Estudantes têm tempo. Por que não estudam?

FONTEPor Jocivaldo dos Anjos, enviado para o portal Geledés
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“Estar sendo é uma condição para ser”. Desta forma asseverava o mestre Paulo Freire sobre a necessidade do encontro entre o que se faz o que se diz. As características que devem caracterizar o caracterizado. Ou seja, a busca do óbvio. Assim sendo, para ser estudante precisa-se de estudar. Pode até haver pessoas que estudam e não são estudantes, mas, não cabe no arcabouço qualificador o estudante que não estuda. Este perde por insuficiência comprobatória o status que o nome lhe outorga.

Vindo do latim a palavra estudante significa a pessoa dedicada, zelosa. Que ama o que faz e que aprende ao fazer também. Diferente de aluno, que hoje ambas possuem o mesmo status semântico, e significa ser sem luz, a palavra estudante está na dianteira do uso, inclusive no campo mais progressista de usuários da língua. Mas, não irei discorrer aqui sobre a função de estudante que, remete a todos que estudam. Mas, centrar-me-ei (para usar um pouco de mesóclise em desuso) na questão estudante e tempo. E não tratarei de todos os estudantes. Quero falar aqui sobre os estudantes que são taxados de não estudantes e suas todas derivações. Preguiçoso é a mais usual delas. Mas, tem também outras como desleixado, não esforçado, brincalhão, bagunceiro… até chegar ao desistente ou, melhor informo, o desistido. Aqueles e aquelas que se cansam de tantos títulos e preferem migrar para aprimorar os ouvidos com algum carinho. Logo, evadem-se. Para usar o termo estamentado na gramática brasileira.

Uma das grandes queixas da maioria dos docentes brasileiros é que os estudantes têm tempo de estudar. Se não estudam é porque não querem. Daí, eu quero extrair um outro estreito grupo de estudantes. Da educação básica e em especial do ensino médio de hoje, mas, que também tem os do ensino fundamental. Quero extrair uma parcela de estudantes que não estudam por não ter tempo. E, estes são, em sua maioria, desconhecidos por parte da maioria das escolas.

Respeitarei as críticas dos que me alcunharem de defensor dos estudantes e de zeloso demais. No entanto, peço as provas para o processo educacional sem amor e o seu resultado prático na vida.

Eu sou um estudante que quando da minha educação básica passei dois anos na terceira série. Quando migrei para o antigo ginásio passeia mais três anos na quinta série. Até desistir de estudar. Sim. Eu já fui desistido pela escola e recuperado, que ironia, pelo movimento social. Lógico que com todo o apoio familiar. Então, eu me tornei professor e consigo falar um pouco dos dois lados. Além de professor sou pesquisador e gestor público na área.

É precisa tirar o cascão e mostrar o pus da pereba. Os estudantes que são chamados de desistentes, mas, que cabe melhor nomenclaturá-los de desistidos não tem tempo para estudar em sua maioria. Não possuem tempo real. O do Deus Cronos e outros não possuem o tempo simbólico de contemplação para o aprendizado. Citarei dois casos.

Fui estagiário numa escola da periferia de Feira de Santana, na Bahia. A aula acabava as 11:50h. Eu pegava o ônibus e encontrava pelo caminho alguns dos meus alunos já encima das carroças e quando chegava o ônibus no centro da cidade, cerca de 12:40 já estava alguns dos meus alunos lá na sinaleira. Uma vez um me pediu o dinheiro da passagem de volta para ele é para mãe. Pois só veio para rua com o da vinda. Guardar carro e pedir era uma lógica. E, lógico que eles não haviam almoçado para vir para a rua. Não dava tempo.
Eu sempre saia na hora do recreio para conversar com eles. Eles têm muitas histórias. Tristes e oníricas histórias. Mas, não tinham o tempo. Eles, definitivamente não tinha o tempo que a escola linearizava a vida plural de cada um singularizando em um coletivo inexistente. Muitas daquelas histórias já não existem mais. Porque houve um choque entre o tempo deles como tempo que a vida lhes permitiu.

Mais recente, semana passada, uma estudante poetisa, grande poetisa, me enviou uma mensagem que poderia participar da live que temos com os estudantes no Estado da Bahia. A live ocorre todas as sextas-feiras das 17:00h às 18:00h., mas, ela somente poderia se fosse as 19:00. Indaguei o porquê. Uma pessoa com tamanha qualidade na escrita e na produção do texto poético… Ela me disse: “eu trabalho em “casa de família” e somente saio as 18:00h de lá”. Sim, senhores, estou falando de estudante da rede pública Estadual da educação básica. Daqueles a quem a gente pede tempo, mas, que o tempo que eles têm em primeiro lugar, usam para manter a vida. Para manterem-se de pé. Gente, comer é um ato revolucionário. Ler é consequência de uma barriga cheia. “Favela ainda é senzala, Jão”.

Temos uma gama de estudantes empobrecidos que precisam de serem vistos em seu conjunto interseccional. E, superar a pobreza deve vir junto com a oferta educacional. Não pode ser retórica a afirmativa de que muitos somente comem na escola. E preciso a constituição de possibilidades de eles comerem em casa e poder ter o tempo de ser crianças e adolescentes. Superar e avançar sobre a moratória social juvenil como um modelo de implementação de políticas para a juventude no cone sul é algo urgente e necessário.

Quando a gente fala que estudantes tem tempo estamos falando dos filhos de quem? Estamos dialogando com que setor da sociedade? Eu já dormi tendo aulas à noite, cansado e também muitos alunos meus no noturno já dormiram também em minhas aulas. O que faz o corpo ceder não são as aulas chatas. O corpo de achata porque a vida empurra. Chega um momento em que ele não suporta. Mas, me cabe uma pergunta: – o que será da nossa poetisa? E por que os poetas e poetisas que a gente conhece são brancos e brancas? Sigo um senhor que me orienta que a leitura do mundo precede a leitura das palavras.

Nós, no Brasil, desenvolvemos um método educacional baseado na moratória social da juventude. AquelEs que tiverem uma base conseguem subir os degraus da escada. Os que não tiverem ficam embaixo.

Chamamos eufemisticamente de funil. Os que passam pelo funil vão para as universidades, os que não forem “esforçados” a ponto de saber que a vida é dura e “se encostar” vai para a cadeia. É assim, a gente segue perseguindo o modelo de matar preto pela canetada.

O problema da educação pública brasileira é financiamento também. Mas, para além do financiamento. Muito maior do que ele é o método, o modelo, a concepção, a forma, o formato. Se neste formato aumentar em 10 vezes o financiamento não teremos incluído os que beijam as plantas pelas raízes antes dos 25 anos e os que são encarceradas com os demais corpos pretos. O modelo é o equívoco. Eu não posso ser referência e nenhum dos poucos que chegam. Porque uma sociedade que se preza não deve usar a exceção como referência para colocar debaixo do tapete a regra. Poderia dizer quero venci na educação que temos. De onde eu saí para onde eu estou tem um caminho que só quem é conhece. Mas, o real é o que diz a regra. Nela os meus amigos de idade, cor, local de moradia… não conseguiram. Eu sou um. Eles são tantos. Reconhecer os avanços pessoais é justo e necessário, até para impulsionar, mas, não pode pessoalizar as referências com vergonha e medo de modificar o método que está equivocado.

O financiamento deve ser para os que são obrigados a trabalhar. Isso desde a educação tenra e não para as pesquisas somente como no atual modelo. Quem chega a ser pesquisador precisa sim, de todo apoio, até para o aprimoramento da ciência nacional. Mas, sem alimento para os que não tem na infância e adolescência nem sequer estudante poderá ser. Porque na pobreza estudante é um título. Até a polícia e a mídia respeitam os dotados de fardas escolares. E, muitos meninos e meninas usam como um escudo de proteção.

Todos nós sabemos quem são e onde estão os empobrecidos. Nos cabe coragem de chegarmos até eles e financiar a vida dos esquecidos. Permitir que a poetisa faça live em horário comercial, que o pedinte ocupe o livro. Isso não é bondade. Isso é reconhecer a pluralidade de um país que possui um alarme em encarceramento e letalidade de jovens negros e que esta é uma política sistêmica que abarca as demais áreas. É superar o modelo da moratória por um modelo da tecnologia da raça. Devemos ter coragem em falar da raça enquanto tecnologia educacional. Pois, é precisa estar tendo tempo para poder usar o tempo. Quando o tempo inexiste, cobrar o seu uso é perpetrar a desigualdade e fomentar ódios que se transformam em sangues escorridos no dia a dia. O uso da tecnologia racial como princípio educacional e a superação a da moratória social da juventude é tarefa para hoje. Ordem do dia.

Não nos cabe o medo. Coragem! Sigamos!


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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