Estado policial

Talvez vários procuradores de justiça, juízes e delegados de polícia desconheçam a obra de Raymond Carré de Malberg. É pena, porque o jurista francês publicou escritos fundamentais para a vida democrática, na passagem do século XIX para o XX. Suas análises e advertências, não acolhidas  pelos conterrâneos, anunciaram o clima de terror na pretensa república de Vichy, escabelo usado pelo nazismo para destruir, humilhar, vencer as resistências dos que perderam nos campos de batalha. Carré de Malberg se preocupou com o Estado de direito e os ataques contra tal regime. No doutoramento, defendido em 1887, o tema prenuncia o desenvolvimento posterior de sua pesquisa: História da exceção no direito romano e nos antigos processos franceses (Editora Rousseau). No capítulo intitulado “Transformação das praescritiones pro reo em exceções” ele mostra o quanto eram importantes, no direito romano, pontos que hoje passam despercebidos na opinião pública e para muitos juristas. Trata-se em primeiro lugar de não conduzir uma decisão sobre questões maiores a partir de questões menores. E também sobre a pergunta se um processo seguiu todos os trâmites exigidos e, ademais, se o magistrado é de fato e de direito competente para o veredicto. Sem aqueles requisitos o direito perde todo sentido, cai o Estado na voragem da força física, arbítrio, truculência contra os réus. Ao deixar o direito, o poder seguiria rumo à barbárie. Vale a pena ler semelhante trabalho, acessível no site da Gallica, Librairie National de France.

Por Roberto Romano da Silva, da  Jornal da Unicamp

 

Roberto Romano da Silva (Foto: Cláudio Silva / Agência RBS)

Qual o motivo para evocar o jurista do século 20? Carré de Malberg  assumiu uma posição positivista no direito constitucional. Entenda-se: ele considerava estratégico analisar o Estado existente, não o idealizado que reside nos manuais de direito, nas aulas universitárias ou sentenças de juízes que da situação efetiva nada conhecem. Eles julgam e condenam ignorando a sociedade real a que deveriam servir. Seria excelente se, em nossa terra, as lições trazidas por ele fossem conhecidas e praticadas. O divórcio entre o povo e a prática do direito seria amigável. Ao persistir o vezo de aplicar códigos idealizados, nossa justiça é levada a um divórcio litigioso com a população, sobretudo a que não habita os palácios. Um ensino precioso que o pensador nos traz, trata justamente da calamidade que rege o trato das chamadas autoridades e o mundo civil em nossos tristes dias. Refiro-me à sua definição do Estado policial.

Vivemos no século 20 sob dois Estados policiais, a ditadura Vargas e a civil/militar de 1964. Em ambas os direitos foram espezinhados, o monopólio estatal da força física foi mantido com selvageria, foram feitas prisões injustificáveis em direito ou ética, torturas, censuras, exílios, assassinatos de opositores. Sob a Polaca, a suposta segurança nacional justificava os excessos do poder. Na ditadura de 1964 surgiram os Atos Institucionais, vários deles redigidos pelas mãos do mesmo autor da Carta de 1937, Francisco Campos, o nosso Carl Schmitt. Na calada da noite, mesmo decretos secretos, delírio totalitário, foram impostos à Nação. E  sempre em nome de causas pretensamente nobres, como o combate à corrupção e a luta contra agentes subversivos. É de Raymond Carré de Malberg uma das mais exatas definições do Estado policial. Naquele poder “a autoridade administrativa pode, de modo discricionário e com uma liberdade decisória mais ou menos completa, aplicar aos cidadãos todas as medidas que ela julga útil a ser tomada por iniciativa dela mesma, para enfrentar circunstâncias e atingir em cada momento os fins que se propõe. O Estado policial se opõe ao Estado de direito” (Contribuição à teoria geral do Estado, Paris, Société du Recueil Sirey, 1920).

Na França de Vichy, o Estado policial atingiu o ápice,  em país que ajudara a cidadania mundial a conquistar não apenas o Estado de direito, mas democrático. Em alguns meses, séculos de políticas livres foram esmagados sob as patas do exército invasor, dos colaboradores, das polícias alemãs e francesas. Em parceria com a gendarmeria que ajudava os alemães, existiram as Seções Especiais de Justiça. Nelas, alguns magistrados sem caráter e sentimento patriótico julgavam os seus concidadãos como inimigos do Estado. Sim, trata-se de tribunais de exceção cujos atos desprezam todas as regras do direito: falta de motivos publicados, ausência de recurso, aplicação retroativa da lei. O leitor entende, agora, a causa do apelo a Raymond Carré de Malberg: sua própria terra seria o lugar infernal do estupro de todo direito, o paraíso do Estado policial de exceção.

 No século XX, em quase todos os Estados a realidade do indivíduo comum, desprovido de poderes contra o Estado, foi similar e magnificamente ilustrada por  Jan Kott: “Quatro horas da madrugada…Instante situado entre noite e aurora, minuto em que, nas instâncias superiores, as decisões foram assumidas e o que deveria ocorrer já aconteceu. Hora em que é possível salvar a própria cabeça e fugir. Hora derradeira da opção livre. Toca o telefone, alguém bate à porta. Quem? Não sabemos. Um amigo ou o enviado pelo Grande Mecanismo?” (Shakespeare, nosso contemporâneo). Pouco importa a cor da farda, se ela é negra, marrom, verde ou cinza. O fato é que ela anuncia o Grande Mecanismo policial, o fim dos direitos, a tirania autorizada por muitas  togas. Eric Voegelin tem páginas candentes sobre a cumplicidade de magistrados com o poder fardado, basta ler, se o estômago é forte, suas linhas intituladas  Hitler e o povo alemão.

Quando se discutiu o Ato Institucional de Número 5, Pedro Aleixo, ao ouvir os bajuladores de sempre afirmarem que o ditador de plantão “jamais abusaria do instrumento legal” replicou (e tal fala lhe custou a presidência): “e o guarda da esquina?”. Nas frases de Jan Kott é clara a decisão tomada em instâncias superiores. Mas as execuções são feitas por subalternos que tocam a campainha das vítimas É-lhes permitido o pior arbítrio. Foi assim que fardas às claras ou dissimuladas estupraram no período a maioria dos campi brasileiros. Naquele instante de terror um sábio dirigente  universitário se insurgiu contra os fuzis: “aqui, esses beleguins de tropa militar não entram, porque entrar na universidade só através de vestibular“, disse o  reitor Pedro Calmon Muniz de Bittencourt, de imortal memória.

Professores foram cassados, aulas dadas sob a escuta de espiões ou delatores que reportavam aos donos do poder o que se fazia no âmbito acadêmico. Além do  vilipêndio dos corpos, os tiranos quiseram destruir mentes e corações. O abuso da força se transformou em ethos policial no Brasil. E para nossa tristeza, muitas togas apoiaram e apoiam tal hábito. Ainda em 2005 escritórios de advocacia foram invadidos por forças policiais, em evidente desrespeito a todas as normas de  direito público, cosmopolitas e brasileiras. Na ocasião, denunciei a anomalia. (Cf. Boletim Advocef, Ano IV, set. 2005, edição 31, p. 10).

Com a Operação Lava Jato retornaram os abusos e arbítrios, sempre no conúbio de setores do Ministério Público, Polícia, Magistratura.  Não bastam os cortes drásticos de recursos praticados por um governo nada comprometido com as ciências e as técnicas. Não basta o êxodo de cérebros (o perverso Brain Drain) que arranca pesquisadores de sua terra e os leva para os países hegemônicos, em detrimento de nossa gente. Não bastam os salários de miséria com o qual aqui sobrevivem cientistas competentes que  testemunham  recursos públicos empregados em auxílios moradia e benesses para  setores governamentais e da Justiça. Agora ressurgem prisões coercitivas ao estilo descrito por Jan Kott, campanhas de propaganda contra universidades públicas e lideranças políticas, entradas nos campi à caça de supostos corruptos cuja culpa está longe de ser definida. Humilhações foram aplicadas em autoridades acadêmicas como sequer nas duas ditaduras do século XX havia ocorrido. Em tal cenário deu-se o assassinato da alma e o suicídio de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Logo após, ocorreu a prisão do reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, com o mesmo festival truculento. A operação “Esperança Equilibrista” (deboche cruel dirigido propositalmente às  vítimas da ditadura instaurada em 1964) anunciou a decadência de nosso fragílimo Estado de direito.

O dr. Áureo Moraes, amigo do reitor de Santa Catarina, está sendo  ameaçado de ser processado por “calúnia”, por instigação das mesmas autoridades que até hoje não responderam pelo dano irreparável cometido contra a integridade física e moral de Cancellier.  É preciso recordar que no Estado de direito a garantia da vida e da pessoa civil dos governados é obrigação intransferível do poder público? Muito pouco surgiu do processo policial contra o reitor. Mas a intimidação se volta contra os que foram e são solidários diante de sua memória e família. É tempo de todas as universidades brasileiras se unirem num só corpo para exigir dos legisladores alguma lei contra o abuso de autoridade. Tal desvio, como disse acima, se transformou em sinistro ethos. Quanto ao Ministério Público, dificilmente ele encontrou uma defesa mais fiel do que em minha pessoa. Face a tamanha  violência, só poderei me colocar em suas fileiras quando a prática atual for encerrada. É tempo de todas as nossas instituições e dos que nela operam, reconhecerem a diferença entre o Estado de direito e o Estado policial. 


Roberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva).

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