Estratégias Coletivas de Liberdade em Goiás do séc. XIX

FONTEPor Igor Fernandes de Alencar, enviado para o Portal Geledés
Arquivo Pessoal

As estratégias de liberdade desempenhadas pelos escravizados tiveram muitas dinâmicas. Em algumas oportunidades, era a carta de alforria o recurso daqueles que buscavam conquistar a saída da escravidão. Por meio desse instrumento jurídico, o escravizado poderia alterar seu status, passando-se a liberto. Vale lembrar que a experiência colonial portuguesa, signatária do Direito Romano, definia o status do filho pelo ventre da mãe, ou seja: filhos de mães cativas eram considerados escravos; ao passo que aqueles gerados por mães livres ou libertas eram considerados livres. 

Como fonte estratégica para recuperar nossas histórias, as cartas de liberdade dispõem de informações sobre as personagens históricas como: procedência, ofício, preço e, também, as formas de concessão. A alforria decorria de um acordo entre senhor e escravizado, sendo essencialmente uma questão privada. Mas estes arranjos também se tornavam possíveis em decorrência de relações coletivas, as verdadeiras redes que permeavam as várias fases das negociações. 

Para a manutenção desse que provavelmente considerava seu direito, João da Costa, um preto forro de nação Cabú, registrou em 29 de abril de 1802, junto a Antonio Joze Vidal de Ataíde, tabelião público do judicial e notas do Cartório do 1° Oficio de Villa Boa (atual Cidade de Goiás), a carta de liberdade de sua filha Joanna, crioula. Ela, dali em diante, poderia gozar da sua liberdade como que se tivesse nascido assim desde o ventre de sua mãe. João da Costa adquiriu a liberdade da menina por título de compra que dela fez ao capitão Joze Ribeiro Costa, repassando a este a quantia de sessenta e quatro oitavas de ouro.

Trecho da Carta de Liberdade de Joanna. Acervo do Museu das Bandeiras (Muban).

As narrativas que acessamos através destes documentos nos chegam intermediadas na fé pública dos tabeliões. Buscamos nelas as vozes dos escravizados, que, como sujeitos ativos da história, se lançaram em meio a negociações e conflitos, procurando concretizar sonhos de liberdade. Entretanto, as informações contidas numa carta de alforria são limitadas, havendo a necessidade de cruzamento com outras fontes para melhor elucidar os caminhos percorridos por aquelas pessoas às quais elas se referem. 

O documento que consta da liberdade de Joanna, por exemplo, não faz menção à sua mãe. Para tanto, presumimos que sua progenitora ainda se encontrasse no cativeiro quando do seu parto, já que só posteriormente a filha é agraciada com a carta de liberdade adquirida por seu pai.

Familiares e amigos dispuseram de recursos fundamentais para a conquista da liberdade dos seus através da alforria. Analisando a naturalidade dos alforriados no período de 1800 a 1824, através dos dados do Cartório de Villa Boa, é possível ilustrar alguns quadros. Os da categoria de Joanna, nascidos na América portuguesa (Brasil) e com antepassados africanos, identificados assim como “crioulos”, compunham o grupo de maior incidência entre os alforriados (71,2%). 

Articulando sexo e naturalidade, identificamos que as mulheres naturais do Brasil atingiram 38,2% do número de alforriados, acompanhadas dos homens nascidos neste mesmo território (33%). Entre os africanos libertos, foram os homens (18,2%) que conquistaram a liberdade através da alforria com maior frequência em comparação com as mulheres africanas (10,4%).

Nas alforrias do início do século XIX em Goiás, identificamos que cerca de 26,5% mencionavam a naturalidade africana dos alforriados. Proporcionalmente, aqueles denominados Angola perfaziam 47%, seguidos por Mina (40%), Cabinda (8,4%), Bengella (4,2%), enquanto Nagô e Congo perfaziam 3,3% cada. Essas denominações eram entendidas como referência ao lugar de procedência de crianças, adultos e idosos escravizados. O único caso identificado como de nação Cabú corresponde ao anteriormente mencionado João da Costa, o preto forro que, mesmo depois de se distanciar do cativeiro, fazendo-se liberto, não deixou a sua filha Joanna à própria sorte. 

As relações familiares se somaram a mais uma estratégia na busca pela liberdade. Compartilhando a desventura do cativeiro e superando possíveis diferenças de seus grupos, Jozefa Angola e Caetano Mina se uniram em matrimônio. Partilhando sonhos de liberdade, o casal fez uso de uma estratégia que poderia beneficiar também os futuros filhos. No ano de 1811, repassando a quantia de quarenta e oito oitavas de ouro ao cirurgião mor Lourenço Antonio da Neiva, Jozefa compra, assim, sua alforria. Mesmo sem a liberdade imediata de Caetano, a partir de então, o casal poderia ampliar a família gerando filhos livres. 

Referências em nossas pesquisas, as contribuições de Isabel Reis e Jonis Freire nos instruíram a pensar a solidariedade entre componentes de uma mesma família de escravizados. Concluímos que os laços familiares compunham um projeto coletivo, não bastando a liberdade individual. Independentemente da condição do sujeito (escravizado, liberto ou livre), esses buscaram persistentemente, e até mesmo por meios ilícitos, livrar não somente a si, mas também os seus familiares do infortúnio do cativeiro.

Africanos e seus descendentes ainda desenvolveram novas configurações de solidariedade e de identidade coletiva. Novos vínculos de parentesco, não necessariamente biológicos, foram também tramados, como os desenvolvidos no seio das irmandades. Os escravizados que compunham essas associações se viam em um lugar onde reorientavam determinadas “solidariedades étnicas”, muitas das quais advindas ainda da experiência no continente africano. 

Além dos esforços dos familiares, e dos irmãos de confraria, o sistema de compadrio também compôs as redes que se estabeleceram na ajuda pela aquisição de alforrias. Em 27 de janeiro de 1801, é registrada no cartório da antiga capital de Goiás, uma carta de liberdade de uma criança identificada como Francisca, criolinha. Na alforria da pequena não havia informações sobre seus pais, constando no registro o empenho do seu padrinho o furriel Pláçido Joze Diaz, que para confirmação da liberdade da afilhada, repassou ao casal Thomas da Silveira Borges e Izabel da França Maçiel a quantia de trinta e duas oitavas de ouro, pagamento em parcelas que à época era chamado de coartação. 

 Para tanto, a coletividade familiar formada dentro das comunidades propiciaram a personalização e socialização de seus componentes, estabelecendo assim importantes redes de solidariedade, constituídas pelo caráter biológico e/ou social. Pais/mães, irmãos/irmãs, esposos/esposas, compadres/comadres desempenharam importantes papéis nos processos de liberdade daqueles que cercavam de cuidados. 

A compressão da realidade histórica resguarda uma complexidade discursiva. As pessoas que fizeram uso das cartas de liberdade permearam uma realidade singularmente adversa. Analisamos esta documentação dentro de um processo negociador e conflitante até a possível efetivação da liberdade. Perceber o deslocamento realizado por estas pessoas que protagonizaram estas histórias de liberdade é de fundamental importância, afinal, a luta não sessava com aquisição da alforria, pois, ao se distanciar do cativeiro, alforriadas e alforriados seguiam suas demandas por uma inserção social mais efetiva.

Assista ao vídeo do historiador Igor Fernandes de Alencar no Acervo Cultne sobre este artigo:

 

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF07HI16 (7º ano: Analisar os mecanismos e as dinâmicas de comércio de escravizados em suas diferentes fases, identificando os agentes responsáveis pelo tráfico e as regiões e zonas africanas de procedência dos escravizados); EF08HI20 (8º ano: Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância das ações afirmativas).

Ensino Médio: (EM13CHS101) Analisar e comparar diferentes fontes e narrativas expressas em diversas linguagens, com vistas à compreensão e à crítica de ideias filosóficas e processos e eventos históricos, geográficos, políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais; (EM13CHS204) Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos populacionais (internos e externos), a diversidade étnico-cultural e as características socioeconômicas, políticas e tecnológicas.

Igor Fernandes de Alencar

Graduado e mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG); integrante do Laboratório de Estudos de Gênero, Étnico-Raciais e Espacialidades (LaGENTE/IESA/UFG) e da Rede de HistoriadorXs NegrXs; cria do Coletivo de Estudantes Negr@s Beatriz Nascimento (Canbenas). E-mail: igor4p@gmail.com

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
-+=
Sair da versão mobile