Entrevista – Fábio Mesquita: “Talvez a solidariedade nos leve a viver em um mundo melhor”

“Este ciclo vai passar… e talvez esse momento tão difícil mas de tanta solidariedade nos ajude a viver em um mundo melhor depois disso tudo”, diz o médico epidemiologista brasileiro Fábio Mesquita — membro do corpo técnico do Departamento de HIV e Hepatites Virais da Organização Mundial da Saúde — ao Jornal de Brasília. Mesquita sabe o que fala; além da excelência técnica, a fé no ser humano sempre norteou o seu trabalho. Reconhecido como uma das maiores autoridades do mundo no combate ao HIV/aids, Mesquita ajudou a escrever a história da luta contra a epidemia no Brasil e mundo afora, sempre de mãos dadas com a sociedade civil. Em 2013, depois de oito anos no sudeste da Ásia pela OMS, voltou ao Brasil para dirigir o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, que enfrentava um desafio histórico: controlar o novo crescimento da epidemia. De volta à Ásia, Mesquita agora emprega sua experiência à luta contra a covid-19 a partir do escritório da OMS em Myanmar.

Por Grace Perpétuo, Do Jornal de Brasília 

Fábio Mesquita- homem branco, de pouco cabelo, vestindo roupa social - falando com um microfone na mão
(Foto: Imagem retirada do site Jornal de Brasília )

Como epidemiologista tão experiente, como o senhor vê essa pandemia? Era de fato inesperada?

Essa pandemia é algo realmente inusitado: é a primeira vez que vemos algo assim desde que eu existo na face da Terra. Tenho 62 anos e achava que nunca veria algo parecido — mas pode ser que eu ainda veja isso de novo, sim.

Apenas no universo dos coronavírus, por exemplo… dos sete tipos identificados que possivelmente infectam seres humanos — há outros que infectam só animais, porque o coronavírus é uma zoonose —, quatro só causam resfriados. (Essa talvez seja uma boa explicação para o fato de as crianças não serem uma população vulnerável nessa pandemia: porque estão adaptadas a outros tipos mais brandos de coronavírus.) Os outros três tipos ficaram famosos, e o espaço entre a manifestação deles foi de dez a oito anos.

Se a gente espera alguma coisa assim para o futuro? É possível, sim, daqui a oito ou dez anos, se esse ciclo se mantiver mais ou menos como os anteriores.

Nós tivemos a Sars [síndrome respiratória aguda grave], logo no começo do século, em 2002; mais tarde, em 2009, a Mers [síndrome respiratória do Oriente Médio]; e agora o coronavírus 2, a covid-19. A gente não estava preparado; não se esperava uma pandemia desta dimensão, com esse impacto.

Mas uma “segunda onda” é esperada?

Uma segunda onda é algo que quase todas as grandes epidemias acabam apresentando. Essa pandemia começou agora a apresentar alguns novos casos na China, na Coreia do Sul — países que tinham praticamente controlado a primeira onda —, mas agora de casos importados. Esses países estão tendo de reconsiderar as medidas de afrouxamento que adotaram depois da primeira onda.

O ciclo total da Sars, por exemplo, foi de cerca de dois anos — mas houve picos em que ela se manifestou de maneira mais expressiva. Então acreditamos que, quando a doença começa a se expressar de forma bem relevante — como o que aconteceu na Itália e em vários países europeus, e o que está acontecendo agora nos Estados Unidos —, o que pode acontecer é um ciclo que dura de três a cinco meses, dependendo das medidas tomadas para contê-lo.

Se você não tomar nenhuma medida e achar que todo mundo pode ir pra rua, o ciclo será mais intenso, é claro. E aí o serviço de saúde não tem capacidade para aguentar essa intensidade, como está acontecendo na Itália, na Espanha, nos EUA. Os serviços de saúde não estavam preparados. É por isso que espaçar a epidemia — dar um pouco mais de tempo para que ela aconteça — faz com que seja possível preparar o serviço de saúde para atender às pessoas em tempo. U

Uma pessoa que teve covid-19 pode de fato ser infectada uma segunda vez, depois de curada? Ou o comportamento desse vírus ainda é imprevisível?

Ainda é muito cedo para dizer se a pessoa que adquiriu o novo coronavírus vai conseguir imunidade por ter sido infectada. Há alguns casos, em outros países — de pessoas que manifestaram a covid-19
pela segunda vez — que estão sendo analisados. A hipótese mais provável, neste momento, é que tenha ocorrido nesses casos um reavivamento da infecção. Isto é: o vírus não tinha sido completamente eliminado do organismo e, com o tempo, reavivou. Ainda não é certo que uma pessoa que tenha tido covid-19 tenha imunidade — ou o contrário.

Mesmo que já tenhamos identificado pequenas alterações nos subtipos do vírus, não conseguimos afirmar, pelo que a ciência sabe nesse momento, nem que a pessoa vai recidivar, nem se reinfectar, nem adquirir imunidade. Poderemos responder isso no futuro.

Há uma estimativa técnica para o fim desta pandemia?

Não. A gente considera a história da Sars a mais próxima desta: quase dois anos no total, mas com um ciclo muito intenso que dura de três a cinco meses, a depender das medidas tomadas. A China conseguiu conter a sua epidemia em menos tempo.

O senhor vê a iminência de novas pandemias nos próximos anos em razão de fatores inerentes ao modo de vida contemporâneo?

É difícil dizer que essa pandemia esteja associada a nossos hábitos modernos. Podemos dizer, sim, que a disseminação do vírus esteja muito associada à globalização — e que por conta dela a manifestação da pandemia foi extremamente mais importante do que outras que tivemos recentemente. Quanto ao comportamento humano em si, fica um pouco mais difícil dizer, porque, em um país que tem 1 bilhão e 500 milhões de habitantes como a China, as pessoas precisaram de condições básicas para sobreviver. As pessoas comem coisas que podem nos parecer estranhas — mas esses hábitos alimentares foram mecanismos que encontraram para sobreviver num país tão grande, com tanta gente a ser alimentada.

“Acho absurdo que critiquem a china — como se a culpa fosse do fato de os chineses comerem morcegos. em um país tão grande, com 1,5 bilhão de habitantes e tanta gente a alimentar, esses hábitos foram mecanismos para a sobrevivência.”

A China é um país que tem um nível de desenvolvimento semelhante ao do Brasil; é um país de high medium income, que está no G20 e é uma das maiores economias do mundo, hoje, mas que ainda enfrenta problemas sociais.

Nesse sentido, eu acho que seria muito difícil a gente explicar para outros povos, por exemplo, que nós brasileiros comemos cabeça de bode, calango…. São hábitos culturais, locais. É difícil criticar um povo por comer outros animais ou insetos, por exemplo. São coisas que foram se desenvolvendo de acordo com a capacidade de cada um reagir aos desafios sociais, culturais e econômicos que teve de enfrentar. Acho absurdo que critiquem a China — como se a culpa fosse do fato de os chineses comerem morcegos.

Só para a gente lembrar: a Organização Mundial da Saúde declarou, no dia 30 de janeiro de 2020, que o surto de covid-19 constituiu uma emergência de saúde pública de importância internacional. Isso não é uma decisão do diretor da OMS; é de um conselho, com vários especialistas da área, que se reúne e decide, com base no que se percebeu no planeta.

Um documento assinado por todos os países-membros das Nações Unidas — o Regulamento Sanitário Internacional [RSI] — e s ta be l ec e obrigações para os países, como notificar doenças que podem ter um impacto internacional.

A OMS só declarou esse estado cinco vezes antes da pandemia de covid-19: a primeira na pandemia de H1N1, que começou no México. E eu não me lembro, na época, de haver nenhum preconceito internacional dizendo que os mexicanos espalharam uma pandemia de gripe por um vírus chamado H1N1.

A quarta vez, casualmente, foi no Brasil, por conta do vírus zika e do aumento nos casos de microcefalia e outras malformações congênitas — e eu também não me lembro de nenhum grande preconceito mundial contra o Brasil, na época. As pessoas tinham uma postura solidária: estávamos enfrentando um problema sério, que poderia se expandir pelo mundo, como o H1N1 se expandiu.

A covid-19 de fato ameaça a humanidade de forma mais contundente que outras doenças já existentes?

Hoje é o Dia Mundial da Saúde [7 de abril] e, ao abrir o mapa da Harvard University — atualizado com informações mais diretas que o da OMS, sempre um pouco defasado porque os países demoram a notificar os casos de covid-19 —, temos, até o momento, 78.269 óbitos causados pela covid-19. Isso é realmente impressionante — e choca o mundo pela rapidez com que, em cinco meses, chegamos a esse quadro de disseminação de uma doença nova.

Mas eu queria apenas ponderar sobre algumas doenças antigas, com as quais a humanidade está relativamente acostumada, e que talvez não choquem tanto as pessoas. A tuberculose, por exemplo, mata 1,5 milhão de pessoas por ano; a aids, 770 mil; e a malária, 450 mil. Em termos de mortalidade, há doenças que estão no nosso meio há muitos e muitos anos — e cujo enfrentamento ainda apresenta enormes desafios —, com taxas de óbito também impressionantes. Com isso não estamos — evidentemente — subestimando a pandemia de covid-19, sobretudo porque ela tem um ciclo bem agudo, bem expressivo, e um impacto extremamente importante.

É preciso sempre lembrar que é possível conter essa pandemia — como já demonstrado pela China, pela Coreia do Sul, por Singapura — e temos de nos empenhar muito nesse esforço. Certamente o distanciamento social é uma das coisas mais importantes nesse sentido, além da adoção dos hábitos de higiene que a gente vem reiterando o tempo todo.

Em que o clima influencia esse status quo?

Não existe nenhuma clara associação, até agora, entre a transmissão do novo coronavírus e o clima. Aconteceu de este coronavírus ter tido uma expressão maior no hemisfério norte, num primeiro momento, mas isso de forma alguma garante que haverá uma disseminação menor no hemisfério sul, ou que o clima poderá alterar essa disseminação. Neste momento, a gente ainda não tem evidências suficientes para fazer essa afirmação — até porque, num ciclo que estamos esperando, de cerca de dois anos, ainda tem bastante água pra rolar.

É cedo também para a gente afirmar que nos países que estão começando agora a manifestar a pandemia — como os da África, os daqui do Sul da Ásia, os daí da América do Sul —, que o clima fará uma diferença expressiva. Teremos de acompanhar um pouco mais a pandemia para chegar a esta conclusão. Até o momento só há um estudo publicado sobre isso, e de péssima qualidade; nós o avaliamos em bastante profundidade, mas trata-se mais de uma hipótese do que de uma conclusão.

Já há exemplo de gerenciamento local que possa ser considerado exemplar e aplicável a outros países?

Eu acho que — se há gerenciamento que possa ser considerado exemplar e aplicado a outros países — é o da Coreia do Sul. (Pessoalmente, admiro muito o que os chineses fizeram; acho impressionante a capacidade que tiveram de controlar a epidemia. Mas é pouco provável que a gente consiga reproduzir o modelo chi nês em outros lugares do planeta. É um modelo que requer uma série de características — da união da população com o governo chinês — que são bastante inusitadas. Acho pouco provável que outros países tenham a capacidade, por exemplo, de fazer o isolamento social que os chineses conseguiram levar adiante.

“Há como resolver esse problema, mas não colocando as pessoas para trabalhar agora, para se contaminarem e irem para um sistema de saúde que vai falir. ele se resolve com uma política social e econômica que defenda o seu povo.”

Já na Coreia do Sul fizeram uma coisa espetacular: testaram 100% da população e isolaram de maneira adequada todo mundo que era positivo. Com isso, é claro, a Coreia do Sul conseguiu derrubar bastante a epidemia local, que era a segunda maior do planeta — logo após a da China.

Hoje a epidemia da Coreia do Sul perdeu importância no ranking planetário, porque eles realizaram uma ação de saúde pública de excelente qualidade. Os casos que estão acontecendo agora são importados, como dissemos, porque a Coreia está voltando a se abrir.

Talvez valesse a pena considerar a resposta da Coreia do Sul como um excelente exemplo, portanto— mas sempre lembrando que cada país tem de adaptar as recomendações globais a sua realidade, ainda que seguindo o RSI aprovado na Assembleia Mundial da Saúde. Mas há decisões que são essencialmente locais.

As recomendações da OMS vão sempre no sentido de utilizar aquilo que deu certo nos países que tiveram sucesso no controle das epidemias. Por exemplo, o isolamento social — que, no Brasil, tem sido preconizado pelo ministro da Saúde — tem sido extremamente importante.

A gente tem feito estudos com modelos matemáticos em torno de “uma pessoa que vai para a rua normalmente”. Há um estudo na Itália, por exemplo: alguém que vai para a rua por lá contata, em média, 17 pessoas por dia. Já na zona rural da Índia, alguém que vai para a rua contata, em média, 16 pessoas por dia. Se você reduzir esse contato a quatro pessoas por dia — ou seja, às pessoas que estão dentro da sua casa —, isso evidentemente faz uma diferença brutal em como o vírus vai se espalhar.

O isolamento social interrompe a pandemia? Não, mas dá tempo para o sistema de saúde se preparar para enfrentá-la. O problema é sobrecarregar o sistema se todo mundo pegar o vírus de uma vez.

É verdade: 80% vão ter casos leves ou médios de gripe forte, mas 20% vão requerer hospital; 5% desses últimos vão requerer leito de UTI — e a gente já viu que mesmo países poderosos como a Itália, a Espanha e os Estados Unidos não estavam preparados para atender a todo mundo ao mesmo tempo.

Sabemos — por sua trajetória sempre muito próxima de movimentos sociais e de populações vulneráveis no enfrentamento ao HIV/aids — que o senhor é antes de tudo um humanista. O que mais o preocupa no cenário pós-pandemia? Há algo positivo inerente a esse cenário?

A saúde, e o impacto da pandemia no sistema de saúde, a falta de leitos, o número de óbitos… tudo isso é extremamente preocupante, mas é a ponta do iceberg nesse momento.

Já há um impacto psicológico extremamente importante, por exemplo — as pessoas estão tensas; há muita gente veiculando fake news, muita confusão, muita desinformação. O impacto psicológico sobre as pessoas também tem sido tremendo.

Depois há o impacto econômico e o impacto social. O econômico já se vê agora, mas certamente ele será pior ao final da pandemia. Evidentemente, as pessoas que têm dinheiro não sofrerão com esse impacto econômico; poderão perder um pouco do lucro, mas haverá mecanismos de recuperação. O impacto social será então enorme — e as pessoas mais simples sofrerão muito mais.

É por isso que o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial — e outras grandes instituições financeiras do mundo — estão financiando desde já as populações pobres, os pequenos empresários. Há como resolver esse problema — mas não colocando as pessoas para trabalhar agora, para se contaminarem e irem para um sistema de saúde que vai falir. Ele se resolve com uma política social e uma política econômica de governo que defendam o seu povo. Isso tem sido feito em vários países do mundo, como sabemos.

“Eu me preocupo muito mais com os países de baixa renda, com as populações empobrecidas, com os países que vão ter muita dificuldade de responder à pandemia apesar do apoio das instituições financeiras internacionais”

Há mecanismos econômicos conhecidos para enfrentar essa situação — e, se algum ministro da Economia tiver alguma dúvida quanto a isso, não custa nada perguntar aos colegas do Banco Mundial e do FMI que eles saberão informar o que seria ideal neste momento para tentar manter a economia pujante e funcionando em boas condições.

Países do G20 não teriam nenhuma justificativa para se preocupar com uma crise econômica, porque poderiam enfrentá-la desde já.

Eu me preocupo muito mais com os países de baixa renda, com as populações empobrecidas, com os países que vão ter muita dificuldade de responder à pandemia apesar do apoio das organizações financeiras internacionais e de instituições clássicas da luta pela saúde como a Fundação Bill Gates e o Fundo Global de Luta contra a Aids, por exemplo.

Estão todos colaborando com o esforço para combater a covid-19, e comprometidos com o enfrentamento de um problema que é do mundo todo, do planeta Terra. Os organismos internacionais estão trabalhando duro para que a gente possa superar tudo isso — s empre sob a liderança técnica, neste momento, da Organização Mundial da Saúde.

Este ciclo vai passar… e talvez esse momento tão difícil mas de tanta solidariedade nos ajude a viver em um mundo melhor depois disso tudo. É o que espero.

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