Erica Malunguinho: “Meu desafio na política é existir tendo que resistir tanto”

São quase três anos como deputada estadual, e Erica Malunguinho tem se colocado em total oposição à gestão de Jair Bolsonaro. Lutas como o enfrentamento do racismo histórico, defesa de populações mais vulneráveis estão no topo de sua agenda. No início do ano, ela teve atuação decisiva para barrar um projeto de lei que poderia proibir a publicidade com pessoas LGBTQIA+ no estado de São Paulo. A proposta levantou críticas até mesmo da iniciativa privada. “Um feito histórico”, define. Para Marie Claire, ela reconstrói sua trajetória e fala sobre a transfobia que enfrenta em seu exercício parlamentar

FONTEPor Humberto Tozze, na Revista Marie Claire
Erica Malunguinho (PSOL-SP) é a primeira deputada trans do Brasil (Foto: Arquivo pessoal)

“Fizemos uma parada LGBT fora de época. Nunca na história do país o poder privado se manifestou desse jeito em relação a uma pauta política.” A fala é da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL-SP), e diz respeito a uma das principais lutas que encabeçou neste ano, quando um projeto de lei que proibia a publicidade com pessoas LGBTQIA+ (PL 504/2020) e casais homoafetivos no estado de São Paulo entrou na pauta na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo). A atuação da deputada foi decisiva: apresentou uma emenda com o apoio de 26 parlamentares, pedindo que o conteúdo fosse revisto. Isso fez com que a proposta retornasse para a análise das comissões. Naquele momento, diversas marcas e empresas se posicionaram contra o projeto de Marta Costa (PSD). O argumento inicial era que tais propagandas poderiam ser “danosas às crianças”, o que foi logo encarado como mais uma forma de discriminação. “Mais de 800 empresas se posicionaram contra. Foi um feito histórico”, resume Erica. Entre elas, Disney, Grupo Heineken e Havaianas.

Erica é de 20 de novembro de 1981, mesma data em que é celebrado o Dia da Consciência Negra no Brasil, dia em que o líder Zumbi dos Palmares teria sido assassinado, por coincidência no mesmo estado em que a deputada nasceu, Pernambuco. Nascida em Água Fria, “o bairro mais preto de Recife”, como se orgulha de recordar, os resquícios daquela época parecem se contrapor à vida política que leva hoje: “Tenho imagens de uma mata muito grande e densa, uma reserva de Mata Atlântica em que eu vivia, brincando ali dentro”. Com o tempo, encontrou-se na arte, na moda e depois na educação. Veio para São Paulo, fundou o Aparelha Luzia – um quilombo urbano localizado no centro da cidade. A confluência desses cosmos não parecia dar muitas pistas do que viria a seguir, mas escolheu enveredar-se nos rumos do Legislativo. “O projeto precisa ser político e pedagógico, se não aproximarmos as pessoas das coisas, das histórias, da política, pouco temos a caminhar”, ressalta.

Hoje, aos 39 anos, compõe um importante capítulo da política brasileira. No mesmo ano em que Jair Bolsonaro (sem partido) foi escolhido como presidente, Erica foi eleita primeira deputada transgênera do Brasil. “Nenhuma violência finaliza em si mesma, mesmo quando há morte.” No dia da posse, ela quis fazer barulho: entrou com um enorme cortejo que chamou de “reintegração de posse”, com batuques e mais de 100 pessoas vestidas de branco desfilando. “Foi político e performativo”, define.

Marie Claire conversou com Erica por videochamada. A entrevista deveria ter acontecido presencialmente na Alesp, mas o aumento dos casos de infecção pela covid-19 no estado, na mesma semana que o país ultrapassou a infeliz marca de 500 mil mortos, obstaculizou o encontro no gabinete.

MARIE CLAIRE Alguns dos seus projetos de lei se relacionam à questão da violência política, por exemplo uma proposta de criação de um programa de combate ao Assédio e à Violência Política Contra a Mulher (PL 130/2021). Qual é a dimensão desse problema atualmente?

ERICA MALUNGUINHO Compreender a realidade em que vivemos é uma responsabilidade de qualquer pessoa que esteja na política institucional. Vivemos num país construído à base de violências históricas que se tornaram estruturais e institucionais. Esse projeto [PL 130/2021 foi fundamentado pelo assassinato de Marielle [Franco], entendendo esse assassinato como parte de um processo institucional que inviabiliza mulheres de entrarem na política e quanto elas entram as formas de exercício de poder recaem sobre nossos corpos.

MC De que forma essa violência se materializa?

EM É o silenciamento da fala, a interrupção, a interferência em projetos, são comentários completamente destituídos de uma relação institucional. E, obviamente, essas situações culminaram no assassinato de Marielle. Estamos falando de vários tipos de assédios, mas que no fim das contas autoriza a morte, a invasão do corpo e situações mais graves. Esse projeto vem no sentido de proteger as mulheres que adentram a política institucional.

MC Ele não foi votado ainda?

EM Não foi. O processo na Alesp é complicado, porque ali trabalhamos basicamente respondendo às demandas do governador. Então, se entra projeto de João Doria, tudo paralisa para debatermos.

MC Como a Comissão de Defesa e dos Direitos das Mulheres da Alesp pode trabalhar para avançar projetos como esse seu?

EM A comissão avalia projetos referentes à violência e políticas afirmativas em relação a mulher. Além dela, tem a Procuradoria da Mulher, que é uma espécie de órgão dentro da Alesp, responsável por fiscalizar as políticas públicas dirigidas às mulheres no Executivo. Sou uma das procuradoras, fomos nomeadas agora. Somos quatro nomeadas pelo presidente da Casa. Temos também a responsabilidade de trazer pautas. Uma das primeiras neste período é a investigação das violências sofridas pelas parlamentares transexuais na Câmara Municipal de São Paulo.

MC O que significa ocupar este cargo?

EM É como se a minha mulheridade fosse institucionalizada ao ser nomeada como uma procuradora da mulher. Eu não dependo desse reconhecimento, não é uma questão de legitimação, mas acho que é uma reflexão e atitude importantes da Alesp ao me colocar como procuradora.

MC A discussão sobre a violência política é capaz de unir parlamentares mulheres de diferentes lados políticos? Aliás, isso tem acontecido?

EM Essa é uma questão muito complexa para promover uma união. As mulheres da Alesp se uniram no caso do assédio que a deputada Isa Penna (PSOL) sofreu, pois era uma agressão física e explícita. Vale dizer que muitas delas não foram solidárias com a Isa, mas foram no gabinete de Fernando Cury (Cidadania). Esse é um dado muito importante quando você pergunta sobre união. Acredito que em casos extremos elas acabaram votando a favor da punição do assediador [Fernando Cury foi afastado do cargo por seis meses]. Mas isso não acontece em casos de questões ideológicas ou quando envolve a compreensão do que é ser mulher no mundo. Muitas mulheres na Alesp se dizem antifeministas.

Erica Malunguinho (PSOL-SP) é a primeira deputada trans do Brasil (Foto: Arquivo pessoal)

MC As políticas de aborto, por exemplo, segregam mulheres na Alesp?

EM Sim, os direitos sexuais e reprodutivos se alocam dentro de posições ideológicas que no campo da direita não tem espaço, porque ela está calcada na moralidade e em pressupostos religiosos que ferem o Estado laico. Tratam moralmente e do ponto de vista religioso para pensar políticas públicas para mulheres.

MC Imagino que a violência política investida contra os homens é diferente da investida contra mulheres e LGBTQIA+. Como você particularmente a sentiu?

EM Essas violências se dividem basicamente em duas: sobre o posicionamento político que os homens cisgêneros podem ser acometidos. Por exemplo, o Marcelo Freixo (PSB) denunciou as milícias e estava sendo ameaçado, isso diz respeito à atuação política. No nosso caso, diz respeito a uma condição de ser quem somos. Essa sobreposição da voz, o tipo de contato e relacionamento muito baseados nos nossos atributos físicos, a suspeição da nossa capacidade profissional.

MC E afeta de forma distinta mulheres cis e trans?

EM Entre mulheres cisgêneros e mulheres trans podemos fazer uma outra temática, que é assim: as mulheres cisgêneros vão passar por violências relacionadas aos atributos físicos, às vezes comentários elogiosos demais, de modo que não se atentam ao que a mulher está falando ou então subestimando-a. Toques invasivos, aproximações invasivas. Uma mulher trans nem considerada gente é. Ela está num outro lugar da humanidade, de modo que o tipo de assédio que vai acontecer comigo é além de ser esse da dúvida, da suspeição da fala, da intelectualidade, ele vai num grau de desumanização. É me perguntar se sou operada.

MC Isso já aconteceu?

EM Sim. De perguntar se sou operada, de situações como usar o plenário para falar de minha condição de gênero, me chamar de “transformer”, por exemplo. Ou ficar a todo momento tentando elaborar minha existência: “é homem que se sente mulher ou mulher que se sente homem?” Deslegitimando minha condição. A violência de gênero que me é praticada vem com essas doses de abjeção e objetificação do meu corpo. Parte das violências vêm na interdição dos meus projetos de lei, principalmente quando falam de LGBTs. E outra coisa é a provocação de projetos anti-LGBTs, especificamente contra pessoas trans. Considero essa uma violência política de gênero no contexto em que estou inserida.

MC A vereadora Benny Briolly (PSOL) precisou sair do país após sofrer ameaças de morte. Passou pela sua cabeça sair do país ou deixar a política?

EM Assim que entrei na Alesp, precisei mudar de casa pois eu recebi um e-mail descrevendo toda a minha casa, o meu apartamento, a porta de entrada. E logo que fui eleita, conversei com muita gente, principalmente lideranças negras, mulheres negras mais velhas e elas foram muito enfáticas e categóricas na discussão da minha proteção e segurança pessoal. Desde o início procurei estabelecer junto com a equipe um protocolo de segurança pessoal nas redes, de não acionar certos lugares na rede.

MC Qual é a sua avaliação a respeito da gestão do presidente Jair Bolsonaro no que diz respeito às populações mais vulneráveis, como a população trans, a carcerária, as mulheres e as pessoas pretas?

EM Não tem gestão para isso. O governo federal tem implementado uma política de perseguição aos povos originários, à população quilombola, o que denota nitidamente a prática de um Estado racista. Em relação às pessoas trans não há nenhum suspiro, nenhuma fala. Não existem políticas públicas para as populações vulneráveis, exceto as mulheres cisgêneros que de alguma forma adentraram, a partir de lutas históricas, o reconhecimento de algumas vulnerabilidades. Mas numa gestão como a de Bolsonaro, essas vulnerabilidades só são acolhidas de forma ideológica e moralista, que não compreende o corpo dessas mulheres como corpo emancipado, mas como um corpo que deve ser controlado pelo Estado.

MC Tivemos números expressivos de eleição de mulheres trans nos últimos pleitos. Como você explica esse acontecimento?

EM Fui eleita como primeira parlamentar transsexual do Brasil no mesmo cenário que Bolsonaro emergiu. Nenhuma violência finaliza em si mesma, mesmo quando há morte. A violência é devolvida. Existe uma oposição aos desmandos, à negatividade trazida por Bolsonaro. Eu me considero um exemplo naquele momento. A pergunta que faço é: quando isso vai se materializar em um cargo do Executivo?

MC Essa seria uma vontade sua? Pleitear a prefeitura?

EM Não penso sobre isso, penso em cumprir com a responsabilidade que eu fui eleita para fazer e vou pensando a conta-gotas nesse sentido. Não vejo nem cenário para que haja uma legislatura a chefe do Poder Executivo sendo uma mulher trans no nível de conservadorismo que está.

MC E como vê a gestão do governador de São Paulo, João Doria, em relação à pandemia?

EM De forma geral, é uma gestão ineficaz para resolver os problemas que São Paulo tem hoje. Não vejo nenhum sinal ou avanço no que diz respeito a questões como o transporte público e saúde. Não se vê nenhuma sinalização quanto ao rompimento da fome e da população em situação de rua. Eles não combatem estruturalmente o problema. E temos que falar que tem também um grupo político que toma conta de São Paulo há décadas e que nós enfrentamos problemas iguais ou parecidos de 15, 20 anos atrás. Administrar a pandemia significa ir além do lockdown, deveria vir junto de um apoio aos trabalhadores que ficaram sem trabalho, não era só a questão da vacina. Ele cumpriu uma responsabilidade importante em tomar a frente disso, mas vale dizer que ele queria privatizar o Instituto Butantan. É uma sorte que temos o Butantan a serviço do Estado neste momento.

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