Eu era menino quando os da caserna confundiram-me com um comunista

Golpe militar, aos 60 anos, não pode ser subestimado na história do Brasil

FONTEFolha de São Paulo, por Tom Farias
O Jornalista e escritor Tom Farias - Foto de Marta Azevedo

Eu tinha pouco mais de dois anos quando raiou a ditadura militar no Brasil. Criança, preso à barra da saia da minha mãe, Flora, e morador de subúrbio carioca, não tinha a menor ideia dos trágicos acontecimentos que estariam por vir pelos 21 anos seguintes.

Após 60 anos, a ditadura já foi tarde, ou seja, em 1985, mas, ainda hoje, seus tentáculos não foram totalmente extirpados da sociedade brasileira. Paira no ar uma dor indescritível, uma sensação mórbida de que, por dentro dos quartéis, alguém nos espreita pronto para dar novo bote –como quase aconteceu no 8 de janeiro, resquício do final do governo Bolsonaro.

Já adolescente, morador de Realengo, área militar até hoje, percebi, efetivamente, que a ditadura não daria conta nem do “milagre econômico”, sob o viés social, nem do bem-estar do povo brasileiro.

Estudante de escola técnica, no bairro de Bangu, em meados de 1976, vivia clima da repressão política, que sufocava os movimentos sindicais, estudantis e os partidos de esquerda (tanto socialistas, quanto comunistas), todos na clandestinidade.

As resistências ao golpe, no entanto, desde 31 de março de 1964, continuaram até o fim do famigerado regime. Eu pertencia a um grupo de jovens idealistas e queríamos mudar o mundo apenas por nossas próprias convicções –esse entendimento sonhador se mantém até os dias de hoje em mim. Fundamos o Centro de Cultura Popular (CCP), inspirado dialeticamente no CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Criamos um jornal estudantil –o “Boca Livre”, do qual fui escolhido seu editor.

É nessa ação e nesse clima que fazíamos política. Por uma solidariedade ao movimento social, nosso grupo foi chamado para apoiar uma greve geral que partidos e trabalhadores iriam empreender numa noite qualquer daquela década de 1970. Eu tinha 15 anos. O grupo a que eu pertencia foi destacado para fazer piquetes na porta da Fábrica Bangu –na ocasião, o propósito era não deixar a fábrica operar em um segundo turno, que se iniciava às 22 horas.

Gritando palavras de ordem da Internacional Socialista, como era a praxe, fomos surpreendidos pelos gorilas da repressão, que nos cercaram, na base de cassetetes, metralhadoras e baionetas, nos encurralando entre as estreitas ruas banguenses e o muro de tijolinhos da fábrica. Não tivemos alternativa. Aos pontapés, fui metido algemado numa viatura do Exército, juntamente com outros companheiros da “jornada comunista”, sem saber para onde estava sendo levado –e se sobreviveria. Três dias depois –após quatro interrogatórios, todos durante a madrugada–, fui libertado, na divisa dos bairros de Magalhães Bastos e Deodoro, quando descobri que estive preso e confinado o tempo todo na Vila Militar. O dia clareava, era por volta de quatro ou cinco horas da manhã. Fui caminhando para casa, a dez quilômetros de distância, ainda vestido com o uniforme da escola, enxovalhado pelo cheiro de suor, mijo e lágrimas e sentindo os ouvidos zunirem das pancadas, por tantas perguntas não respondidas.

Golpes ditatoriais ainda assombram o país, desde 1889, quando os militares derrubaram o Império, mas sem conflitos e tiros. Ficou o gostinho. Sessenta anos depois do golpe da minha infância, os militares parecem não ter perdido a sede pelo poder: estão sempre à espreita para “servir a nação”, mesmo que por linhas tortas ou enviesadas.

Jamais esqueci o dia em que o golpe me pegou. Eu não era comunista –talvez não tivesse a noção exata do que era ser um socialista. Líamos livros como “A Ilha”, de Fernando Morais, sobre a Revolução Cubana.

A minha prisão foi relaxada por uma casualidade. No terceiro dia de prisão e interrogatório, os milicos descobriram na minha mochila da escola um exemplar de “A Mãe”, de Máximo Gorki. O romance conta a saga de uma mãe envolvida na organização do movimento operário russo.

Remexeram em meus pertences e folhearam os livros didáticos que eu carregava. Quando viram “A Mãe”, estacaram. O exemplar, uma brochura, que guardo como relíquia até hoje e que integrava parte da nossa nascente formação intelectual, não trazia maiores informações sobre o grande autor russo e a obra.

Olhares zombeteiros no ambiente denunciaram o estado de coisas: o moleque magrelo e comprido que lia livro com o nome sugestivo de “a mãe”, não devia saber de muita coisa mesmo. E, por essa razão, não outra, fui posto em liberdade.

Liberdade, sempre! Ditadura, jamais!

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