‘Entrei no mercado com meu marido e saí sem ele’: viúva lembra caso no Carrefour que enrijeceu lei contra racismo

FONTEPor Arthur Leal, Do Extra Globo
João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi espancado e morto por dois homens na noite de quinta-feira (19), em uma unidade do Carrefour no RS (Foto: Reprodução de TV / Agência O Globo)

Dois anos e dois meses depois, Milena Borges Alves ainda vive o vazio deixado pela morte do marido João Alberto Silveira Freitas:

— Ele era uma casa cheia. Estava sempre aqui pulando, brincando com todo mundo, alegre, ouvindo uma música alta. Agora resta o silêncio.

Negro, João Alberto tinha 40 anos quando morreu depois de espancado e asfixiado por seguranças de uma filial da rede de supermercados Carrefour em Porto Alegre. A mulher, hoje com 45 anos, ainda não entende ao certo o que aconteceu naquele dia 19 de novembro de 2020. Mas tem certeza de que João foi abordado, ofendido e assassinado por conta da cor de sua pele.

Os seis réus acusados de participação na morte ainda não foram julgados :dois estão em prisão preventiva, uma sob regime domiciliar e outros três respondem em liberdade. Mas o caso está na origem de uma lei que endurece a punição ao preconceito racial, sancionada na quarta-feira pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na posse das ministras da Igualdade Racial, Anielle Franco, e dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, no Palácio do Planalto.

A lei tipifica como racismo (que até agora valia apenas para uma coletividade) também a injúria racial (que é cometida contra uma pessoa). E aumenta a pena para o delito, que era de 1 a 3 anos de prisão, para 2 a 5 anos, além de tornar o crime inafiançável.

A proposta chegou ao Congresso por meio de uma comissão de juristas criada em 2020, depois da morte de João Alberto. O colegiado foi presidido pelo ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça. O texto da lei é dos deputados federais Tia Eron (PRB-BA) e Bebeto (PSB-BA), com mudanças feitas pelo senador Paulo Paim (PT-RS).

— Precisou acontecer tanta coisa para que fosse aplicada uma lei um pouco mais severa contra o racismo — comenta Milena.

Medo de ir à rua

A viúva lembra que no dia em que João Alberto morreu, o casal comprava ingredientes para que Milena preparasse uma das sobremesas favoritas do marido: pudim de pão. A roupa que usavam também foi determinante para que ele se tornasse uma vítima, avalia.

— Se fosse um homem branco, seria diferente. Nós, que somos negros, saímos na rua e olham com desconfiança. Ele ainda estava de bermuda e chinelo — relembra Milena, que ainda hoje recebe tratamento psiquiátrico e psicológico. — Estou sempre com ajuda de alguém que possa me acompanhar. Tenho medo de andar na rua sozinha, não estou trabalhando, estou encostada pelo INSS. Nunca mais entrei sozinha em uma loja ou supermercado. Sinto que todos me olham como olharam para ele aquele dia.

Milena conta que pagava as compras quando João Alberto brincou com uma funcionária do supermercado. Seguranças o cercaram e fizeram ofensas racistas, segundo a viúva. João socou um deles, foi imobilizado e agredido.

Procurado, o Carrefour disse considerar a nova lei “um avanço na luta contra o racismo estrutural”. O grupo acrescentou que assumiu a “responsabilidade de fazer uma mudança de dentro para fora, impactando colaboradores, parceiros, clientes e a comunidade” contra o preconceito racial, com investimento na criação de empregos, educação e apoio ao empreendedorismo para pessoas negras. “Aumentamos a participação de pessoas negras em todos os níveis da organização”, afirmou a empresa.

Após a sanção, o músico e comediante Eddy Junior, que no ano passado sofreu ataques racistas de vizinhos, comemorou nas redes sociais com ilustrações de fogo, em alusão à frase “fogo nos racistas”. E reclamou que ainda é obrigado a conviver com os agressores no seu condomínio: “Vamos lá, Lula. Já foi assinado? Então toma aqui a foto de dois criminosos que estão vivendo tranquilamente aqui”, escreveu, publicando a foto dos dois vizinhos. “Já vamos pôr a lei em vigor”.

— Eu lembro do dia em que ouvia e assistia ao caso do Eddy — disse a ministra Anielle ao GLOBO. — A gente ainda vive num país onde as pessoas se acham no direito de bater na porta de um vizinho querendo agredi-lo, falar em morte e outras coisas tão difíceis, e vinha ficando por isso mesmo. É muito importante que a gente esteja dando esse passo agora, o primeiro grande em busca de reconhecimento e reparação.

Vale para as redes

Além da pena maior, a lei determina que seja enquadrada como crime “qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”. Assim, um acusado de racismo pode responder criminalmente mesmo que não tenha feito ofensas verbais. A regra também vale para publicações nas redes sociais ou de outra natureza na internet.

A pena pode ser aumentada pelo equivalente à metade se o crime for cometido por duas ou mais pessoas, e deve ser acrescida em um terço, se cometido por funcionário público.

O código prevê que, caso qualquer dos crimes previstos seja cometido durante atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público, além da pena de reclusão de 2 a 5 anos, deverá haver ainda a proibição de frequência do condenado por três anos aos locais onde o delito foi cometido, como teatros, estádios de futebol e shows.

— Agora será possível punir com veemência quem acredita que pode cometer crime contra a honra de uma pessoa em virtude do seu pertencimento racial. — analisa Frei David, diretor-executivo da ONG Educafro. — A lei não exige mais a verbalização de expressões racistas para que se entenda caracterizada a injúria racial praticada.

O advogado criminalista Gustavo Nagelstein, que representa a família de João Alberto, diz que o tempo dirá se haverá efetividade nas mudanças propostas na lei:

— É uma tendência do direito penal de enrijecer as normas para buscar coibir esse tipo de conduta — analisa, lembrando que a regra não poderá ser aplicada para o caso de João Alberto.

Dados consolidados pelo Disque 100, da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, mostraram que o governo federal recebeu no segundo semestre do ano passado 614 denúncias de injúria racial e 512 de racismo. Houve ainda queixas de 2.498 casos em que houve algum tipo de discriminação. Além disso, de janeiro a 1º de novembro do ano passado, 1.632 crimes foram denunciados da ferramenta tinham como motivação do autor questões ligadas à raça, cor ou etnia da vítima. São agressões verbais e físicas, entre outros.

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