Especificidade do racismo brasileiro

Sempre perguntam o porquê de algumas pessoas não se identificarem como integrantes da população negra no Brasil, mesmo se essas mesmas pessoas, em vários outros países, como nos Estados Unidos da América, são nitidamente negras, tanto pelo conjunto de fenótipos que apresentam, quanto pela ascendência. 

Oracy Nogueira afirmou que existem distinções na definição de algum grupo como branco ou negro, de modo que nos Estados Unidos importa a ascendência, a “gota de sangue”, enquanto que, no Brasil, a discriminação se apresenta em razão da cor da pele. “Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de origem” (NOGUEIRA, 2006, p. 292). Nesse sentido, o preconceito racial brasileiro é de marca, enquanto o preconceito racial nos Estados Unidos é de origem.

Então, pelo menos no Brasil, as pessoas negras são identificadas a partir dos seus fenótipos, e quanto mais ligadas a traços afrodescendentes, mais cicatriz e coação sociais esse grupo sofrerá. Ainda que no século XXI tenha havido mais valorização da cultura africana, com a implementação de políticas e ações afirmativas, ainda permanece a inferiorização da população negra por argumentos relacionados a capacidade intelectual, estética e seu lugar espacial.

No Brasil, é a cor negra da pele que faz com que as pessoas tenham questionadas sua capacidade de atuação em qualquer área e setor, também é ela que faz como os corpos negros sejam definidos como criminosos, passíveis de sofrer arbitrariedades policiais, bem como insultos que retiram a sua humanidade.

Os brancos ainda são apresentados como o modelo a ser seguido, o padrão universal em todos os setores sociais, políticos e econômicos, por isso que o racismo está estruturado na sociedade. Não obstante, os papéis de gênero são centrais também para a construção da dinâmica patriarcal e racista existente. “O mito da mulher negra disponível, o homem negro infantilizado, a mulher mulçumana oprimida, o homem mulçumano agressivo, bem como o mito da mulher branca emancipada ou do homem branco liberal são exemplos de como as construções de gênero e de “raça” interagem” (KILOMBRA, 2019, p. 94, grifo original).

A manutenção do racismo é garantida com a normalização e a naturalização de suas práticas, inclusive na  tentativa de suavizar a afrodescendência ou ancestralidade africana, ora com assimilação, ora com a negação da cor negra da pele, com frases como “você não é negro, para com isso”, como se negro fosse algo ruim, feio e/ou incompetente. Ouso argumentar que a negação da cor da pele negra é uma forma de negar que há relacionamento com alguém da raça inferiorizada.

Os estigmas sociais impostos ao negro são tão profundos que muitos negros se rendem a essa ideia racista de subalternação dos seus corpos e recusam a sua própria negritude. Também existem casos de pessoas que foram silenciadas tantos anos, ou que tiveram a sua existência no mundo negro negada também por toda a sua vida, que encontram dificuldades de combater o racismo sofrido, de modo que se rendem a frases do racista, a ponto de se aliar com o seu “algoz”.  

Grada Kilomba (2019) afirma que as vivências do racismo cotidiano são traumáticas, porque o racista naturaliza comportamentos que chegam a ser difíceis de serem punidos como crimes, mas isso não afasta a sua violência. A autora narra como é racista a ideia de que os negros têm que ficar explicando como lavam os seus cabelos, ou sobre o toque em seus cabelos sem pedir, como se fossem um animal, ou como tentamos ser perfeitos para não ofendermos o racista quando este utiliza figuras, piadas ou frases preconceituosas. Esta última situação têm sido motivo de frustação para muitos negros, porque o perfeccionismo para corrigir o racista é ignorado, já que não há reconhecimento da conduta ofensiva.

A esse respeito, Kilomba (2019) narrou a história de Alicia, uma jovem negra que, quando criança, odiava que ficassem pegando em seu cabelo (“invadindo o seu corpo”), e que, adulta, ainda enfrenta essa situação com frequência. Alicia diz “eu não tocaria em ninguém assim” (Nem eu!). Na infância, a mãe dela dizia que era curiosidade e quando ela passou a se posicionar contra isso, disseram que ela estava sendo grosseira.

Não faz sentido o oprimido ter que ficar se justificando frente a manifestações racistas, mas isso é tão comum que aquele que nomeia as atitudes e comportamentos como discriminatórias acaba se tornando o opressor. Mas essa é a arma de dominação do racismo, porque culpabiliza a vítima.

“Então, quando o sujeito negro denúncia o racismo, o sujeito branco, como uma criança, regride a um comportamento imaturo, tornando-se novamente a personagem central que precisa de atenção enquanto o sujeito negro é colocado como secundário. A dinâmica entre ambos é virada de cabeça para baixo. Na psicanálise clássica isso é chamado de regressão” (KILOMBA, 2019, p. 123, grifo original).

Em razão dessa realidade presente na sociedade brasileira, muitos negros tinham uma percepção deturpada sobre a sua condição social, pois ser negro é ter que enfrentar diariamente o racismo. Não é estranho que alguém negue a sua negritude, quando tudo ao seu entrono o classifica como desprezível, ruim ou exótico. Nada o humaniza na mesma medida que o branco. É necessária uma desconstrução social sobre a articulação do racismo, inclusive para visibilizar aos negros que os racistas sempre sabem quem é branco e quem é negro.

A luta antirracista persiste contra as violências diretas, e deve agir de forma radical contra os comportamentos racistas consciente e inconscientes que dificilmente serão tipificados como crime, mas que como tal, oprimem e violentam.

Referências:

NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marcar e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo social. Revista de Sociologia da USP, v. 19, n. 1, 2006, p. 287-308. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ts/v19n1/a15v19n1.pdf. Acesso em: 20 set. 2020.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. 1ª.ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

Waleska Miguel Batista, Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Mestra em Sustentabilidade e Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Integrante do Grupo de Pesquisa Estado e Direito no pensamento social brasileiro, vinculado ao PPGDPE/UPM.

 

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