Nos quatro anos em que trabalhei como jornalista e crítico, tomei o cuidado de evitar resenhas e comentários de artistas nacionais. Não queria passar pelo constrangimento de ter que encontrá-los nos baixos da vida e ter que ouvir críticas à crítica. Sei como é estar dos dois lados do balcão.
Mas quando Michael Jackson juntou-se a James Brown no grande Apollo dos céus, e a Folha me pediu um artigo, não imaginava a repercussão que isso teria. Amigos, inimigos, conhecidos e desconhecidos se dividiram num contra e a favor que me fez agradecer por não morar em Gary, Indiana.
Você pegou pesado, muitos disseram. Juro que não foi minha intenção. Simplesmente é impossível falar de Jacko sem lamentar o bizarro “freak show” em que se deixou envolver, a terrível sensação de obra inacabada. Um crime, uma perda irreparável causada por um “serial painkiller”.
Aí fui convidado a assistir à pré-estreia de “This Is It”, documentário da turnê que marcaria a volta triunfal de Michael a Londres e ao mundo, que o esperava como se nada daquelas fofoquinhas e maledicências dos tablóides, do bebê pendurado na sacada, do nariz -ou de sua ausência-, importasse.
“Mea culpa, mea maxima culpa”! O cara estava no auge da forma, dançava como um Nijinski pop, cantava, mesmo se poupando, como sereia, e controlava cada aspecto do espetáculo como uma dominatrix em cujo chicote estava escrito “It’s all for love”. Impressionante.
Com sua fragilidade de Fred Astaire sequelado por um sem-número de cirurgias, o que aquele menino de 50 anos desperta em nós é a vontade de levá-lo para casa, protegê-lo. Até que começa a se mexer de um modo estranho. E o homenino se metamorfoseia em síntese dos últimos cem anos da história da dança, do clássico ao jazz, passando por break, funk e rock com uma facilidade assombrosa, um verdadeiro mutante/ zumbi de “Thriller”, porque, na boa, o cara não é normal.
Perde mais de dez minutos explicando em minúcias o que quer de um acorde, muito além da teoria musical. Dirige banda, bailarinos e até escavadeira com perturbadora docilidade. Um verdadeiro leonino. O cara.
Entre os maiores sucessos de bilheteria no mundo todo, esse documentário que vi, e que pretendo rever e ter em DVD (ou blu-ray ou o raio que for), é o mínimo que Michael poderia fazer em seu “grand finale”. Um tapa com luva de pelica em seus detratores, um apagar das luzes dramático e emocionado, o adeus de um gênio na intimidade de seu habitat: o palco.
He’s bad!
*PAULO RICARDO é cantor e compositor.