Estamos em dezembro, bem próximo às festas de final de ano, e como reflexão fica a sugestão de que poderíamos “novembrar”, termo que acaba de ser inventado para destacar que todo mês de 2022 ou até dos anos seguintes deveria ser destinado à Consciência Negra, com inúmeros eventos, palestras, seminários, lives (as conversas que se tornaram moda na pandemia) e marchas por todo País. É bem verdade que a cada ano se espessa a lista de acontecimentos em torno do mês da Conscientização Negra neste País. No último novembro foi ainda mais especial porque se celebrou os 50 anos do 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, que está intrinsicamente ligado à própria história do movimento negro.
O bom mesmo seria se o País resgatasse para 2022 o significado da resistência do dia 20 de novembro, do não apagamento, e de tudo que se relaciona à preservação histórica do povo negro brasileiro. Deveríamos todos (a população brasileira) nos unir para que não percamos as cotas raciais, ao contrário, para que sejam expandidas no âmbito das universidades e no campo do trabalho; que realmente possamos combater a brutal violência que mata a cada 23 minutos um jovem negro; que possamos abrir oportunidades para os sete em cada dez brasileiros que são negros e perderam o emprego nesta da pandemia. Deveríamos nos “novembrar” , portanto, no combate aos vários tipos de racismo, seja estrutural, institucional ou ambiental.
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, um dos ícones da Educação neste País, reforça à reportagem do Geledés que Zumbi representa lutas por construção, e não por domínio. “São lutas pela construção de uma sociedade, de uma nação, em que estejam todos os integrantes. A diferença serve para nos unir. Não há um ser humano exatamente igual ao outro, muito menos não há grupos culturais que sejam cópias uns dos outros. Cada cultura tem a sua originalidade na interpretação do mundo e na construção da sociedade”, diz ela. “No que diz respeito à consciência negra é necessário que se compreenda não unicamente o interesse dos afro-brasileiros, mas de todas as pessoas brasileiras ou que vivam no Brasil”, arremata Petronilha.
No processo de luta e resistência do povo negro, neste ano eleitoral, é preciso estar atento e forte para que as pessoas negras, especialmente as mulheres e LGBTQI+, passem a ocupar mais cargos tanto no Executivo quanto no Legislativo. Portanto, em 2022, vamos todos “novembrar” nas urnas. “O 20 Novembro significa uma referência de resistência, de resiliência. 20 de novembro é a memória de que não podemos desistir, de que há esperança, de que a gente vai virar um jogo, de que a gente vai ser capaz de construir dias melhores”, enfatiza a presidenta do Geledés, a historiadora Antonia Quinhão.
O 20 de novembro, como a data da Consciência Negra, atravessou cinco décadas, inclusive com tardia institucionalização, que se deu pela Lei federal 12.519, 32 anos depois de inaugurada, em 2003, durante o governo de Dilma Rousseff. O “20”, como ficou conhecido, se iniciou antes mesmo da oficialização do Grupo de Palmares, em 1971, no Clube Náutico Marcílio Dias, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, com a proposta do dia da morte de Zumbi como data comemorativa.
Se Palmares hoje está na memória coletiva da comunidade negra muito se deve aos estudantes gaúchos de 1971. Em 2022, precisaremos retomar essa enorme significância do Quilombo de Palmares, que já foi tema do desfile da Salgueiro, do espetáculo de Augusto Boal Arena Conta Zumbi, de 1965 e em 1978, da letra de Sampa, de Caetano Veloso. Como bem destacou a Geledés o professor e jornalista Edson Cardoso, o disco África, lançado em 1976, pelo cantor e compositor Jorge Ben Jor (na época conhecido apenas Jorge Ben), já era um prenúncio da formação do Movimento Negro Unificado (MNU). “O disco África vem com a música Ponta de Lança Africana. Olhem a data do disco: dois anos antes do início do MNU, que se deu em 1978. O disco fala de Zumbi dos Palmares e Jorge Ben faz uma interpretação dramática. Eu fiz um poema sobre isso”, conta Cardoso.
No próximo ano, a juventude negra deste País, que está sendo sistematicamente assassinada aos olhos da nação, precisa seguir com muita coragem, muita força e determinação, se espelhando no grupo de estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que acortinado pelo mais duro período da ditadura militar, em que nos porões das delegacias a tortura corria solta, desafiou o 13 de maio. Os jovens negros gaúchos de 1971 conseguiram resgatar a tradição da resistência negra, em que Zumbi se tornou seu símbolo máximo.
“Como se pode observar nos documentos do Grupo Palmares, a proposta do Dia da Consciência Negra é de construção de consciência histórica, de uma agenda historiográfica em que as pessoas negras deixam de ser tratadas como sujeitos sem ação e passam a serem reconhecidas em sua agência em defesa da liberdade e da própria construção deste país. É por isso que o grupo aciona o 20 de novembro e a imagem de Zumbi de Palmares como o reconhecimento de abolicionistas negros, a luta pelos quilombos, a imprensa negra, os clubes negros e as irmandades”, explica à reportagem do Geledés a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto.
Historicamente, nos relatos escritos e nas falas, o nome mais lembrado do Grupo Palmares é do poeta Oliveira Silveira, biografado pela professora de Culturas Afro-gaúchas, Sátira Machado. Sátira recorda como foi o 20 de novembro de 71. “Neste dia, o poeta gaúcho foi aos jornais para divulgar o encontro dos estudantes negros”, diz. Estavam entre eles Antônio Carlos Côrtes, Ilmo da Silva, Vilmar Nunes, Jorge Antônio dos Santos (Jorge Xangô) e Luiz Paulo Assis Santos, que costumavam se encontrar em frente à tradicional Casa Masson da Rua da Praia, no centro de Porto Alegre. “Olha, vai ter um evento no clube Marcílio Dias lá em alusão ao 20 de novembro para o Zumbi”, teria dito ele ao deixar pronto um artigo que seria publicado no dia seguinte no Correio do Povo. A estratégia de comunicação estava pronta e como Sátira, diz, “Oliveira Silveira não dormia no serviço”.
Neste resgate histórico, é necessário sublinhar que Oliveira Silveira certamente foi um líder no enfrentamento ao Dia da Abolição, mas as mulheres negras também fizeram parte dele, havendo, inclusive, apagamento de suas contribuições. Ao lado de Silveira, estiveram Helena Vitória Machado, Anita Abad, Antônia Mariza Carolino, Marli Carolino, Marisa Souza da Silva, Vera Daisy Barcelos, Maria da Conceição Lopes Fontoura, Margarida Maria Martiniano Ramos, Irene Santos, Jeanice Ramos, entre outras.
“A falta de referenciais e esse ‘delay’ na produção de uma história que contemplasse as experiências negras, acabou provocando lacunas em relação à história de algumas figuras. Então foi concretizado no nosso imaginário figuras como a Dandara, Aqualtune, Acotirene, que são extremamente importantes pelo o que elas mobilizam, mas ainda em termos históricos, nós sabemos pouco sobre essas figuras e não é sobre elas. Nós sabemos pouco sobre a trajetória das mulheres narradas pela história oficial”, diz a historiadora Taina Silva Santos. Portanto, cada vez mais, as mulheres negras deverão ocupar lugar de honra e protagonismo nos futuros 20 de novembro.
Taina ainda avança quando reflete sobre a agenda do próximo ano. “No Brasil, as cotas tiverem um impacto muito importante nas universidades, mas a gente precisa expandir e pensar um pouco mais a política de ação afirmativa, e aí estou pensando no campo da história mesmo, para pensar as bases da construção desse conhecimento. Os acervos históricos precisam ser organizados, no sentido de contemplar as experiências negras, e os próprios fundos precisam ter essa preocupação com a preservação das memórias negras, e temos de ter recursos para essa produção de conhecimento histórico”, diz.
Em tempos de ataques constantes aos valores democráticos, não custa ressaltar que a delonga para a institucionalização do 20 de novembro esteve diretamente correlacionada ao contexto da ditadura militar. Mesmo com toda repressão da época, ativistas negros lograram realizar essas discussões referentes às questões étnico-raciais. No período de redemocratização, eles conseguiram ampliar a discussão, participando, inclusive, da Assembleia Constituinte para a elaboração da constituição de 1988. “O 20 de novembro, como o Dia Nacional da Consciência Negra, é o único feriado no Brasil, a única data cívica, construída de baixo para cima. A gente não precisa de prefeitura, não precisa de governo para comemorar o 20. A gente faz o 20 de novembro do jeito que a gente acha que deve”, diz o professor Cardoso.
De toda forma, hoje há um revisionismo histórico sobre o papel de negros e negras no País. “O 20 de novembro nos remonta à organização dos quilombos e nos remete ao protagonismo da população negra. Eu acho que isso é muito importante. Isso nos leva à reflexão sobre a história que é contada e que, muitas vezes, principalmente nos livros didáticos, tem promovido o apagamento da importância da presença do negro na construção da história do Brasil. Então 20 de novembro nos mostra tudo isso, que é uma estratégia. Quando você não reconhece quando você não tem esses referenciais, eles são apagados, invisibilizados”, diz Atonia Quintão.
Para além do entendimento histórico, é a partir deste debate que se dá a agenda do movimento negro para 2022. “O 20 de novembro significa ter fé na juventude e acreditar que a presença desses jovens será fundamental para a futura transformação”, resume Antonia Quinhão.