos outros fatos históricos, trazer aqui todos indicadores sociais que demonstram o quanto a população negra vem sendo colocada à margem do desenvolvimento social brasileiro, dizer como é fundamental entender que o racismo deve ser combatido de forma estrutural como política pública de Estado e que, inversamente, criar uma maior distribuição da renda para a população negra de baixa renda fará a economia nacional crescer.

Contudo, o que é indispensável frisar é que todas as conquistas alcançadas pela população negra nestes últimos 130 anos foram fruto de uma árdua luta física, política e filosófica que desmascarou o mito da democracia racial brasileira e pôs às claras os abismos sociais que separam a população negra da população branca, não só com estudos, teses e livros, mas também com números.

Assim, um candidato que sequer acredita na existência do racismo, que dirá no racismo estrutural que baliza as relações sociais brasileiras, não tem um mínimo de condições para acabar com as desigualdades raciais existentes no país. Pior, ao negar o racismo, ele apenas fomenta a manutenção de condutas raciais excludentes e discriminatórias.

A invisibilização das pautas negras é um retrocesso sem tamanho para a comunidade negra.

As religiões de matriz africana, por exemplo, vêm lutando e sobrevivendo contra um sistema que teima em tentar criminaliza-las durante mais de um século. Não obstante isso, temos presenciado nos últimos anos um aumento alarmante dos ataques contra seus templos religiosos. O Estado, conforme previsto na Constituição Federal, tem o dever de assegurar o direito de culto e crença da nossa população, direito que estará em risco caso o referido presidenciável assuma.

Por fim, mas não menos importante, de todos os projetos apresentados por aquele pretenso salvador da pátria, ou melhor dizendo a falta deles, o que mais chama a atenção por seu impacto direto contra a população negra é a pretensão de legalização do porte de arma cumulado com a carta branca às autoridades policiais para matarem sem investigação penal e com o estabelecimento da pena de morte.

O direito à vida é o direito mais básico de qualquer ser humano. O Atlas da Violência de 2018 mostrou mais uma vez que a população negra jovem é a maior vítima de mortes por arma de fogo no país. Morremos duas vezes e meia mais do que os brancos. Somando-se a isso a maior presença de pessoas negras nos cárceres, não é difícil concluir que o projeto do presidenciável será um projeto genocida da população negra.

Infelizmente já não são raros os relatos de mortes de pessoas negras vitimadas por tiros de policiais que as “confundiram” com criminosos. Permitir que qualquer pessoa haja da mesma forma que a polícia já vem agindo em relação à população negra, ou seja, ter uma arma e atirar contra quem se achar que é criminoso, quando se tem no subconsciente coletivo a imagem do negro como bandido, será permitir que os índices de assassinato desta população aumentem exponencialmente. Quando não vitimados pela polícia, serão vitimados pela população em geral ou por criminosos, ou ainda, se presos, justa ou injustamente, serão mortos pelo estado dentro da prisão.

Um candidato racista que incita o ódio contra a população negra e quer permitir o seu extermínio não pode chegar à presidência do país com a maior população negra fora da África.

Por esses motivos, e por muitos outros, eu sendo negro digo: #elenão!

 


Gabriel Alex Pinto de Oliveira advogado, mestrando em Gestão Tributária pela Trevisan, pós-graduado em Direitos Fundamentais pela Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, bacharel em Direito pala Universidade Presbiteriana Mackenzie, com experiência na área de Direito Tributário e no estudo das relações étnico-raciais afro-brasileiras.

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