Episódios de racismo como o que sofreu João, no ‘BBB21’, reforçam que a resistência é crespa

FONTEPor Ana Paula Lisboa, do O Globo
A escritora e ativista Ana Paula Lisboa (Foto: Ana Branco / Agência O Globo)

Não me lembro de já ter falado sobre o meu cabelo aqui. Esperam que os negros tenham sempre uma história de empoderamento ou superação com o próprio cabelo e que escrevam sobre isso. O meu cabelo não é uma questão, mas como diz minha amiga Mary do Espírito Santo: o cabelo da pessoa preta é uma questão até quando ele não é uma questão.

Começo a escrever esta coluna enquanto tenho o cabelo trançado pela Marlene, eu a vejo e me vejo no espelho. É claro, também mexeu muito comigo que o participante do “BBB” 21, João Luiz, tenha tido o seu cabelo comparado ao dos homens das cavernas esses dias por outro participante. O que mexeu comigo não foi a comparação, foi a reação de João, que na hora não conseguiu dizer nada.

Eu conheço essa sensação, de seguir a vida, repetir pra si mesmo que aquilo não te atinge mais, que você é muito superior ao racismo e ao racista. Mas o incômodo fica lá e o nó vai aumentando até o momento em que você grita, escreve, chora no chuveiro ou abraçado a um amigo.

No capítulo “A Política do Cabelo” de “Memórias da Plantação”, a autora Grada Kilomba descreve que o cabelo dos negros é menos tolerado que a cor da pele, até porque, é algo que pode ser “melhorado”. Por isso, “o cabelo se tornou o instrumento mais importante na consciência política entre os/as africanos/as e na diáspora africana. Rastas, afros e penteados africanos transmitem uma mensagem política de emancipação racial e de protesto contra a opressão racial.”

Em quase quatro anos de Luanda, esta é apenas a quinta vez que tranço o cabelo. Aqui são tantas as opções que eu fico confusa, demoro a decidir e acabo decidindo por nada, uma espécie de catálogo da Netflix. Até que encontrei a Marlene.

Minha memória mais antiga do uso de produtos para “melhorar” o cabelo sou eu aos 4 anos e minha mãe usando em mim algo que tinha o cheiro muito ruim. O mais comum era usar os produtos em casa, minha irmã, minha mãe e eu, mas o processo e os produtos foram ficando cada vez mais agressivos, dolorosos. Eu podia ficar duas semanas até curar as feridas na cabeça, “mas pra ficar bonita tem que sofrer!”

Aos 21 anos, o processo estava tão torturante que eu comecei a fugir. A “validade” do uso da química passou e eu decidi adiar por um mês, dois, três… E assim o meu cabelo começou a crescer, o meu de verdade, o meu que eu nunca havia visto, e afinal era bonito! Decidi que não iria mais ter na cabeça um cabelo que não fosse meu. A coisa mais dura que eu ouvi foi que meu cabelo não ia crescer, que eu ia ficar careca porque meu cabelo não tinha força sozinho, que ele só crescia por causa da química. Hoje toda vez que me olho no espelho eu tenho vontade de ligar pra pessoa e rir. Na época não havia youtubers, não havia produtos, era eu e meu óleo de coco contra o mundo.

Neste processo, um dia eu decidi ir num salão chique e a cabeleireira me olhou como se não soubesse o que fazer, ficou uns 10 minutos procurando na gaveta de pentes um que desembaraçasse o meu cabelo, e não havia. Foi uma das piores experiências da minha vida e eu ainda por cima paguei caro por ela. Na época, como o João, eu não soube o que dizer.

Depois encontrei Andreia, porque tudo o que a gente está procurando, também está à nossa procura. Ela era uma mulher negra, tinha um salãozinho no Méier e foi a primeira pessoa que tocou na minha cabeça sabendo o que deveria fazer. A atenção permanece, porque o capitalismo é feroz e a mesma marca de cremes que produzia os produtos que queimavam minha cabeça, hoje tem discurso de empoderamento.

Todos esses “episódios de racismo cotidiano” não nos definem, mas só reforçam que a resistência é crespa.

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