Entrevista: A ofensiva antigênero como política de Estado

Seminario Igualdad, Genero y No Discriminación

Em entrevista à Conectas, a pesquisadora Sonia Corrêa analisa o impacto das políticas do governo Jair Bolsonaro sobre a pauta de gênero

Do Conectadas

 Sonia Corrêa- mulher branca idosa, de cabelo curto, vestindo camiseta estampada- sentada em uma cadeira
Às véspera do Dia Internacional da Mulher, a pesquisadora e ativista Sonia Corrêa fala à Conectas sobre o impacto das políticas do governo Bolsonaro sobre a pauta de gênero. (foto: Luis Vera)

Enquanto os movimentos feministas vêm pautando há décadas o debate sobre gênero de uma perspectiva de igualdade, da democracia e da plasticidade, forças conservadoras religiosas e seculares tem atacado esse conceito de maneira virulenta, usando como alvo o código “ideologia de gênero” . No Brasil, essa ataques que vinham ganhando corpo desde os meados dos anos 2000 ganham uma nova escala nas eleições presidenciais de 2018. Hoje a ideologia antigênero se vê traduzida em legislações e diretrizes de política pública.

Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, conversamos com Sonia Corrêa, pesquisadora associada da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy Watch), que coordenou um projeto de pesquisa sobre políticas antigênero na América Latina, cujos resultados acabam de ser publicados. Corrêa explica a origem da ofensiva antigênero no mundo e no Brasil e analisa o impacto das atuais políticas do governo Bolsonaro sobre o gênero e os direitos das mulheres.

Leia a seguir entrevista na íntegra:

Conectas – Qual o histórico da ofensiva antigênero, que foi uma pauta forte das últimas eleições presidenciais?

Sonia Correia – A ofensiva antigênero não é uma invenção brasileira e tampouco começou nas eleições de 2018. Essa categoria acusatória tem uma história de pelos menos 25 anos. Um primeiro ataque a gênero se deu no contexto da preparação da Conferência de Beijing, quando o gênero foi atacado por organizações religiosas conservadoras da sociedade civil norteamericana, tanto católicas quanto evangélicas. Na negociação oficial, a Santa Sé pediu que o termo ficasse entre colchetes para indicar que não havia consenso. Na conferência de Beijing, embora o termo não tenha sido objeto de ataque, o Vaticano fez uma reserva afirmando que deveria ser interpretado para denotar a diferença sexual biológica entre homem e mulher. Tenho escrito bastante sobre essa genealogia e recomendo que as pessoas leiam essa história, que é tanto fascinante quanto complexa. No Brasil, a propagação de mensagens antigênero nas mídias religiosas digitais nacionais começa a partir dos anos 2000 e vai ganhando corpo, especialmente após a visita de Ratzinger, como papa Benedito 16, em 2007, para a reunião do CELAM em Aparecida do Norte. A partir de 2013, esta ofensiva ganha nova visibilidade por conta do ataque ao Plano Nacional de Educação, em que católicos e evangélicos se juntaram ao movimento Escola Sem Partido num ataque sistemático à inclusão da perspectiva de gênero na educação. Como analisamos com Isabela Kalil no estudo sobre políticas antigênero no Brasil (publicado em espanhol), um efeito dessa ofensiva inicial foram centenas de leis municipais e estaduais contra gênero na educação hoje aprovadas nos níveis estaduais e municipais. Em 2017, um evento mais que significativo dessa trajetória foi o ataque a Judith Butler em sua segunda visita ao Brasil, que deve ser lido como um laboratório da campanha presidencial de 2018, quando o ataque ao gênero foi central.

Como definir a chamada “ideologia de gênero”?

Segundo as teóricas feminista da Europa do Leste, outra região do mundo em que as ofensivas antigênero são muito intensas, como Andrea Peto e Agniezka Graef, o código “ideologia de gênero” é um significante vazio, uma grande cesta onde cabem e de onde se tiram múltiplas coisas — como a educação em gênero e sexualidades, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o feminismo, os direitos das pessoas trans. Esse amálgama é muito adaptável, permitindo que, em contextos ou em momentos diferentes, um desses temas seja alvo de ataques. Segundo essas autoras, essa fórmula é como uma cola simbólica que permite associar significados, sentimentos, temores que não estão automaticamente dissociadas, mas que a ideia da “ideologia de gênero” ajuda a conectar. No caso do Brasil, a “ideologia de gênero” agregou-se a outra figura central do giro político à direita que assistimos desde 2013: a questão da corrupção. Vale lembrar que corrupção é um termo polissêmico que evoca tanto degradação política quanto sexual. Quando associada à “ideologia de gênero” mobilizam-se pânicos que são tanto políticos quanto morais. Foi isso que aconteceu no processo eleitoral e que levando à situação atual, em que a ideologia antigênero é um traço forte da política de Estado.

Em quais campos as políticas antigênero se notam com mais força?

Na América Latina como um todo, e no Brasil em particular, é no campo da educação onde o ataque ao gênero tem um efeito mais extenso e profundo. No Brasil, desde 2014 proliferam legislações antigênero na educação nos níveis estaduais e municipais. Desde 2015, vários projetos têm sido apresentados no Congresso Nacional. Seis deles criminalizam a difusão e a propagação de “ideologia de gênero”. Isso significa que em todos os lugares em que exista a perspectiva de gênero e sexualidade como parte de uma agenda democrática de educação, secretária/os, diretoras/es de escolas, professoras/es poderão ser criminalizados. Outro campo em que hoje desde 2019 a ideologia antigênero está instalada é a política externa. Como se sabe, o Brasil tem assumido posições sistemáticas contra o uso do termo gênero em negociações internacionais e essa pauta de política externa é obscura. A ABGLT [Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transexuais] fez uma ação junto ao STF [Supremo Tribunal Federal] para conseguir acesso a seu conteúdo. O núcleo duro da ideologia antigênero do governo Bolsonaro está situado na interseção entre o Itamaraty, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e o Ministério da Educação. Em especial, o ministro de relações exteriores e a ministra Damares Alves deixaram isso muito claro ao longo do último ano. Ou seja, as posições antigênero estão hoje traduzidas em políticas públicas e em diretrizes estatais. Não se trata apena de um discurso de agitação política usado pelas bases bolsonaristas.

Como essas políticas impactam as mulheres?

A ideologia antigênero responde à crítica que os feminismos construíram sobre a complementaridade desigual entre homens e mulheres, que é uma concepção central das doutrinas cristãs conservadoras. Também ataca a plasticidade que está implícita nas teorias contemporênas de gênero e sexualidade. Por isso, uma posição governamental antigênero alimenta ataques aos feminismos que contestam a complementaridade entre sexos e o essencialismo sexual, criando um ambiente de misoginia generalizada. As mulheres que contestam os sinais de autoritarismo e o arbítrio do governo serão alvos fáceis. Acho que o caso da jornalista Patrícia Campos Mello é emblemático. Na semana do ataque contra a Patrícia em uma CPMI [Comissão Mista Parlamentar de Inquérito], tanto Eduardo Bolsonaro quanto uma jovem senadora do PSL trouxeram de volta ao debate público a figura da “feminista das axilas cabeludas”, que foi inventada nas eleições de 2018 quando a campanha do #EleNão tomou corpo. Essa figura evoca a fantasia e o temor das mulheres que supostamente têm como objetivo a “destruição da ordem, da natureza e da família”. Mas é preciso sublinhar que a ideologia antigênero também vem se traduzindo na América Latina e no Brasil em ataques aos direitos das pessoas trans, ou seja, o direito à identidade de gênero. A política antigênero hoje é também uma política avessa aos direitos das pessoas trans. No caso do Brasil, penso que devemos também interpretar a política de abstinência sexual proposta pela ministra Damares Alves como uma ramificação da política antigênero, pois o que a inspira é também uma concepção de “desordem sexual”. Esse é um exemplo de como o truque “ideologia de gênero” é metamórfico e mutável. Em suas várias manifestações e ramificações, sua função é ativar camadas profundas de conservadorismo social, mobilizando imaginários de desordem e suscitando sentimentos, desconforto e temor à diferença, mas também em relação a quem contesta ordens existentes. É bom lembrar sempre que disputa e contestação são inerentes à democracia.

Neste contexto, qual é a importância dos atos do dia 8 de Março?

Esse 8 de março é muito importante para os feminismos brasileiros e para as pautas da igualdade de gênero. O ataque ao conceito de gênero tem como alvo a contestação feminista da complementaridade entre os sexos: homens e mulheres não são hierarquicamente complementares, mas potencialmente iguais. Como disse antes, o outro alvo é justamente a plasticidade que a teoria de gênero possibilita. Citando Judith Butler, as forças antigênero religiosas, afirmam que a possibilidade de que as pessoas determinem seu gênero ou sua orientação sexual “é uma tentativa de usurpar de Deus seu poder de criação e de desafiar os limites da agência humana impostos pela divindade”. Porém, a teoria de gênero é uma proposição de liberdade individual e política, uma pauta da democracia e da igualdade. Penso que esses elementos da teoria de gênero deveriam ser nossos motes para o 8 de março de 2020. É também fundamental defender o gênero numa perspectiva interseccional. Não se trata apenas da defesa da igualdade entre homens e mulheres mas também da defesa intransigente dos direitos à identidade de gênero. Também é crucial estabelecer intersecções com o debate sobre racismo e desigualdade racial, lembrando que as mesmas forças que atacam gênero estão envolvidas na “guerra santa” contra as religiões de matrizes africanas. Finalmente, é preciso lembrar que a ofensiva antigênero compõe a pauta mais ampla da contestação e ataque ao conhecimento científico, em especial o negacionismo climático.

Quais são as possíveis estratégias de resistência?

Antes de qualquer coisa, precisamos reconhecer que vivemos uma situação de anormalidade e resistência de longo prazo. O poder está hoje em mãos de um personagem autoritário e autocrático, que como bem analisa Marcos Nobre em uma entrevista recente para a Agencia Pública, é um ator político sistemático, que sabe onde quer chegar, mesmo quando seu método seja o caos, ou seja produzindo um clima permanente de desordem que obscurece seus objetivos. Não estamos em situação de normalidade ou de ampliação da pauta. Agir politicamente numa situação de anormalidade e resistência tem requisitos muito específicos, sobretudo não há espaço de resistência se não formos capazes de estabelecer novas intersecções e coalizões virtuosas.

Você fez parte da publicação “Gênero e Política na América Latina”. Qual é a situação que o Brasil se encontra em comparação com o contexto da América Latina?

Como se sabe, o Brasil é uma peça importantíssima no tabuleiro geopolítico da “desmocratização” em razão de seu peso geopolítico e econômico na região e no Sul Global. Para avaliar como isso é relevante, basta lembrar que consenso a que se chegou nas conferências dos anos 1990 sobre as pautas de gênero e sexualidade, dos direitos sexuais e reprodutivos, do aborto e da família não teria acontecido caso América Latina e Europa não tivessem tomado as posições que tomaram. É preciso dizer que Brasil e México tiveram um papel fundamental de liderança nessas negociações. Nesse sentido, é fundamental reconhecer o papel geopolítico que o Brasil está tendo em relação a esses temas no arco do giro conservador transnacional e ampliar nossa presença nas arenas de debates em que essa influência catastrófica está se jogando.

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