Escrever para resistir: a literatura no cárcere como ferramenta abolicionista

FONTEPor Ana Luiza Biazeto
Ana Luiza Biazeto / Arquivo Pessoal

Em meio ao caótico sistema prisional brasileiro, o ato de escrever tem se mostrado uma ferramenta transformadora para mulheres encarceradas. Há 14 anos, Denise Carrascosa, professora da Universidade Federal da Bahia, coordena o projeto de extensão abolicionista “Corpos Indóceis e Mentes Livres”, no Conjunto Penal Feminino do Complexo Penitenciário Lemos Brito, na Bahia. Apesar da escassez de recursos nesse espaço, Carrascosa revela como a prática da escrita leva a uma conscientização política, a um debate crítico sobre o sistema prisional e a uma percepção ampliada sobre ser mulher negra presa. 

Falar sobre o aprisionamento de mulheres no Brasil é também reafirmar que mais de 65% dessa população é composta por mulheres negras. Em 2010, quando ainda se discutia pouco sobre raça e gênero no sistema prisional, procurei mostrar na minha dissertação de mestrado, “A diferença está na pele? – Depoimentos de mulheres negras e brancas presas na Penitenciária Feminina de Sant’ana”, que o sistema penal brasileiro foi historicamente moldado para controlar as mulheres negras. O racismo sempre serviu como lente para enxergar o funcionamento desse sistema, e compreender o fenômeno criminal no Brasil exige reconhecer o racismo como uma categoria estruturante na dinâmica penal do país.

Nesse cenário, o Coletivo Corpos Indóceis e Mentes Livres, sob a liderança de Denise Carrascosa, oferece, através da literatura, educação e arte, não apenas uma possibilidade de remissão de pena, mas uma oportunidade de reflexão profunda dentro do cárcere. Na entrevista a seguir, a professora compartilha sua experiência ao longo de mais de uma década trabalhando com mulheres encarceradas, abordando a importância da literatura no despertar da consciência política e refletindo sobre os desafios enfrentados na luta pelo abolicionismo penal no Brasil. A conversa descortina as barreiras enfrentadas em um sistema prisional historicamente direcionado à punição de pessoas negras, mas também evidencia a escrevivência, conceito cunhado por Conceição Evaristo, como uma experiência pessoal que investiga e denuncia a realidade vivida por essa maioria de mulheres negras.

Denise Carrascosa – Arquivo Pessoal

Professora, como surgiu a ideia do coletivo e o que antecedeu sua criação, que hoje já tem 14 anos? 

Denise Carrascosa: A criação do coletivo tem uma trajetória que é anterior ao meu ingresso na academia, e está relacionada ao meu ativismo e à minha história familiar. Sou fruto de duas famílias negras, de periferia, em Salvador. A família da minha mãe é originária do Curuzu, onde nasce o Ilê Aiyê e várias iniciativas de afirmação negra na década de 60 e 70. A família do meu pai é de um bairro adjacente, Cidade Nova, São José de Cima. Ambos, meu pai e minha mãe, se formaram juristas na Universidade Federal da Bahia na década de 70. Eu nasci nessa mesma década e também me formei em direito na mesma universidade.

Desde minha infância e adolescência, presenciei os esforços do meu pai para coordenar ações de assistência jurídica gratuita para homens encarcerados, em sua maioria negros, na nossa cidade, garantindo o direito à defesa. Essa formação política faz parte da minha história.

Ingressei na faculdade de direito em 1995, me formei em 1999 e participei de ações da Defensoria Pública do estado, trabalhando com assistência judiciária gratuita. Entretanto, segui outro caminho, o das letras e da literatura. Fiz mestrado e doutorado, e minha pesquisa de doutorado foi focada na escrita que vem do cárcere.

Nos anos 90, no Brasil, ocorreu um evento trágico conhecido como o Massacre do Carandiru, em 1992, onde 111 homens foram assassinados pela polícia militar no complexo prisional de São Paulo. Esse evento desencadeou uma série de debates sobre a questão prisional brasileira, que foram ganhando espaço na política e organizando a própria direita, com discursos de ampliação da legislação criminal.

Nesse contexto, o discurso punitivista começa a ganhar força no Congresso Nacional e culmina na constituição do sistema legal antidrogas na década de 90. Por outro lado, ativistas de esquerda e pesquisadores da criminologia crítica também começam a se organizar, promovendo debates na cena legislativa e na pesquisa acadêmica. Esse cenário de tensão social moldou o interesse da minha pesquisa, que foi realizada entre 2005 e 2008.

Minha tese de doutorado foi escrita nesse período e focada na literatura que surge do sistema prisional. Naquela época, constatei a ausência de iniciativas organizadas de escrita por mulheres encarceradas. Havia poucas oficinas, a maioria voltada para homens. Decidi, então, atuar diretamente no sistema prisional feminino, ministrando oficinas de literatura para mulheres no complexo penitenciário da Bahia.

Em 2009, após a defesa da minha tese, comecei a estruturar o projeto e negociar com a Secretaria de Administração Penitenciária e a direção da unidade prisional. Em 2010, iniciei o trabalho, que buscava preencher lacunas como a ausência de uma biblioteca no complexo. Chamei pessoas que estavam fazendo mestrado, doutorado e graduação orientadas por mim, para agregarem outras artes ao projeto, como música, teatro, cinema e fotografia.

Dessa forma, o coletivo foi se formando gradualmente, com pessoas se unindo em torno do problema do superencarceramento no Brasil. Entre 2005 e 2016, o encarceramento de mulheres cresceu exponencialmente, em grande parte devido à atuação da lei de drogas. Nesse contexto, trabalhar de forma isolada dentro do sistema prisional se mostrou inviável, pois o sistema opera para minar qualquer projeto de liberdade ou humanidade.

Foi essencial ter uma base de princípios e um propósito claro para continuar. Muitas mulheres negras de diferentes áreas das artes se juntaram a mim nesse projeto, e foram essas mulheres que se consolidaram no coletivo ao longo dos anos. Enquanto outras pessoas seguiam seus caminhos após concluir seus estudos, essas mulheres negras permaneceram, formando um núcleo sólido no coletivo.

Assim, ao longo de mais de uma década, o coletivo se estabeleceu e continuamos a atuar juntas, levando adiante essa luta dentro do sistema prisional.

Ao longo dos mais de 10 anos de trabalho de literatura no cárcere, quais são as principais transformações e resultados que você observou?

Denise Carrascosa: Antes mesmo de iniciar o trabalho prático dentro do sistema prisional, eu já havia estudado textos publicados por pessoas presas e observei como essas escritas apresentavam sinais de uma “tecnologia de escrita de si” em uma situação extrema, como o cárcere. Essa escrita serve como uma forma de reconstituir e restituir traços de humanidade àqueles que escrevem nessas condições.

Quando comecei a dar aulas no sistema prisional, percebi que a metodologia precisava ser extremamente flexível e improvisada. A infraestrutura é incerta, a sala de aula pode não existir ou ser interrompida a qualquer momento, e o próprio conjunto humano é flutuante, sujeito a várias formas de tortura — psicológica, física e linguística. Além disso, há a falta constante de materiais pedagógicos, e o ambiente é muitas vezes desfeito rapidamente por decisões da administração prisional, que pode considerar certos livros “perigosos”.

Diante dessas condições, é necessário ter uma visão ampla do que é a escrita. Em situações extremas, quando não há papel, caneta ou mesa, é possível recorrer à escrita do corpo, como fizemos em momentos de improvisação, criando coreografias coletivas. No entanto, quando conseguimos focar na escrita física, os temas precisam ser de grande interesse, pois o foco das pessoas presas é a sobrevivência e a liberdade. Assim, a escrita é sempre funcional, seja para redigir bilhetes aos advogados ou para escrever poemas como forma de manter a sanidade mental.

Em 2012, conseguimos criar um espaço de biblioteca no complexo penitenciário feminino, sem financiamento estatal ou universitário, mas por meio de uma iniciativa coletiva e voluntária. Organizamos um concurso entre as mulheres sentenciadas para que elas nomeassem o espaço, o que resultou no nome “Mentes Livres”. Esse espaço é simbólico e político, e serve como uma ferramenta de conscientização crítica do sistema punitivo.

O trabalho dentro da biblioteca também permite a remissão de pena por leitura e trabalho. A biblioteca é gerida por mulheres presas que recebem remissão de pena pelo seu trabalho semanal, e isso ajuda a promover um ambiente de reflexão crítica sobre a própria condição de encarceramento.

Quanto aos resultados práticos e sociais, além da remissão de pena, temos trabalhado 

para construir uma identidade afirmativa para essas mulheres, que compreendem o papel punitivo e violento do Estado em suas vidas. Essa conscientização ajuda a diminuir a reincidência, pois elas passam a buscar outras trajetórias, compreendendo o 

uso violento de seus corpos no tráfico de drogas, por exemplo.

Um exemplo concreto de resultado é a redução do uso de medicação psiquiátrica. A 

continuidade do trabalho tem ajudado algumas alunas a deixarem de lado medicamentos pesados, como no caso de uma aluna que hoje trabalha na biblioteca e já não precisa mais dessas medicações.

Como o processo de remissão de pena contribui especificamente para o desenvolvimento de uma identidade feminina afirmativa, e quais mudanças têm sido observadas entre as mulheres que passam por esse processo de conscientização?

Denise Carrascosa: Temos uma remissão de quatro dias para cada livro lido e resenhado, dentro de um limite legal de um livro por mês. Por exemplo, no primeiro ano da pandemia, em 2020, conseguimos reduzir o número de mulheres sentenciadas de mais ou menos 110 para 32, utilizando a remissão de pena pela leitura. Esse é um resultado muito prático.

Muitas dessas mulheres não têm assistência jurídica eficiente, pois dependem de uma assistência pública que muitas vezes as abandona, especialmente mulheres negras, pobres e periféricas, que já foram abandonadas pela família. Então, ao movimentarmos o processo de remissão de pena, certificados pela universidade, conseguimos dar visibilidade e atenção a essas pessoas, mostrando que elas estão vivas, lendo e escrevendo. Isso ajuda a mobilizar o sistema penal, a Defensoria Pública e o juiz de execuções penais, promovendo a progressão de regime e esvaziando um pouco esse espaço superlotado.

Do ponto de vista social e humanitário, o trabalho vai além da leitura e escrita técnica, há um processo de conscientização política e construção de identidade afirmativa. Essas mulheres passam a se ver como trabalhadoras empobrecidas, periféricas e de baixa escolaridade, majoritariamente negras. Esse processo faz com que compreendam o papel punitivo do Estado em suas vidas, o que as ajuda a construir projetos para o pós-encarceramento.

Esse fortalecimento de identidade também contribui para a redução da reincidência. Antes do projeto, víamos um índice alarmante de reincidência, com muitas mulheres voltando ao crime organizado por serem usadas como ‘mulas’. Com a construção de consciência sobre gênero, raça e classe, elas buscam novas trajetórias, entendendo melhor o uso violento de seus corpos pelo sistema de tráfico.

Outro resultado importante é a diminuição da medicação psiquiátrica. Uma das nossas alunas, que está há quase cinco anos no projeto, estava inicialmente muito medicada e com baixa lucidez. Com a continuidade do trabalho, ela conseguiu deixar os medicamentos e hoje trabalha na biblioteca da unidade prisional, obtendo remissão de pena não só pela escrita, mas também pelo seu trabalho.

Poderia ser aprofundar um pouco mais nesses aspectos relacionados aos impactos do projeto?

Denise Carrascosa: Às vezes, há coisas que são mensuráveis, e eu estou tentando trazer aquilo que conseguimos medir para falar sobre resultados. No entanto, há também resultados que são incomensuráveis, e acho que o impacto da arte nas nossas vidas — e especialmente nas vidas das pessoas que estão sob o processo violento do encarceramento — é um desses resultados difíceis de mensurar.

Os testemunhos das mulheres são muito comoventes e reveladores sobre esses impactos, talvez até sugiram uma linha de pesquisa futura. Por exemplo, uma das nossas alunas ganhou o Prêmio Literário Abolicionista Maria Firmina dos Reis de Poesia em 2022. Esse prêmio, que oferece uma quantia em dinheiro, é um concurso literário nos moldes de outros concursos renomados. Poetas e contistas de referência na literatura brasileira, como Conceição Evaristo e Miriam Alves, fizeram parte do comitê julgador. As vencedoras recebem um diploma da Universidade Federal da Bahia.

Essa aluna, que participou do curso de poesia, relatou que, inicialmente, ler poesia parecia algo distante da sua realidade, quanto mais escrever poesia. A situação de aprisionamento era tão violenta para ela que precisou começar a tomar remédios psiquiátricos para suportar. Quando as aulas de poesia começaram, ela foi instigada a participar do concurso e entrou em contato com as obras de Conceição Evaristo e Conceição Lima, escritora africana de língua portuguesa. Ao se envolver mais com a poesia, ela descreveu a sensação de se sentir livre ao ler e escrever, como se não estivesse presa.

A transformação pôde ser observada em seu corpo: no início, ela usava o cabelo escondido, para baixo, mas, com o tempo, começou a trançá-lo e a usar fitas, exibindo com orgulho seu cabelo natural. Além disso, ela é artesã de brincos e começou a cuidar mais de si mesma, chegando às aulas de forma afirmativa. Esse exemplo ilustra o impacto da arte na vida dela.

Um segundo exemplo é o documentário ‘Firmina sem Fuga’, organizado dentro do presídio, com 15 minutos de duração. Quando as mulheres assistem a si mesmas na tela, a euforia é imensa. Elas se veem no centro da cena, belas, vestidas com figurinos cedidos pelo Teatro do Bando Olodum — a companhia de teatro negro mais longeva da América Latina — e maquiadas por profissionais, ao som da banda de atabaques de mulheres negras, Didá. Esse trabalho envolve diversas formas de arte, como poesia, dança e música, e promove um ‘espelho afirmativo’ que reflete as resistências dessas mulheres.

É claro que medir esses resultados é difícil, pois se trata de arte. Porém, acredito que um trabalho de pesquisa poderia tornar isso mais legível. Há uma mudança profunda nas vidas dessas mulheres, que é difícil de expressar em termos de medidas, mas que é evidente e muito importante.

Há censura ou limitações impostas pela administração prisional aos textos e produções feitas pelas mulheres? Como vocês lidam com essas dificuldades?

Denise Carrascosa: Nós manejamos relações difíceis com o sistema de administração penitenciária. Obviamente, por lei, não pode haver censura à escrita, nem em relação às temáticas, nem ao estilo ou ao conteúdo dos textos. Temos um álibi legal de que esses textos não podem ser lidos previamente para que possamos sair ou não com eles em mãos. 

Ao final de cada edição do curso, fazemos uma coletânea de textos que são selecionados, catalogados e que geram material para a biblioteca, alimentando o curso do ano seguinte. Já temos um acervo de 14 anos de escrita em diversos formatos, como poesia, contos, peça de teatro, cordel e livro de provérbios. Utilizamos linguagens diversas para expressar, inclusive por meio de visuais metafóricos, aquilo que talvez não possa ser dito com palavras. O livro Firminas em Fuga, que organizamos em 2023, por exemplo, traz um QR Code que permite ver um documentário homônimo dirigido por Patrícia Freitas, sobre o processo de arte-educação e criação dos poemas naquele ano.

Posso afirmar que conseguimos sair do sistema prisional com esses textos que confrontam o Estado. No entanto, há um movimento delicado e complicado de tensão entre forças de libertação e forças punitivas. Quando organizamos as coletâneas, elas voltam para a biblioteca, mas, às vezes, somem ao longo do tempo, o que nos obriga a reiniciar o trabalho no ano seguinte. É evidente a presença dessas forças de contenção, que atuam de forma sutil. Por exemplo, durante as aulas, as agentes penitenciárias ficam na porta escutando e, às vezes, fazem comentários, como: “Professora, esse livro que a senhora está utilizando é bem interessante. Posso ler?” Eu respondo: “Claro, está na biblioteca, fique à vontade para ler.” Mas há essas nuances invisíveis de controle sobre o que está sendo feito.

Você menciona a presença de diferentes formas de arte no coletivo além da literatura. Como isso se dá?

Denise Carrascosa: Temos uma vertente do nosso trabalho que é olhar para outros tipos de arte que estão sendo realizados dentro do sistema prisional brasileiro, junto com o coletivo Corpos Indóceis e Mentes Livres. Além disso, existe uma circulação de artes negras dentro do complexo prisional, englobando diferentes frentes de atuação, mobilizadas por pessoas experientes em diversas linguagens artísticas, que aderem ao trabalho ao longo do ano e se tornam gatilhos no processo criativo. Elas influenciam a maneira como a escrita das participantes é organizada, os signos e temáticas abordadas, bem como a expectativa dos leitores ou espectadores.

Também trabalhamos com a contação de histórias e a tradição oral. Por exemplo, nossa mais velha, Vovó Cici, Egbomi de Oxalá, narrou um itãn do Velho Orixá para a filósofa Angela Davis, quando ela veio a Salvador em 2023, com tradução feita por mim. Esta narração, além de implicar mulheres que são emblema de nossa libertação comunitária, trouxe de volta ao nosso imaginário uma história que envolve destino, caminho, sabedoria, resistência e justiça – valores fundamentais à construção de um outro projeto de nação que tenha as mulheres negras como protagonistas.

Além disso, temos trabalhos artesanais feitos por nossas alunas, como a reciclagem de materiais, lápis, máscaras contra Covid, restos de sabão e potes de sorvete. Por exemplo, uma aluna fez uma releitura de um poema de Conceição Evaristo em um objeto de arte plástica, demonstrando a intermedialidade entre poesia e artes visuais. É importante sinalizar que muitas das nossas alunas podem ser consideradas analfabetas do ponto de vista do alfabeto latino, mas quando traduzem um poema em um objeto de arte plástica, isso é uma forma de leitura. Por isso, estamos tentando convencer o sistema criminal de que essa prática deve contar para a remissão de pena, além do processo de escolarização e letramento formal.

Então, em resposta à pergunta, podemos dizer que as artes estão entrelaçadas no nosso processo pedagógico, e dei alguns exemplos aqui para ilustrar.

Pensando nos projetos pós-encarceramento, que passam a existir, conforme você disse anteriormente, através da consciência política e da construção de uma identidade afirmativa dessas mulheres, é possível acompanhá-las após a saída do sistema prisional? 

Após a saída, mantemos um contato extraoficial com as mulheres que foram nossas alunas, acompanhando a reinserção na sociedade por meio do trabalho, da família e da religião. Temos contatos com outras organizações políticas de mulheres negras da cidade, que ajudam na inserção dessas mulheres em cursos de formação ou em comunidades religiosas de matriz africana.

Se conseguimos contato com familiares, buscamos fazer a conexão para que eles recebam essas mulheres de volta em casa após a saída do sistema prisional. Contudo, como o projeto é voluntário e sem financiamento público ou privado, há limitações. Precisamos estimular políticas públicas para garantir uma absorção mais eficiente dessas mulheres.

Ainda é uma dimensão muito nebulosa, pois faltam dados e políticas públicas para absorção das mulheres que foram encarceradas. Por isso, uma das dimensões do projeto é promover o debate público, pressionando até mesmo governos de esquerda a pensarem na condição dessas pessoas que sobreviveram à custódia violenta do Estado.

Professora, nesses anos de luta antiprisional, já houve a oportunidade de refletir sobre o ideal de um mundo sem prisões, considerando as práticas abolicionistas que já estão acontecendo?

Denise Carrascosa: Eu acredito que, nesse mundo punitivista, um dos pilares de qualquer Estado moderno é o convencimento social amplo e irrestrito de que não há outra forma de construir um Estado civilizado e democrático sem a punição. Esse convencimento social é um capital político, inclusive eleitoreiro. Os Estados e seus representantes se elegem com base em discursos de contenção do crime e punição aos criminosos, o que leva a uma ampla criminalização de diversas esferas políticas e sociais.

Acredito que o primeiro passo para imaginar um futuro sem prisões é desconvencer a sociedade dessa ideia de que a punição é a única maneira de garantir a segurança. Projetos como o que estou engajada são, sobretudo, projetos de desconvencimento social. Claro que esse é um projeto de longo prazo, que precisa atravessar décadas e até séculos, pois o convencimento atual não é recente. Ele passou por vários estágios, inclusive pela formatação dos modos de punibilidade e pela invenção da noção de crime nas sociedades coloniais, que são fruto de uma colonização violenta.

Esse processo de reversão do imaginário é denso e envolve um campo político complexo, abrangendo questões de raça, gênero, classe social, idade, geopolítica, capacitismo, LGBTQIA+ e muitas outras identidades políticas. A criminalização é uma tecnologia que se aplica a vários ‘outros’, e desconvencer a sociedade da naturalidade de punir e castigar exige um projeto coletivo e consistente.

Na minha opinião, esse processo, que é histórico, não pode ser realizado de forma rápida ou revolucionária em um curto período. Ele precisa acontecer em diálogo profundo com o campo dos afetos, que é mobilizado pelas artes e pelo simbólico. Nossa atuação progressista no campo das artes, para desconvencer a sociedade de que a punição é o único caminho para construir uma segurança, é uma das possíveis estratégias.

Outra tarefa urgente é expor e constranger publicamente o Estado, desmascarando a violência desse aparato estatal em parceria com o setor corporativo privado, que lucra com a violência sobre os corpos que custodia. É preciso mostrar à sociedade, em âmbito internacional, a contradição da existência das prisões. O sistema prisional é uma forma de custódia de corpos considerados perigosos, sob uma falsa noção de ressocialização. Desmascarar esse processo e as relações de lucro associadas ao mercado da vingança e do castigo é outra tarefa fundamental.

Precisamos trabalhar para desconvencer a sociedade, desmascarando essas relações espúrias e construindo um consenso em torno de princípios humanistas. Infelizmente, esses projetos avançam mais devagar do que gostaríamos, mas é um trabalho para o futuro que precisa começar agora. E esse “agora” tem raízes profundas, remontando aos séculos XVIII e XIX, pois as lutas abolicionistas estão de pé desde que a primeira corrente atingiu o corpo da primeira pessoa escravizada, mas não a sua mente.


Ana Luiza Biazeto é assessora internacional de Geledés – Instituto da Mulher Negra, jornalista, mestre em Serviço Social e atualmente doutoranda em Estudos Latino-Americanos na Universidade do Texas em Austin. Sua pesquisa foca no encarceramento de mulheres negras em São Paulo e no impacto dessa realidade em suas famílias.  

-+=
Sair da versão mobile