Eu e a Outra: experiências de racismo, sexismo e xenofobia

FONTEPor Thaíse Santana, enviado ao Portal Geledés
(Foto: @ Artsy Solomon/ Nappy)

apesar do sol
das palmeiras
do sabiá,
tudo aqui é
um exílio.

(Lubi Prates, 2018)

A publicação deste texto foi motivada a partir da leitura de um outro, da autoria de uma conterrânea, a intelectual baiana Carla Akotirene. Li o texto dela dias atrás, disponível no seu instagram. Ela discutia sobre as “clivagens regionais nas experiências de raça”, a partir da vivência de Juliette Freire, participante branca e nordestina, da Paraíba, no Big Brother Brasil 2021. Carla Akotirene destacava o fato de que “as existências são avenidas identitárias”. Ela explicava que se entre os negros, Juliette Freire goza os privilégios de ser uma branca, entre os brancos, ela é lida como uma nordestina “apenas”.

E eu, mulher, negra, nordestina, vivendo em terras sudestinas? Nas Minas, mais especificamente. Como as “clivagens regionais” atuam nas minhas experiências de ser negra? A fim de responder essas perguntas, resolvi publicizar algumas experiências que venho registrando há algum tempo. Experiências vividas nos últimos quatro anos, desde que me mudei de Itabuna, Bahia, para o sudeste do país. Eu costuro neste texto experiências com reflexões. Desse modo, eu recorro às/aos intelectuais, como Toni Morrison (1998), Maria Aparecida Bento (2002), Frantz Fanon (2008), Grada kilomba (2019), Carla Akotirene (2019; 2021) e Adilson Moreira (2019) para embasar essas reflexões.

Começo esta trama afirmando que aqui no sudeste o imaginário de superioridade em relação ao Nordeste ainda prevalece. É que “o Nordeste informa a prevalência de pessoas negras” (Carla Akotirene, 2021). A crença é de que esse é o lugar da ciência, do desenvolvimento, da educação, da “civilização” e o Nordeste é o contrário de tudo isso, mas que ostenta belezas naturais. Então, é o lugar da pura diversão. Já vi exaltação das nossas praias na mesma medida em que ignoravam e/ou rejeitavam a nossa potência econômica, intelectual, cultural etc.

Quanto a mim, quando me veem, veem uma negra. O meu corpo é racializado. É analisado milimetricamente. É invadido. E quando eu falo? O meu linguajar sul baiano é ouvido algumas vezes com espanto, outras, com desconfiança, porque a minha fala aponta o meu lugar de pertencimento, que não é este estado e região. De acordo com Frantz Fanon (2008, p.33), “falar é existir absolutamente para o outro” e quando eu falo, eu assumo para o outro a minha cultura baiana, nordestina, negra, que na ótica preconceituosa é vista como selvagem e portanto, perigosa.

Minha fala, afirmo orgulhosamente, é do Nordeste, oxente. Da Bahia, viu?! De Itabuna. Do São Pedro. Lá da Rua Santos Dumont. É Nóis! Contudo, o meu lugar de pertencimento não goza do prestígio sudestino (com exceção das praias). Então, meu corpo e fala compõem uma sujeita que é vista como “Outra” e, portanto, torna-se “a diferente”. Torna-se “a nordestina”, ”a baiana” ou “a baianinha”, gesto “carinhoso”, diriam. Ozadia que até já tentaram, mas que foi cortada na cepa. De acordo com Grada Kilomba (2019), “a branquitude é construída como ponto de referência a partir do qual todas/os as/os ‘Outras/os’ raciais ‘diferem’. Nesse sentido, não se é ‘diferente’, torna-se ‘diferente’ por meio da discriminação”. Nessa lógica racista, eu sou a “diferente” por pertencer à outra raça e acrescento que sou a “super diferente” por ter outra filiação regional. Desse modo, deixo de ser “Eu” e passo a existir para o outro como objeto, como “Outra”.

E não para por aí. Quem por aqui nunca ouviu a expressão “Fulano fez uma baianada”? Nesse caso, um erro cometido por uma pessoa mineira é deslocado geograficamente, tornando o ato de errar uma característica nossa, dos baianos e das baianas. Essa “expressão popular” é muito comum por aqui. A primeira vez que ouvi, saiu da boca de um universitário branco. Falando em universitário, vou narrar algumas experiências vividas na universidade.

Grada Kilomba fala “quão difícil é para nossos corpos escaparem às construções racistas sobre eles dentro da academia” (p. 65). O meu cabelo já foi alvo de um episódio racista (e isso não é nenhuma novidade para as pessoas negras, infelizmente). Fui vítima de racismo dentro de uma instituição universitária. Sofri racismo dentro de uma sala de aula. O racismo que sofri foi praticado por um professor branco (muito orgulhoso de sua branquitude racista). Durante uma aula, do nada, o referido professor quis nos “ensinar” sobre ironia. Ele usou o meu cabelo como exemplo. “Ironicamente”, ele disse: “É ironia é se eu disser que o coque da Thaíse é bonito”.

Ele não comentou sobre o penteado de outra pessoa, tampouco se referiu ao meu penteado simplesmente. Ele fez chacota do meu cabelo cacheado, num contexto onde só existia cabelo liso. Ele foi racista, descaradamente. Racista e machista porque em muitas situações “raça” e “gênero” operam simultaneamente. De acordo com Grada kilomba (2019, p. 94), numa sociedade racista patriarcal, “raça e gênero são inseparáveis […] construções racistas baseiam-se em papéis de gênero e vice-versa, e o gênero tem um impacto na construção de ‘raça’ e na experiência do racismo”. E, neste caso, eu acrescento as “clivagens regionais” e a minha condição de estudante.

É óbvio que a posição de homem branco sudestino e professor universitário deu ao meu agressor toda a confiança para praticar seu ato violento. Naquela hora, eu não tive a reação que queria. Não tive. Não porque eu não soubesse o que era ironia (acredito que eu e aquela turma aprendemos isso no ensino médio), mas porque a minha humanidade foi retirada. Eu fui humilhada em público e isso me paralisou. Não tive forças. Só quem sente essa dor na pele consegue entender como, muitas vezes, nós paralisamos diante de algumas práticas racistas.

A plateia que assistiu a esse espetáculo era composta por colegas, majoritariamente brancos, e por uma professora igualmente branca. Nenhuma pessoa interviu, nenhuma disse nada. Naquela ocasião, todos ali simpatizavam comigo e todos se calaram. Eles ilustraram como “o pacto narcísico da branquitude” (BENTO, 2002) pode ser mais forte do que qualquer sentimento que as pessoas brancas tenham pelas negras. E aí eu retomo o triste fato mais atual do BBB21, no qual João Pedrosa foi vítima do sutil, mas não menos perigoso, racismo recreativo, citando Adilson José Moreira (2019). O racismo foi televisionado. Muitas pessoas assistiram em rede nacional o que acontece a toda hora e todos os dias nos diferentes cantos deste país.

Naquela ocasião eu li muitos comentários na internet, dizendo assim “mas se nem o João conseguiu reagir, assimilar, imagina a Juliette”. A questão é que João sentiu na pele, talvez também não teve força, na hora, para reagir como gostaria. Agora, a não reação de Juliette naquele momento, a sua omissão representou aquela plateia que assistiu calada eu ser violentada dentro de uma sala de aula. Representou várias plateias por esse Brasil afora. Ressalto que quando uma pessoa negra assiste, e naquele caso, em rede nacional, um ato de violência racista, ela revive traumas, porque o racismo é “uma realidade traumática, que tem sido negligenciada” (Grada Kilomba, 2019, 29).

O último episódio (de muitos que tenho registrados) que eu vou narrar a seguir tem a ver com a minha formação e o meu lugar de origem. Eu sou professora da rede estadual de Minas Gerais, professora efetiva, mediante concurso público. Tenho mestrado e estou cursando o Doutorado. Minha formação acadêmica foi/é toda realizada em universidades públicas, sendo duas federais. Algumas pessoas quando ficam sabendo dessa minha formação, se espantam. Outras me dizem, mais ou menos assim: “nossa, difícil TER que sair da sua terra para continuar os estudos”. Só que eu não tive que sair, respondo. Eu saí por vontade. Acrescento que a minha universidade primeira, a Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), tem Mestrado e Doutorado na minha área. No imaginário sudestino povoam ainda aquelas imagens antigas de retirantes nordestinos (os quais construíram esta região e este país), mas que saíram do Nordeste para o Sudeste, especialmente para São Paulo, para não morrerem de fome.

Aí você que me lê poderia perguntar: “mas você se envergonharia se isso fosse verdade?” Claro que não. Só não é o meu caso. A questão é que querem nos prender eternamente nessa imagem sofredora, de quem está buscando a salvação nestas terras evoluídas e sagradas. Essas atitudes demonstram que essas pessoas não querem reconhecer nossas experiências diversas e nossas potências.

Eu sou vista, pela ótica racista de algumas pessoas aqui do sudeste, como uma usurpadora, como alguém que não deveria ocupar os lugares que ocupo, lugares que não foram pensados, nem reservados para mim. Essas pessoas me olham e me devoram quando eu ocupo espaços de prestígio, mas não se incomodam com as pessoas negras que exercem profissões precarizadas. De acordo com Maria Aparecida Bento (2002, p. 57), a ascensão negra produz um medo branco.

Escrevendo sobre esses episódios de racismo cotidiano, lembrei-me de uma célebre entrevista que Toni Morrison concedeu ao jornalista branco Charlie Rose, em 1998. Em uma de suas respostas, ela fala que os racistas são inferiores moralmente. Em seguida, ela dispara: o que sobraria das pessoas brancas se não fosse o racismo? Será que continuariam sendo boas, continuariam sendo fortes e inteligentes? Será que elas agradariam a si mesmas?

De maneira alguma pretendo induzir ao pensamento de que no meu estado e região de nascimento estou salva do racismo e de outros preconceitos (quem dera), esse só não é o foco do meu texto. Priorizei aqui experiências, nas quais eu pudesse mostrar o racismo, o sexismo e a xenofobia operando simultaneamente. E nesse caldeirão opressor, eu não sei dizer onde um começa e o outro termina. Por fim, desabafo que me sinto vivendo o “exílio”, citado na epígrafe deste texto.

Thaíse Santana
Professora. Pesquisadora. Escritora.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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