Enfrentamento do Racismo em projeto democrático: A possibilidade jurídica

Anais do Seminário Internacional ” Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos

 

Por Dora Lúcia de Lima Bertulio.

Introdução
As correntes críticas do direito, no Brasil inseridas no Movimento de Direito Alternativo, têm permitido uma série de aberturas nos paradigmas da Ciência Jurídica em que discussões anteriormente marginais – socialistas, comunistas…- sobre a não neutralidade do direito, hegemonia e conflito de classes, especificamente, entram cada vez mais no corpo do jurídico. Esse enfrentamento e essas discussões permitem que o jurista não só revela e veja a complexidade das relações sociais como integrante do processo do conhecimento jurídico, como abre a essa complexidade das relações sociais a oportunidade de fazer parte daquele processo e nele interferir.
Esse artigo propõe-se a trazer os dois lados da medalha:

1.abrir, dentro do conhecimento jurídico, a discussão do racismo como fenômeno social real e interferente nos conflitos de classe, na qualidade de vida dos indivíduos, no acesso á justiça e , portanto, restritivo, quando não impeditivo do exercício dos direitos de cidadania;

2. do lado oposto e caminhado em sua direção, a manifestação do segmento subordinado a essas relações raciais racistas no sentido de introduzir medidas, nesse campo, que revolucionem o status quo de hierarquização racial como procuração para o aceso aos benefícios sociais, para estabelecer a igualdade material.

 

Essa igualdade deve ser aqui entendida como dar oportunidade aos indivíduos dentro de uma sociedade o desenvolvimento adequado de suas capacidades, para que os benefícios sociais possam ser conseguidos com igual oportunidade.

 

A idéia é apresentar remédios que se incorporem tanto ao sistema jurídico nacional quanto à discussão e à produção do conhecimento sobre sistema jurídico. O argumento final é o da absoluta impossibilidade de realização de projetos políticos democráticos que convivam com a desigualdade racial. Isso pressupõe a necessidade de se adentrar na discussão política propriamente dita e introduzir, na agenda política nacional – da sociedade política civil -, o racismo como elemento básico de conflito e como determinante da má qualidade de vida da população brasileira. Concomitante com essa realidade, é preciso considerar a exclusão do segmento populacional negro do acesso aos direitos fundamentais, principalmente saúde, educação, trabalho e participação política. Em uma linha prospectiva, pretende-se também abordar como a realidade norte-americana sobre raça e os programas legislativos anti discriminatórios podem ser vistos como possibilidade concreta da mudança social, quanto ao comportamento racista, também para a realidade brasileira.

 

 O Valor Jurídico de Igualdade Frente aos Valores Raciais

 

A idéia de igualdade no Direito Brasileiro Analisada por meio da Formação Racial

 A instituição do direito na sociedade brasileira participa como elemento privilegiado na cadeia institucional encarregado de “resolver” o que dizia ser “o problema negro” brasileiro, estabelecendo valores jurídicos-morais racistas. Por outro lado, as correntes criticas do direito têm dedicado pesquisas e debates extensos sobre o real papel dessa instituição nas diversas formações sociais no mundo moderno ocidental. Desses estudos, é possível falar-se de uma idéia consolidada, sela qual, a não-neutralidade do direito e, via de conseqüência, o seu uso como instrumento de mudança, seja de valor sociais, seja de comportamentos,cuja combinação desemboca, inequivocamente, na reavaliação dos conceitos de justiça, igualdade e liberdade.

 

Em todas essas instâncias, democracia é o elemento chave para a perspectiva de melhoria de qualidade de vida dos indivíduos e que deve incluir o mundo da natureza e da cultura, igualmente. Isso significa que a sociedade democrática , pensada a partir da revisão e crítica dos valores jurídicos, estaria, inexoravelmente,determinada a alcançar os diversos segmentos sociais no interior de dada sociedade. Esta é a base da crítica do Direito e essa é a perspectiva na qual as relações raciais no Brasil são paradigmáticas para apreensão da falsa representação democrática que elimina o direito à igualdade, liberdade e justiça para a maioria dos “representados”. Tratando-se do universo da população negra no Brasil, é a totalidade dos negros que se encontra for a do circulo dos direitos das democracias ocidentais.

 

A articulação que o sistema jurídico organiza nos sociedades americanas pós-escravistas, como o fim de estabelecer normas que consolidem os valores que esse mesmo sistema implementa, está sedimentada na ideologia racista. Nesse sentido, os trabalhos de discussões de A. Leon Higginbotham, Derrick Bell e Kimberle Crenshaw podem ser analisados em termos de Américas. A linha de suporte do direito no plano teórico filosófico, que justifica essa ação, está desenhada na falsa afirmação e apreensão de que o acordo tácito social com os valores básicos de igualdade, liberdade e democracia estão sendo cumpridos. Essa articulação, que se mantém viva graças à internalização dos valores racistas no todo social, deve, então, seguir os padrões e direções da instância maior, que é a supremacia branca das sociedades ocidentais, determinando o lugar do outro, do não idêntico, na estrutura social e de poder político. A utilidade do sistema legal se consolida pela sua própria natureza de sistema legal, ou seja, de ser a instituição do Estado encarregada do controle social, da resolução dos conflitos e, conseqüentemente, o lugar da Justiça.

 

Na realidade brasileira, é possível afirmar que, já no período escravista, as normas jurídicas e o correspondente controle judiciário estabeleciam e perpetuavam as diferenças raciais entre brancos e negros, identificando estes e escravos, simbolicamente, como sendo um só. Essa indeterminação dentro de um sistema de privilégios legais, como é o caso da sociedade escravocrata, levava a idéia do escravo para a totalidade dos indivíduos negro e, ao mesmo tempo, equalizava os privilégios em razão da condição de ser branco e não pela condição de ser ou não escravo. A liberdade passava a ser uma categoria não universal, mas hierarquizada por raça. Para os indivíduos negros, a liberdade significa tão-somente não ter um “senhor” legal, o que me permite induzir que, para esses indivíduos, igualdade significa ter o tratamento igual para negros. Adequadamente, os indivíduos brancos também recebiam e internalizavam o mesmo comando. “Daí a César o que é de César” , mas sem confundir os Césares!

 

Um exemplo de como as leis no período final da escravidão sugeriam que a liberdade do sistema escravocrata não importava em considerar um negro cidadão comum pode ser visto desde a Lei do Ventre Livre, a primeira lei abolicionista, editada em 1871, que determinava que os filhos de escravos, a partir daquela data, seriam livres. Entretanto, a mesma lei regulava que essa liberdade somente seria completa aos 21 anos, ou seja, após o “liberto” ter pago o período que permanência com sua mãe, na primeira infância . Até os oito anos, a criança podia ficar com a mãe e, depois, o senhor-de-escravo tinha a opção de, ou entregar a criança ao governo – historicamente o advento da institucionalização das crianças abandonadas no pais -, ou utiliza-se dos serviços da criança até a idade de 21 anos completos – Lei n° 2.040, de 28 de setembro de 1871. Mais próximas da abolição eram as Posturas Municipais que regulavam o cotidiano das relações interpessoais e sociais nas comunidades e que, indistintamente, referiam-se a negros, pretos, libertos ou cativo para diferenciar os indivíduos negros do homem comum. Note-se que a palavra branco não é regularmente usada, aliás, como não é até hoje. No direito criminal – muito embora o ser escravo não desse ao individuo a prerrogativa de ser sujeito de direitos – quando o crime era cometido por escravos, o julgamento era feito segundo as normas do direito que, em tese e na prática, não se lhe aplicavam. A justificativa dos juristas de então era que o crime, por sua característica de ofensa à sociedade, deveria ser punido qualquer que fosse a condição apresentada e que, no momento da prática do crime, o escravo tornava-se responsável e, portanto, sujeito à punição penal adequada!

 

 

O período de transição e de sedimentação da República, com a edição da Constituição Republicana de 1891,apresenta mudanças raciais no sistema legal formal. Nenhuma diferenciação entre os indivíduos poderiam ser feita pela lei. A declaração de direitos da nova Carta Constitucional era a salvaguarda. Na arena política, entretanto, o “problema” negro permanecia.formalmente, todos os ex-escravos eram tão cidadãos da República quanto qualquer outro branco. No cotidiano das relações, entretanto, não eram titulares daqueles direitos fundamentais até mesmo nas relações de trabalho para os que tinham sido escravizados. O trabalho livre foi entregue aos europeus imigrantes. Estes, muito embora jamais tivessem tido contato com as terras brasileiras,eram “mais competentes” para o trabalho, especialmente porque tinham a ética do trabalho livre, o que falava aos negros acostumados a regimes espúrios como a escravidão. Esta é uma razão que me permite dizer que a proposta de exclusão dos indivíduos negros no mercado de trabalho formal e sua substituição pelos imigrantes europeus que tinham incentivada, muito especialmente pelo Estado, sua inclusão na sociedade local, não se restringe na simplista explicação de que, entre as contradições do capitalismo, está a formação do exercito de reserva, ou lúmpen, ou seja, que faz parte do sistema a existência de indivíduos “marginais” que pressionariam a contradição fundamental- capital/trabalho. Tratava-se, ao contrário, de uma política racista de não permitir á população afro-brasileira o desenvolvimento e a participação político-econômica na nova Nação que se impunha na Ordem Mundial.

 

Dezenas de outros direitos foram, igualmente, negados à população negra à época, por meio de eufemismos legislativos e fortemente reforçados pela elite branca nacional. Uma olhada na história das Constituições brasileiras é suficiente para perceber o uso do aparato ideológico jurídico na manutenção da subordinação racial dos negros. Essas peculiaridades de nossa formação social devem ser consideradas com rigor nas discussões do principio constitucional de igualdade, em qualquer abordagem que se pretenda fazer e, via de conseqüência, na discussão da democracia.

 

A formação dos Valores Raciais … E a Igualdade
A idéia do ser negro no Brasil, formada durante o período Colonial e Imperial, foi adequadamente reproduzida e sedimentada na Primeira Republica pelos literatos, políticos e acadêmicos e eu ao racismo brasileiro a especificidade que hoje vivemos. É a convivência aparentemente tranqüila entre negros e brancos, ao lado da segregação absoluta. Todos iguais, convivendo com a ausência completa da participação da população afro-brasileira na vida política e administrativa do pais, nos setores privilegiados da sociedade, na academia, culminado com a invisibilidade “natural” da população negra no cotidiano das relações sociais. Entretanto, no imaginário social, a idéia prevalecente de ausência de conflito nas relações raciais brasileiras confirma o arranjo competente da ideologia racista e democracia racial. “Todos nós brasileiros somos iguais e, de alguma forma, miscigenados”. Essa afirmação, mesmo omitindo, a palavra branco para adjetivar brasileiro, possui sentido no inconsciente coletivo da população como um todo,qual seja, a de aceite da aparente inclusão do segmento negro na idéia de população brasileira e, paradoxalmente,o conhecimento de sua exclusão.

 

O século XIX, especialmente a partir dos anos 1850, quando as políticas de contenção e finalização do trafico negreiro estavam definidas, vê a elite política, intelectual e econômico brasileira, intensificar sua preocupação sobre o destino dos negros escravos, e número evidentemente superior aos europeus. Nesse contexto de conflitos e, ao mesmo tempo, de utilização do trabalho de negros e negras e sua exclusão de participação como elemento formador da sociedade, é que se sedimenta,com muita propriedade, a idéia do ser negro na sociedades brasileira. O direito, então, foi contribuidor privilegiado na definição de espaços, sentidos e até humanidade da população negra, quer escrava, quer livre ou, após a abolição, “cidadã”.

 

Embora no houvesse, como ocorreu nos Estados Unidos da América, uma explicita nomeação do lugar negro, por meio dos artifícios que bem caracterizam parte da cultura política brasileira, a mesma exclusão foi e é feita por meio de subterfúgios ideológicos e eufemistas que, na prática, tiveram e têm o mesmo resultado segregador da plaquinha only white, ate no fim dos anos 1960 nos Estados Unidos. Assim, desde a discussão entre a elite intelectual e política dos fins dos anos 1800 no Brasil sobre o destino dos negros pós-abolição e na história da formação sócio-política brasileira, até os anos 1930, o assunto raça/nacionalidade fica cada vez mais presente em todos os níveis da vida política nacional.

 

Todo o esforço feito pela elite da época, especialmente com os programas de imigração européia já referidos, não alterou significativamente o quadro de composição racial na população brasileira. Negros e mestiços continuam a frustrar o desejo de branqueamento nacional. A discussão racial faz parte de toda a produção literária, jurídica e política do início do século e os arranjos antropológicos e sociológicos vêem em socorro dos projetos políticos. Seguindo o seu papel no aparato ideológico do Estado, o sistema legal encarrega-se de estabelecer o ponto da legitimidade embebido no discurso legal. Os discursos opõem-se e intercalam-se, simultaneamente, para fixar, no senso comum, a idéia do ser negro e sua representação social. É correto afirmar, daí, que a história da formação do povo brasileiro, das discussões do botequim as Congresso Nacional na Primeira Republica, foi também a historia da desqualificação da população negra, tanto como integrantes desse mesmo povo como sujeito de direitos na plenitude da ordem jurídica que se solidificava .

 

E o depois não ficou diferente. Apenas camuflou-se adequadamente aos novos requisitos de dominação racial. O arranjo é feito pelas elites nacionais e, ao mesmo tempo, produzido e reproduzido no todo social, já que a percepção da presença negra na composição do povo brasileiro era irrecusável. Os anos 1920 e 1930 vão, então conhecer uma mudança estrutural no comportamento racista brasileiro e da própria apreensão do ser negro. Ao invés da noção de que o sangue negro desqualifica o sangue branco, este qualifica o sangue negro. Como essas palavras de ordem e, novamente, com a contribuição certa das instituições do Estado, o discurso da miscigenação e do embranquecimento tomo o lugar do tema raça. De negros e brancos todos tornaram-se brasileiros, morenos mulatos (sic). Esse discurso acomoda a possibilidade da prática racista continuada em que, “coincidentemente”, o pleno acesso à educação, ao trabalho e ao poder político e econômico continua exclusivo para os não-morenos, os não-mulatos e qualquer outra discussão sobre discriminação ou segregação passa para o plano que aponta para as questões sociais (?) e não raciais.

 

Sempre reflito sobre o perigo do óbvio. O óbvio é tão óbvio que não presta ser dito e, por não ser dito, não precisa ser pensado e, de tão óbvio, torna-se invisível. Esta é a representação social do racismo brasileiro. A naturalização dos fenômenos culturais, retirando-os do mundo cultural para o mundo da natureza, implica a inquestionablidade daquele, na medida da sua identificação com este . É o passo para a impossibilidade de proposições alternativas ou de mudanças estruturais para dada realidade. O retorno a justificativas e enredamentos que justificaram ações racistas em períodos anteriores da história é um recurso largamente utilizado pelos sistemas de dominação racial para a manutenção da subordinação ao grupo dominante. Já quando estudavam as diversas relações que envolveram a mudança do trabalho escravo para o livre, no ultimo quarto do século passado, Florestan Fernandes e Ademir Gebara afirmaram que a não inclusão da força de trabalho ex-escrava, naquele período , para o trabalho formal assalariado tinha base no despreparo daquela população para as regras e métodos do trabalho, dentro da étnica da nova relação capitalista. Em 1990, ao chamar as diferenças e discriminações sociais – que devem significar discriminação em razão de diferenças na aquisição de renda – pra justificar a posição inferior e marginal de todo o grupo negro em todos as áreas da vida brasileira, eu me sinto ser levada para a mesma questão da ética do trabalho livre em que, provavelmente, negros ainda não estariam aptos para tal exercício.

 

Paralela a essa realidade e tentativas de evitar qualquer discussão que envolva as relações raciais, o sistema repressivo do Estado, mantendo a estratégia da segregação e marginalização, encarrega-se, por meio da criminologia, de manter e reproduzir o estereótipo do negro marginal e de expor à sociedade a propensão do indivíduo negro ao crime. Novamente o “véu”do cientificismo assegura a competência do discurso e os índices de criminalidade negra permitem, já que visualizados e não analisados, a construção de valores raciais no interior da sociedade estabelecendo ligação direta entre delinqüência e raça. Raça significado raça negra – a branca não entra na discussão – e, mais importante que as razões dessa “tendência” ao crime, a idéia da periculosidade do indivíduo negro na sociedade, adequado às suas degenerações .

 

Somente a partir de 1990, os cientistas sociais brasileiros passaram a investir na questão da chamada “naturalidade da criminalidade negra” para desmitificar essa verdade. Esses estudos ainda são marginais e permanecem na sociedade brasileira a idéia da que a criminalidade é negra, o que autoriza todo o sistema de repressão do Estado a privilegiar a população negra e os bairros predominantes negros quando da ação da política de combate ao crime. Igualmente, o sistema judiciário tratará o acusado negro como predisposto ao crime o que, diante do paradigma do direito penal, significaria incluir como componente d crime o fato de pertencer à raça negra e, igualmente, eleger a categoria de excludente ou fator de diminuição da pena o fato de o acusado pertencer à raça branca. Ambas as premissas inconstitucionais.

 

Malgrado ser minoritária e não majoritária, não só por que elite, mas também numericamente em termos populacionais, a sociedade branca utiliza-se de mecanismos sofisticados e poderosos, seja qual seja, a reprodução sistemática das teorias e resultados do racismo cientifico combinado, com assimilação teórica e prática segregacionista. Esse conjunto de valores raciais que se produz e reproduz, aparece e reaparece, é um dos projetos mais eficientes no qual a hegemonia branca colono-escravista brasileira se empenha, de forma a manter a sua dominação em um campo de cultura estéril – todos iguais.

 

A ação e reação da população negra estarão, nesse sentido, inexoravelmente ligadas a essa construção de valores. Igualmente, qualquer projeto político que efetivamente se proponha a mudar a cara da realidade das relações raciais brasileiras, no sentido de diminuir os efeitos da discriminação e incluir os indivíduos do grupo descriminado na vida política nacional com a conseqüente aferição dos benefícios sociais, somente se concretizará a partir do reconhecimento dessa realidade e de seu nefasto resultado.

 

As Possibilidades Jurídicas de Combate ao Racismo
O Cenário
Para se iniciar uma discussão sobre mecanismos legais que implementem ou determinem políticas específicas cujos objetivos sejam minimizar os efeitos históricos e atuais da discriminação racial, o Brasil , singularmente, requer uma discussão anterior, em razão de sua especificidade histórico-cultural, qual seja, discutir o resultado antes de se fala na questão.

 

Assim, o primeiro argumento contrário à implementação dessas medidas é a negativa técnica das comissões de constitucionalidade da Câmara Federal, que alegam ser impossível a aprovação de qualquer legislação que, de alguma forma, fira a Constituição. É o óbvio. Mas, são os argumentos dos poucos juristas que enfrentaram ou enfrentam essa abordagem – a definição da constitucionalidade de qualquer medida de privilégio racial – que é como entra o verbete para aquelas políticas – , sequer propostas de fato. Este requerimento,entretanto, vem propositalmente desviado de sua real inquisição para desestruturar, pelo menos no primeiro momento, a exigência do direito sem qualquer discussão de mérito. E mais, insistem que propor tratamento diferenciado para grupos de pessoas em razão de raça está contrário ao principio de igualdade, secular em nossa Constituição e sedimentado em todas as sociedades modernas. Este argumento, muitas vezes, ainda traz embutido o pressuposto das cotas, o que preenche totalmente a impossibilidade jurídica dentro de sua lógica. Destinar x% de vagas, por exemplo, para determinado grupo racial seria determinar, a priori, quem entra e quem não entra.

 

Outro grupo de argumentos encaminha a discussão para o assunto das supostas cores brasileiras. Como implementar medidas específicas para os negros, se é impossível detectar no Brasil quem é negro ? Os adeptos dessa preocupação imediatamente comparam os Estados Unidos com o Brasil para concluir que lá, sim, qualquer pitada de sangue negro faz de um indivíduo negro, e que esta caracterização definitiva e inequívoca pode ensejar políticas para esse grupo, já que podem ser caracterizados facilmente. Ao contrário, se buscássemos nós a pureza racial para determinar e excluir brancos – isso deve ser pesado com a cautela – todos teríamos, de alguma forma, algum sangue negro, o que não permitiria qualquer exclusão e, conseqüentemente, qualquer inclusão.

 

Há inda uma terceira vertente de “princípios jurídicos de igualdade”, que entende ser a discriminação da natureza do ser humano. Se se pensasse em corrigir a discriminação impetrada contra o grupo negro, como ficaria a sociedade brasileira ao dividir o espaço entre gordos, carecas , judeus, e… os portugueses? Como haveriam de se sentir ao não verem ser contemplada a sua desvantagem diante de outros grupos europeus? Em um Seminário que discutia o Plano Nacional de direitos Humanos, realizado em Porto Alegre, em fevereiro de 1996, um dos representantes do Movimento Nacional e Meninas de Rua levantou a questão pessoal dele que, descendente de espanhóis de uma etnia minoritária naquele pais, também seria descriminado – se lá residisse obviamente – e que, portanto, falar somente em populações negras seria, também, uma forma de discriminar. Novamente, inconstitucional e irracional, pois abriria uma brecha divisionista entre os diversos segmentos – e grupos? – no interior da sociedade, de forma a minar o sentimento nacional e unívoco da sociedade brasileira .

 

Hoje, um quarto argumento assegura que qualquer iniciativa que procurasse, de qualquer forma, diminuir os efeitos da discriminação racial contra os negros, por meio de medidas legislativas específicas, inverteria a questão. Não se poderia pensar em consertar um erro com outro erro. Isso se configuraria discriminação “ao contrario”, o que significa que o grupo branco seria, agora o penalizado. E qual justificativa para qual pena? Medidas de discriminação positiva, como esse grupo de se refere, são na verdade, medidas de discriminação negativa para os brancos, que perderam empregos, casas e estudo. Além disso, conduzirão a sociedade para o caos, na medida na medida em que esse s programas privilegiam os menos capacitados em detrimento dos mais capacitados, exclusivamente em razão de raça. O único registro que se deve buscar e manter para que vivamos em uma sociedade justa e democrática, de acordo com os princípios de direito, é o mérito.

 

Provavelmente, alguns outros impedimento s que frustram o pensamento em medida legislativas que possam interferir positivamente na consecução da igualdade racial para o brasileiro, da elite ou não, devem esta sendo moldados para que a intelligentsia branca – a academia, talvez – transforme-os em verdades. Alguns deles talvez se acoplem, com outras razões, ao pensamento delineador de cada uma das posições acima, mas creio ter pontuado os argumentos fundamentais.

 

Desses argumentos, gostaria de sublinhar dois pontos que, talvez, seguram a força da proposta de impedimentos e que, certamente, não estão expostos. Talvez porque os seus argumentadores não perceberam a totalidade de seus princípios e comportamentos ou, mais provável, porque faz parte da eficiência da negativa não tocar na essência de seus argumentos.

 

O primeiro é a premissa de que deve haver o fenômeno para que haja proposta de sua eliminação .
A sutileza da ideologia racista na imagem e apreensão da sociedade brasileira impede que, organizadamente, os seus integrantes observem e reajam a fenômenos que bailam em suas cabeças e vidas, negativa ou positivamente, mas que apontam para uma ou duas respostas definidas e conseqüentes, fazendo crer que não há o problema. A discriminação racial neste pais é a própria nação de identidade racial se apresentam como uma moeda em que os dois lados permanente são iguais. Assim, brancos e negros não percebem a segregação racial como um lado da problemática de suas vidas. Ao mesmo tempo, percebem a segregação como uma realidade dada. Isso implica que, quando perguntado sobre a estrutura de desigualdade racial no pais, imediatamente a idéia de que não há essa desigualdade aparece pronta. Entretanto, em seguida, como um olhar ao seu redor, a complementação da resposta da resposta também aparece prontamente – os negros não estão distribuídos na sociedade, ocupando espaços iguais com os brancos, mas o que acontece é que as oportunidades são dadas e os mais competentes galgam essas escadas. Não há responsabilidade social sobre a segregação dos negros para locais onde os serviços públicos são escassos, ou das Universidades e do mercado de trabalho. Os indivíduos, per se, são os responsáveis.

 

Dessa contratação, o reconhecimento pela sociedade de que o fenômeno do racismo é presente e interferente não se explicita em níveis concretos. Há como que uma abstração para essa percepção. A apreensão do fenômeno fica fluida. Entretanto, muito singularmente, os argumentos contrários à criação de políticas institucionais destinadas a recompor o nível de desigualdade racial existente – recompor porque não vejo perspectivas de eliminação, mas de arranjos que minimizem a realidade da exclusão e discriminação – geralmente vêem de quem não discute a propriedade do fenômeno, mas parte de sua existência para não aceitar programas específicos que diminuam seus efeitos. Se isso é verdade, há duas afirmações contraditórias no interior desse universo. Uma que não acredita as desigualdades “sociais” à existência de relações raciais racistas, e outra que percebe a existência do racismo, ou seja, percebe que os negros, em razão de serem negros estão em desvantagem na sociedade mas por conta de que eles próprios, os negros, não se colocam frontalmente para a conquista de espaço. Aqui o argumento volta à afirmação primeira, ou seja, porque a desvantagem, com raras exceções e segundo esta linha argumentativa, corre por negligência ou displicência do próprio indivíduo negro. É racista a premissa, embora o resultado pareça não ser. Essas duas afirmações – elaboradas, em um primeiro momento, por indivíduos, em sua maioria brancos e pertencentes a classe média e de alguma forma envolvidos com discussões políticas interferentes – aos poucos entram na formação do senso comum e registram-se com a naturalidade da verdade.
Dessa visão que enxerga, digamos, com outros olhos, a realidade, surge o segundo ponto que entendo fundamental nas argumentações enunciadas: o mérito.

 

A meritocracia tem sido um valor criado e reproduzido nas diversas formações sociais e, enquanto parte integrante de processos ideológicos de dominação, é elevado a categoria de verdadeiro em si próprio. É como se o talento para o sucesso dependesse única e exclusivamente do individuo, sem qualquer interferência do meio. Não estou advogando a ausência ou impropriedade do mérito. O que ocorre é que as categorias que importam em mérito em qualquer das áreas das relações sociais somente se constituem em tal talento por meio de a prioris que são estabelecidos no contexto de valores de dada formação social. Isto posto, mérito não significa outra coisa que a competência especifica para determinada ação ou posição, de acordo com parâmetros preestabelecidos por algo ou alguém. Ainda que se objetivem esses parâmetros, eles serão sempre objetivados a partir de uma intenção – que será subjetiva.

 

Se o mérito é parte de um sistema de valor, que valores estão previstos na sociedade brasileira em se pensando o dado em se pensando o dado “raça”? Integrando os motivos específicos da formação social brasileira para apreensão e reprodução do valor social dos negros que me referi no segundo tópico, a sociedade brasileira é um resultado de dois dos mais poderosos processos de exploração e genocídio que a historia ocidental moderna experimentou: colonização escravidão. Esses processos tiveram base do seu sucesso na expropriação cultural e material dos povos antigos e, conseqüentemente necessitou de um arcabouço de valores conseqüentemente renovável para cumprir seus objetivos, mais como uma linha comum que é a inferioridade dos indivíduos e sociedades pilhadas. Essa característica deve ser entendida como um elemento diferenciador dos povos negros, índios e brancos, para se pensa nos valor e introjeções de valores que montam personalidades e comportamentos, mesmo através dos séculos, e que constituem uma das categorias do mérito. Nesse sentido, a matriz colonial e escravagista indicará, para o grupo dominante, os limites do que lhe interessa quanto talento par o sucesso, ou seja que meritocracia é.

 

Nessa linha de raciocínio, se voltarmos, ainda, as considerações feitas acima no segundo tópico, será possível detectar valores criados no interior da nossa sociedade que, a priori, determinavam mérito e merecimento em razão de pertencer a este ou a outro grupo racial. Insisto em que, embora o termo não seja usado na literatura brasileira escrita ou oral, a qualificação e apreensão da categoria racial dos indivíduos está sempre à frente de todas as situações. Na medida em que a diferença racial era e é elemento hierarquizador e não somente diferenciador – o que deveria ser o normal e natural, já que é um dado aberto, como sexo – a noção de mérito em uma sociedade racista será potencialmente racista. Portanto, o mérito branco será tão “meritório” quanto suas oportunidades para tal. E a oportunidade de qualificação será, então o ponto a ser perscrutado.

 

Pensado, ainda que geneticamente, com essas nuances, as questões postas sobre a propriedade na sociedade brasileira, de ser adotar políticas específicas de ação afirmativa para o grupo negro não se atêm á necessidade ou não de se adotar tais medidas, mas as justificativas caminham à frente das proposições. Essa constatação não é inusitada, visto que cumpre, adequadamente, o propósito da supremacia branca brasileira dominante, que sempre resistiu às discussões raciais para não pôr em risco seu poder.

 

As Premissas para Proposição de Medidas Legislativas de Combate à Desigualdade Racial

Na discussão do cenário que se apresenta no que diz respeito à interferência positiva de leis que minimizem a desigualdade racial rumo à igualdade de oportunidades, uma questão que ponderei, pinçada das diversas oposições anunciadas, foi da existência de racismo na sociedade brasileira e de sua responsabilidade na qualidade de vida da população brasileira, reforçando o fato da especial exclusão de toda população negra, tanto da vida nacional quanto do acesso dos direitos fundamentais. Estas são a meu ver questões que se fecham em uma só constatação: a desigualdade racial determina a desigualdade de oportunidades para a população negra brasileira. Essa é a premissa primeira para qualquer possibilidade de investimento no processo legislativo de proposições remediadoras de tal dano social.

 

Ainda que os olhos de todos vejam diariamente o que é ser negro no Brasil e como vivem e sobrevivem os mais de 60milhões de indivíduos negros ou as mais de 20milhões de crianças negras nas ruas das cidades, a formação histórico-política brasileira nos dá conta de articulações tais que inibem adequada percepção do fenômeno pela sociedade . Sequer a academia brasileira, supostamente o lugar onde o conhecimento se produz e reproduz, tem o racismo brasileiro como questão. O discurso sobre racismo ainda é marginal à produção acadêmica, é reproduzido o conhecimento sobre raça e racismo no palco da academia e está ausente na arena política e econômica. Malgrado todas as situações, algumas das quais trouxe à discussão neste trabalho o senso comum brasileiro continua a descarta a possibilidade de ser o Brasil um pais racista. Por outro lado, a literatura brasileira sobre racismo e desigualdade racial descritiva é extensa. O Instituto Brasileiro de Geografia Estatísticas (IBGE), órgão oficial encarregado de pesquisar demográficas no pais, oferece seus resultados, ainda que irrisórios, sobre diagnósticos racial, os quais são magistralmente analisados por diversos cientistas políticos, sociólogos e antropólogos que têm produzido trabalhos ilustradores sobre condição de vida, qualidade de vida educação da política negra, e é o que tem abastecido toda a comunidade que investe neste tema. Com toda insipiência dos dados, ainda assim qualquer questionamento sobre a existência do racismo no Brasil são respondidas afirmamente pela base de dados do IBGE.

 

A lei, entretanto, não funciona por si só, e a legitimidade é elemento básico para sua eficácia. A desconexão entre a apreensão social do racismo e sua incidência deve ser o primeiro elemento a ser trabalhado para o estabelecimento de medidas legislativas. O diagnóstico é outra peça-chave. A identificação racial em todas as esferas públicas e privadas – não só para dar conta das estatísticas, mas também para provocar a aceitação no e do indivíduo negro – constitui igualmente reforço para as proposições de ações afirmativas. Esses reforços não pressupõem aceite ou admissão das medidas, e seria piegas pensar nessa hipótese como necessidade que forçará as medidas legislativas no sentido de seus resultados.

 

A institucionalização de mecanismos de divisão nos diversos setores da população negra – especialmente em categorias coloridas que permitem aos negros de cor clara e em condições econômicas acima da medida do grupo negro, da mesma forma que aos quase brancos, a negação da ascendência racial indesejada – funciona como mecanismo singular na reprodução da desigualdade racial, mesmo e apesar de os dados do IBGE sobre a situação sócio-econômica de negros, brancos e pardos serem elucidativos da falácia dessa preposição. Os dados indicadores da diferença entre salários de brancos e pardos apresenta que os últimos recebem até 47% do salário dos primeiros, e a relação entre brancos e negros expõe que os um timos recebem cerca de 42% do salário dos brancos, para mesma função e formação.

 

A segunda premissa que deve ser analisada, quando a proposição de medidas legislativas que privilegiem determinando segmento ou grupo populacional, está inserida em sua própria proposição e pertence ao elenco de formalidades jurídicas para sua efetivação: qual é o segmento ou grupo populacional que será beneficiário das leis? Se o objetivo da proposta é o estabelecimento de medidas que interfiram positivamente para equalizar oportunidades aos grupos populacionais historicamente privados de igual oportunidades na sociedade – em razão de pertencerem à raça descriminada – , a resposta é simples. Serão sujeitos dos direitos estabelecimentos na nova lei os indivíduos pertencentes aos grupos discriminados e excluídos dos benefícios sociais, a fim de se estabelecer o necessário equilíbrio que viabilize oportunidades iguais nas relações sociais. Pelas razões e justificativas contidas neste trabalho, o grupo negro tem sido historicamente privado da participação e mesmo da inserção na vida nacional, em razão de pertencer a raça negra. É ele o grupo protegido ou legitimo para exigir o cumprimento das medidas adotadas.

 

Há um questionamento, feito especialmente pelos brancos, que sugere a dificuldade de identificar o indivíduo negro para o fim específico de benefícios nos programas de ação afirmativa, caso se concretize tal idéia. A preocupação é, na verdade, um princípio do direito. A especificidade na lei deve ser restrita. A caracterização dos beneficiários, então ,deve ser imprevisível! Eu não vejo dificuldade nessa identificação. Ao contrário, fico surpresa pela alegada impossibilidade dessa identificação. Ao contrário, fico surpresa pela alegada impossibilidade dessa identificação. Na história brasileira, e até hoje não conheço qualquer dificuldade da comunidade branca em identificar um indivíduo negro para privá-lo dos direitos básicos de cidadania, trabalho e, mesmo de sua própria natureza humana. Creio que a resposta mais sensata a essa preocupação com a legitimidades dos beneficiários dos programas especiais, cuja discussão pretendemos seja viabilizada, é que são negros os indivíduos negros. Negros porque são parte do grupo negro que historicamente vem sendo privado de tratamento igual e, via de conseqüência, de usufruir de oportunidades iguais na sociedade brasileira. As cores, grau e nível de descendência ou quantidade de sangue negro são falácias que o sistema de dominação racial branco nos incute como elemento de desarticulação de lutas e de exigência de direitos. Minha sugestão é que se proponha ao IBGE a unificação da categoria negro para englobar pretos e pardos dos atuais formulários oficiais. Até lá, aquela mesma caracterização poderá ser utilizada. Todos sabemos quem são os negros e pardos neste pais. Aqueles que “podem” ser tratados como brancos nessa hierarquia de direitos segundo o padrão de matriz branca (sic) e se identificam como brancos, provavelmente não irão se incluir no grupo protegido, ou, se assim entenderem, serão casos que como tal deverão ser tratados. E são suposições de maior utilidade para os que não concordam com os programas de ação afirmativa enquanto tal, do que efetivamente uma preocupação com a sua resolução.

 

O Pressuposto Jurídico para a Implementação de Programas de Ação Afirmativa

O princípio da constitucionalidade é o baluarte do direito nas sociedades modernas e contemporâneas ocidentais. A primeira análise da possibilidade jurídica de se inserir, no corpo jurídico nacional, leis que estabeleçam programas e ações destinadas a um grupo especifico da população é se tal proposição cabe dentro do corpo da Constituição.

 

Desde seu preâmbulo, a Constituição Federal de 1988 apresenta a igualdade e a justiça como bens supremos da República e, em seguida, no art. 3°, coloca como objetivo fundamental do Estado brasileiro erradicar da pobreza, reduzir s desigualdades e promover o bem sem preconceito de raça, sexo , origem nacional e religião. No art. 4°, repudia o racismo e, no 5°, declara direito fundamental a não descriminalização racial criminalizando o racismo, e inclui, no corpo da Declaração de Direitos, os Tratados Internacionais nos quais o Brasil é parte. Mantém a mesma proibição de discriminação de qualquer ordem relativamente às relações de trabalho no item XXX do art. 7°. Em seu corpo, a Constituição traz, ainda, alguns comandos indicativos de políticas que auxiliam no adequado trato das questões raciais no cotidiano brasileiro.

 

Não só não há inconstitucionalidade na proposição de medidas semelhantes aos programas de ação afirmativa em vigor nos Estados Unidos, como há o estimulo de que o Estado, por intermédio de seus poderes, de seus poderes, incentive e crie mecanismos para minimizar e até eliminar quaisquer resquícios de descriminação racial no interior da sociedade. A inclusão dos Tratados Internacionais no corpo constitucional de Declaração de Direitos é, talvez, a medida mais contundente para a argumentação jurídica favorável aquelas medidas. Especialmente a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e a Convenção de n° 111 sobre discriminação em Emprego e Profissão (1958) recomendam medidas específicas de promoção das populações alvo de discriminação racial, entre outras. Entretanto, a compreensão da igualdade que – no caso específico de medidas corregedoras de desigualdades, como são os programas de ação afirmativa – é basilar, sempre se deu, no Brasil, no campo estritamente jurídico-formal, de tratamento igual perante a lei. Assim, criamos a idéia legalista positivista de que a conformação desse princípio passava, inexoravelmente, pela universidade dos indivíduos frente à lei. E, inda que no cotidiano das relações político-econômicas, os tratamentos diferenciados e o privilégio sejam a regra, no inconsciente coletivo de todos – agentes do Estado, população em geral e sociedade civil – , a idéia de justiça condicionada à lei idealisticamente igual para todos transcendentes a realidade e impede a discussão da diferença e até mesmo da justiça. Esse princípio e consenso, no entanto, não tem limitado indivíduos e autoridades de se assentarem com mais vagar sobre as possibilidades reais de utilização do complexo jurídico para implementar comportamentos e ações específicas nas relações entre indivíduos e entre eles e o Estado, com o intuito de implementar situações de equidade real. Porém, se se pensar em raça como pressuposto, o limite é nenhum. Nada será constitucional. Estas são, portanto, questões que requerem muito investimento em argumentação e mesmo luta.

 

Relativamente ao interesse de Estado de agir, em toda a exposição fica estabelecido o papel das instituições do Estado na consecução do propósito de manutenção do sistema de hierarquia racial de supremacia branca para o Estado brasileiro. Embora não restrito a normas especificamente racistas, o sistema jurídico nacional faz, permanentemente, o reforço da ação discriminatória, criando valores e mantendo a população negra fora de âmbito da proteção constitucional dos direitos de cidadania. Enquanto gerenciador social, portanto, é o Estado o principal responsável pela atual situação de marginalidade em que se encontram os negros neste pais. Não só porque ele próprio implementa medidas que são segregadoras e racistas, mas também porque autoriza, tácita ou expressamente, o mesmo comportamento racista de grupos indivíduos por meio da impunidade, particularmente. A legitimidade do Estado brasileiro para interferir nas relações raciais, no intuito de promover a igualdade de oportunidades e, via de conseqüência, a igualdade material, está implícita em sua função social estabelecida constitucionalmente.

 

Conclusão
Embora haja diferenças fundamentais entre as sociedades brasileiras e norte-americanas, algumas considerações necessitam ser feitas quanto à propriedade de se estabelecerem estudos comparativos com finalidade de resultados maiores que o simples conhecimento dos vizinhos.

 

A instituição escravismo e do colunismo, sob a eufêmica proposição de conquista e civilização, marcou não só o continente europeu como o continente miserável, segundo Aimeé Cesaire, mas igualmente deu ao continente americano uma linha de comunicação e similaridade, de um Novo Mundo construído pela destruição dos povos nativos, escravidão dos povos africanos negros e a forjada supremacia branca sedimentada nas idéias e filosofias racistas das Metrópoles e adequadamente adaptada aos ideais dos novos brancos .

 

As similaridades que nesse fenômeno permitiram – respeitada todas as diferenças de formação cultural, religiosa e econômica que cada uma das Américas desenvolveu – ensejaram uma linha comum no tratamento a que negros e índios foram submetidos no decorrer da história de cada um dos países. Este tratamento é uma das marcas de identificação que autoriza a afirmação de que as sociedades americanas se assemelhem ao produzir e sustentar um grande palco de crimes raciais, diferenciados por cada uma de suas histórias, mas sustentado pelo mesmo motivo, qual seja, a idéia de supremacia branca sobre todas as demais raças e etnias que compõem cada uma de suas sociedades.

 

Também esta similaridade permite que apreensões e remédios cujos objetivos sejam interferir positivamente nas relações raciais de qualquer dessas sociedades, com propósitos de superação ou minimização, devem a possam ser instrumentos de estudos e adaptações para outras. No caso específico das Américas, a similitude da discriminação racial une-se ao fato de que a quase totalidade das formações tiveram uma base de escravidão e de genocídio contra os mesmos povos. Um negro norte-americano e um negro caribenho ou sul-americano terão experiências de discriminação e exclusão dos benefícios sociais da mesma forma, resguardadas apenas diferenças de forma e não de conteúdo.

 

A partir dessa perspectiva, podemos voltar à formação da idéia de negro e da implicação das instituições do Estado na formulação, produção e sedimentação de valores raciais que determinaram os espaços e privilégios dentro da sociedade norte-americana. A. Leon Higginbotham, em seu trabalho In the matter of color, expõe que própria história das instituições jurídicas norte-americanas estiveram, desde sua formação, ligadas ao desenvolvimento e à prática das relações raciais desde a escravidão, passando pelo período de Reconstrução, até a atualidade. Na verdade, historicamente a lei americana tem estabelecido políticas racistas e organizado comportamentos racistas.

 

Paradoxalmente, a mesma lei americana tem apresentado reparações aos efeitos de tais políticas e comportamentos. O sistema legal americano tem, o tempo todo, trabalhado tanto no sentido de promover e perpetuar o racismo, como no fornecer ou recepcionar leis anti-discriminatórias para, positivamente, promover ou tentar promover proteção igual diante da lei e o total exercício da cidadania. O direito americano tem, ao lado de outras instituições,desenhado a vida americana com avanço e retrocessos nas questões relacionadas com relações raciais.

 

A introdução, na década de 1970, dos programas de ação afirmativa no corpo de direito americano tem ensejado e enseja, ainda hoje, grandes discussões sobre sua propriedade dentro de um sistema jurídico que, como o brasileiro, estabelece o princípio constitucional da igualdade jurídica como fundamental para a garantia das instruções e da cidadania. Não obstante, eles estão vigentes e têm sido responsáveis por significativas promoções da comunidade negra norte-americana.

 

O êxito desses programas provocam o argumento de que o Estado e suas instituições, muito especialmente o direito, devem ser adicionados para estabelecer critérios e ações que tenham como alvo as desigualdades raciais, a fim de neutralizá-las e eliminá-las, por meio do combate sistemático ao racismo, seu implementador.

 

Similarmente, a história das instituições político-jurídicas brasileira tem sido constituída sobre a idéia do ser branco ou negro e sobre os respectivos privilégios ou prejuízos que seguem o fato de se pertencer a este ou aquele grupo. A ausência e omissão dos intelectuais das diversas áreas em tratar ou apresentar a discussão das relações raciais o Brasil como elemento interferente em todos os projetos político-econômico do país ambiguamente demonstram o quão presente o tema raça está no contexto nacional.

 

Apenas o modelo racista dos sociedades pós-escravistas da América do Sul – onde o Brasil pode ser citado como modelo perfeito, muito embora não seja o único, nem especialmente diferente da Venezuela, da Colômbia, do Peru e mesmo do Uruguai e da Argentina, que apresentam a menos população negra na América Latina, ou da América Central: Porto Rico, Trinidad Tobago ou República Dominicana – desenvolve-se diferentemente do modelo norte-americano. Isso não significa ausência e, tampouco, diferente grau de racismo. Isso significa somente que as sociedades racistas americanas trataram de manter a supremacia branca como valor único para o exercício e gozo da igualdade, liberdade e democracia. Nesse sentido, a população branca de cada país, de acordo com sua própria história, cultural e necessidades, é aquela que se entende legítima para situar-se dentro dos padrões que as diversas formas de capitalismo permitem, em ordem de sua manutenção e reprodução. Não poderia ser ao contrário que a luta da população negra também terá relação com essa história e cultura, na qual, embora participe igualmente, enquanto cumpridora das obrigações sociais, é excluída de direitos e benefícios que a estrutura sócio-econômica oferece aos cidadãos.

 

Os programas de ação afirmativa dos Estados Unidos da América, fruto de árduas e intermináveis lutas, hoje tão em pé quanto antes, abriram uma enorme possibilidade de ataque ao status quo racista internacional. A sua contribuição é fundamental para que possamos, diante de nossa especificidade, adaptar ou criar mecanismos semelhantes que tenham os resultados para a comunidade negra que, a duas peãs, lá se está mantendo ou tentando se manter.

 

Notas

1.Para referência, ver os estudos de Michel Miaille, especialmente Uma introdução crítica ao direito , tradução Ana Prata, Lisboa , Morais, 1979. Ver, também , José Eduardo Faria e José Reinaldo L. Lopes , entre outros.

2.Democracia representativa, geralmente, está inserida no modelo tradicional de representação democrática. No entanto, aqui não descarto que os novos modelos democráticos que investem na participação como elemento permissivo de maior interferência da população ainda se apresentam precários. A representação do poder dos representantes “paritários” nas comissões ou conselhos participativos merece um olhar mais agudo para que a “participação”não se dê em si mesma, ou seja, teoricamente.

3.Quero ressaltar que, quando falo que “esta é a base da critica do direito”, há que se ter o cuidado de não confundir crítica do direito com os críticos do direito. A introdução do fenômeno do racismo e, portanto, as discussões e posicionamentos quanto aos conflitos raciais aqui no Brasil não estão na Agenda dos Críticos brasileiros – todos pertencentes ao grupo branco, em que a “miscigenação” utilizada como argumento de amalgamento racial, neste caso, também não teve lugar. Há razão, também ,na história da formação político-jurídica nacional de não reconhecimento dos conflitos raciais na sociedade e que é um dos argumentos que utilizarei neste trabalho, genericamente, no sentido de que são todos operadores do direito, juristas e doutrinadores, quer conservadores, liberais ou socialistas – progressistas? – a desconsiderar essa questão. A chamada é para que os que pertencem ao Movimento de Direitos Alternativos aqui no Brasil se apercebam de que os conflitos de classe estão estreitamente ligados com os conflitos raciais. Kimberle Crenshaw discute essa interação em “Race, reformam and retrenchment:Trasformation and legitimation in antidiscrimination law” , Havard law reviw, vol. 101, mai. 1988, n.7, pp. 1.331-1.387.

4.A. Leon Higginbotham, In the matter of color, Oxford, Oxford University Press, 1980; Derrick A. Bell Jr., Race, raism and American law, Boston, 1992. Kimberlé Wlliams Crenshaw, “foreword: Toward a race conscous pedagogy in legal education”, in National Black Law Journal,1995.

5.Ademir Gebara, O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888), São Paulo, Brasiliense, 1986. pp. 115ss.

6.Idem

7.Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, vol. 1, “introdução”.

8.Dora L. L. Bertuio, Direito e relações raciais, Florianópolis, UFSC, 1989, mimeo. O Capitulo 4 analisa as Constituições brasileiras, tomando como ponto de reflexão as relações e conflitos raciais.

9.Dora L. L. Bertulio, Direitos e relações raciais, op. cit. O Capitulo1 contem estudo mais aprofundado sobre o desenvolvimento da idéia do ser negro o Brasil.

10.Em 1850, havia 50,1% de negros no pais. Dora L. L. Bertulio, Direito e relações raciais, op. cit. Apud J. Chiavenato,p. 123. Cf. Gerson Brasil, sobre os projetos de políticos e intelectuais brasileiros sobre o destino dos negros quanto das propostas de abolição.

11.Na verdade, este ensaio estará tratando, em todo,da interferência significativa do direito para sedimentação de comportamentos e políticas raciais no Brasil. Vou dispensar especificar em um tópico e preferir deixar soltas no texto as diversas formas dessa interferência.

12.Na virada do século, Silvio Romero, em História da literatura brasileira, desperta para a realidade da população e introduz nova metodologia de apreensão e resoluta do “problema”: a idéia de como o mulato, realidade nacional -pra ele – poderia, em curto prazo torna-se branco com as sucessivas gerações. Gilberto Freyre fez o “elogio da dominação”, conforme renomeia Maria Alice de Aguiar Medeiros a obra Casa grande e senzala, e Arthur Ramos, em seguida, transporta a discussão de raça e cultura, na qual a inferioridade de algumas culturas poderiam “civilizar-se” banhando-se no lago Europeu. Ambos os discursos propõem a nova solução da miscigenação como o caminho para a brancura civilizada e amalgamam com extremos resultados, a ideologia da democracia racialou branqueamento – discurso oficial da elite brasileira.

13.Varena Stolcke, “Sexo está para gênero assim como raça para etnicidade?” , in Estados Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, Cândido Mendes, n. 20, pp. 101-119, jun. 1991.

14.Ademir Gebara, O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888 ), op. cit.

15.Carlos Antonio Ribeiro Filho, “Cor e Criminalidade”, Rio de Janeiro, UFRJ, dissertação de mestrado, 1993.

16.Nessa parte do trabalho, deverei descumprir as normas técnicas da cientificidade do trabalho acadêmico por completo. Esta é uma matéria que surge aos pedaços no Brasil e cuja discussão não passou, ainda, de bastidores e de comentários de racistas e anti-racistas, militares negros e acadêmicos que conhecem a experiência nos Estados Unidos da América e tentam fazer digressões. Como pretendo limitar o tema às possibilidades brasileiras, devo fazê-lo pensando por escrito.

17.Dora L. L. Bertulio, Direito e relações raciais, op. cit., pp. 197ss. O trabalho propõe uma discussão sobre os diversos projetos de políticas especificas para minimização da discriminação racial, todos rejeitados pelo vicio da inconstitucionalidade.

18.Aqui generalizo negros e brancos porque me refiro ao todo da sociedade brasileira. Não estou, então, desconsiderando os diversos Movimentos Negros, bem como os indivíduos negros que efetivamente participam da vida social e conhecem a realidade ao seu redor. A generalização, primeiro, comporta a visão maior de negros e brancos brasileiros; segundo, que, ainda que provavelmente a maioria dos negros brasileiros tenham a percepção de sua segregação e discriminação, este dado apresenta-se como algo pronto e merecido, ou seja, esta é a vida para o negro. O que afirmo é que a inferioridade que a ideologia racista apresenta e sedimenta no corpo das representações sociais não atinge somente brancos e nem deveria, se quisesse ser efetiva. O alvo principal é o próprio inferiorizado. A deterioração da auto-estima da população negra é o indicador primeiro de que o sistema racista cumpre seu objeto.

19.Ambas as situações fazem parte de um mesmo propósito, qual seja o de desarticular, pelo menos ate se conhecer melhor, qualquer iniciativa que possa interferir na organização social brasileira de privilégios raciais – a produção do conhecimento no Brasil não é multicultural nem multirracial e este é um dado relevante. A idéia de informar inadequada ou erroneamente é um artifício de profundo efeito na criação e composição de ideologias.

20.Cf. kimbele Cresnhaw, Race, reform and retrenchment: transformation and legitimation in antidiscrimination law, Cambridge, M. A. Harvard Law Review, vol. 101 n. 7, mai. 1988, pp. 21.1.331-1.387 , e especialmente pp.1.350-1358.

22.Pedro Casaldaglia e José Maria Vidal (orgs.), agenda latina-americana 95, São Paulo, Musa, 1994

23.Lucia Helena Oliveira et alii, O lugar negro na força de trabalho, Rio de Janeiro, IBGE, 1985. Ver, ainda, Nelson do Vale Silva e Carlos Hasenbalg, As relações raciais no Brasil contemporâneo, Rio de Janeiro, Fundo, 1992

24 A. Leon Higginbotham, In the matter of color,, op. cit.

 

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