Entrevista com Fábio Konder Comparato

Írohín- Jornal Online –

O Professor Fábio Konder Comparato titular Faculdade de Direito da USP e autor, entre outras obras, de “Ética – Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno” (Companhia das Letras) nos concedeu uma entreivista abordando a questão afeta ao Direito e as Relações Raciais em especial a polêmica que envolve a constituicionalidade das Políticas de cotas.

1 – Em seu artigo recente o Senhor trouxe algumas luzes interpretativas acerca da questão da escravidão no Brasil. Gostaríamos que o Senhor fizesse uma breve análise sobre a questão da escravidão e a questão atual da efervescência da relação entre a escravidão com o que se fala hoje sobre o princípio da igualdade, em se tratando da questão racial.

FK – Manter a escravidão oficialmente durante quase quatro séculos, provocou conseqüências que dificilmente conseguiremos apagar em pouco tempo.

A escravidão esteve intimamente ligada a um sistema agrário e, esse sistema, era aquilo que os romanos chamavam de “Senhoril”, ou seja, apenas o proprietário tinha direitos, onde, toda família, era submetida a essa prepotência do proprietário. O proprietário tinha uma larga clientela; que eram os pequenos agricultores sem terra, não escravos, que dependiam dele para poder sobreviver. Com base nisso, criou-se um sistema político em que tudo dependia do proprietário, o chamado “Coronelismo”. Era chamado assim porque coronel era a principal patente da guarda nacional e, o chefe político local sempre foi o coronel.

Quando se criou a “falsa República” (já que República significa predomínio do bem comum do povo sobre qualquer interesse privado e, a República no Brasil, foi o predomínio do interesse privado sobre o bem comum do povo) os governadores estabeleceram um pacto com os coronéis, eram esses últimos que indicavam os juízes de direito e os chefes de polícia, os delegados, os promotores, em qualquer razão eram os coronéis que mandavam votar no candidato oficial.

Pelo fato dos escravos nunca terem tido direitos, eles se tornaram inferiores a todos os outros dentro do domínio rural. O coronel tinha uma espécie de dever de proteção do trabalhador agrícola e era uma espécie de chefe do sistema de seguridade social, mas, o negro não pertencia a isso e ele foi rapidamente, senão fatalmente, obrigado a sair do campo e vir para as cidades, e nas cidades ele trouxe consigo o estigma da escravidão, ou seja, o trabalho sempre foi considerado um defeito próprio do sistema servil.

Ninguém deu necessário valor ao trabalho e as conseqüências da escravidão foram muito amplas, por exemplo, no campo do próprio trabalho, havia duas coisas que o alforriado fazia quando conquistava a sua dignidade de não escravo: a primeira era se calçar, o escravo não podia se calçar, deveria andar de pés descalços; a segunda era ele próprio conseguir escravos.

Há um viajante inglês que conta um episódio significativo: ele precisava de um artesão, ou um carpinteiro, ou um ferreiro, então lhe indicaram alguém. Ele chegou a casa dessa pessoa e era um negro, e ele ficou espantado porque o sujeito estava vestido com uma roupa de fidalgo, e ele lhe disse que não poderia atendê-lo, pois o negro dele tinha ido fazer um serviço e não havia voltado com a caixa de ferramentas. Ou seja, como ele era agora livre, seria um vexame para ele carregar a caixa de ferramentas; quem carregava era seu próprio escravo.

No campo sexual o que se viu foi um verdadeiro desprezo pela mulher. O próprio escravo de dentro; o que trabalhava na casa, tinha o maior desprezo pelo escravo que trabalhava no campo. E a própria escrava de dentro, se sentia, de certa maneira, orgulhosa porque tinha a preferência do patrão. A própria noção de família foi totalmente destruída pela escravidão.

Contei nesse artigo publicado na Folha de São Paulo, o caso de um pesquisador norte americano que encontrou no primeiro cartório de notas em Campinas uma escritura pública de 1869 em que um “fulano” tornando-se maior pelo casamento, resolveu alforriar a própria mãe que ele tinha recebido como herança do pai. Não há coisa mais repugnante do que alguém ter que alforriar a própria mãe. Todos os sentimentos familiares, religiosos de respeito à mãe eram contrariados pela escravidão.

2 – Temos 20 anos de Constituição. O entendimento que se tem hoje acerca do princípio da igualdade parece buscar ganhar uma efetividade sobre as políticas de inclusão, políticas de ação afirmativa e as políticas de cotas. Como o Senhor acompanha essa evolução?

FK – Em relação aos negros e pardos, tudo isso é bloqueado. A Constituição, no artigo 7°, determina que haja uma proteção da mulher no mercado de trabalho mediante incentivos específicos, ninguém diz que isto é uma política de discriminação. Mas quando se trata de proteger o negro, levantam até o racismo.

É preciso saber que, por exemplo, no mercado de trabalho, o negro tem, independentemente de sua qualificação, salário que corresponde, em média, a cinqüenta ou setenta por cento do salário do branco, mesmo pobre e sem qualificação e, a mulher negra tem um salário médio que corresponde à metade do salário do trabalhador negro. Isso é evidentemente uma conseqüência da escravidão.

O inciso 20 estabelece uma medida que é análoga, senão idêntica, a política de cotas. A política de cotas visa dar um incentivo, é uma política tímida, com 120 anos de atraso. A própria Constituição determina que haja no mercado de trabalho a proteção da mulher com incentivos específicos, é exatamente a política de cotas, mas, ninguém diz que esse inciso é uma medida discriminatória. Mas tudo o que se propõe em defesa do negro é considerado discriminatório ou racista.

3 – A que o senhor atribui essa interpretação, até mesmo por parte do Poder Judiciário?

FK – A velha mentalidade escravista, não há a menor dúvida. Nós não conseguimos eliminar isto em pouco tempo. Isso faz parte do nosso costume, da nossa mentalidade. Como dizia Montesquieu; “Os costumes e a mentalidade não se mudam por leis, mudam-se pela educação”, é por isso que no nosso sistema educacional, praticamente não existe nada sobre a escravidão, considera-se, isso, um desprestígio para o país.

O pior desprestígio para o país é esse ocultamento sistemático da realidade escravista, temos que tirar isso da cabeça das pessoas e, para tirarmos, é preciso que isso venha à tona e diga exatamente o que foi a escravidão.

Eu sou descendente do maior proprietário de escravos do Império Brasileiro, o Conde Joaquim José de Souza Breves. Tive que entender, e só entendi isso muito tarde, que esta realidade, ou seja, a culpa por isso, se transmite aos descendentes, não é propriamente uma culpa penal, mas, é uma herança de um débito social. É um débito social porque, se eu sou o que sou hoje é pelo fato de eu ter herdado várias coisas, a capacidade de me educar, o fato de ter tido determinados tipos de formação e isto só foi conseguido porque durante séculos os negros sustentaram a nossa economia.

O que agora é preciso fazer, é saber lutar contra isso e para isso é preciso vencer uma outra tradição muito ligada à escravidão, que é a tradição da desunião. Todos os africanos embarcados nos portos eram separados e acobertados dentro do Tumbeiro, nunca se procuram em constituir uma comunidade da mesma língua, com as mesmas tradições, porque isso levava a revolta, então era preciso impedir a comunicação entre os negros que acabavam se detestando porque, velhas tradições africanas faziam com que as etnias lutassem umas com as outras. É preciso saber que o Porteiro, aquele que recolhia os jovens do interior e trazia aos portos de embarque, era sempre de uma etnia diferente daqueles que aprisionava. Então, desde a África, nós temos essa tradição de desunião que persiste até hoje.

O Movimento Negro continua profundamente desunido. Só há duas soluções nesse combate pela dignidade do povo negro: a educação e a ação transformadora das instituições.

 

4 – O STF já começou a julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Sistema de Cotas e há grande polêmica em função das cotas raciais. O que o senhor espera desse julgamento?

FK – Isto é realmente sintomático. O partido contrário à igualdade agora se chama os Democratas, isso é tipicamente a tradição brasileira, nós tivemos uma República privatista, uma Democracia sem povo e um Constitucionalismo ornamental.

Que os estabelecimentos de ensino preponham esta ação, nada de surpreendente porque, não são estabelecimentos de ensino, são empresas capitalistas, o ensino é apenas a fachada. Agora, que este partido tenha a coragem de se intitular “Os Democratas”, isto é um pouco demais.

Não sei como o STF julgará isto, espero que o STF tenha um comportamento digno e que se lembre que todos nós das ditas classes dominantes, somos o que somos, devido a sangue, suor e lagrimas de todos os africanos e afro descendentes escravizados no Brasil.

 

5 – Qual são as suas considerações finais sobre este assunto professor

FK – O Movimento Negro deveria constituir-se sobre a forma de federação, ou seja, preservando a especificidade de cada um, de seus Movimentos e de suas ONGs, mas tendo a capacidade de agir como um todo, por exemplo, propondo ações judiciais. E ao mesmo tempo a constituição de uma federação permite que essas diferentes entidades dialoguem entre si, discutam, podem não pensar a mesma coisa, mas, periodicamente se reúnem para discussão.

 

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