“Fui empregada doméstica, enfrentei o racismo e hoje sou modelo”

Maria Oliveira, 20, acreditava que seu destino era viver de faxina, como a mãe e a avó, no interior de Minas Gerais. Depois de passar a infância e a adolescência sendo vítima de preconceito por ser negra, se sentia feia e incapaz de conseguir um emprego melhor. Mas, ao agarrar uma oportunidade no mundo da moda, ela conquistou autoestima e agora planeja estudar medicina

Por  DOLORES OROSCO, da Revista Marie Claire Brasil

A modelo Maria Oliveira (Foto: Divulgação/Way Model)

“Nasci em Santana da Vargem, cidadezinha com pouco mais de 7 mil moradores, ao sul de Minas Gerais. Meu pai, João, 47, era lavrador em plantações de café e minha mãe, Arlinda, 39, faxineira.

Diariamente, saíam às 5 horas da nossa casinha na Cohab [Companhia de Habitação, empresa estatal responsável por políticas de moradia popular] e voltavam às sete da noite. Sustentavam os seis filhos com dois salários mínimos mensais. Jamais deixaram faltar o arroz com feijão, mas chocolate ou sorvete só comíamos em dias especiais. Como sou a mais velha da filharada, era eu quem cuidava dos menores.

Acordava às 6 da manhã, preparava o café com leite da turma, vestia cada um no uniforme e íamos para a escola. Eu era como a segunda mãe do Anderson, que hoje tem 16 anos, do Marcelo, 12, da Giovana, 10, e dos gêmeos Tiago e Naiara, 7. O período mais difícil da minha vida foi o nascimento dos caçulas. Imagina como é ser uma garota de 13 anos cuidando de dois bebezinhos? Até hoje não sei como eles estão aí, inteiros e saudáveis…

Nessa mesma época, meus problemas de auto imagem se intensificaram. Os garotos não se interessavam por mim e poucas meninas queriam ser minhas amigas. Me chamavam de ‘negrinha varapau’.

A maioria dos colegas da escola era branca e eu costumava lanchar sozinha na hora do recreio. Isso foi fazendo com que me acostumasse com a exclusão. Mesmo assim, doía
Maria Oliveira

Meu sonho era ser bonita como a Taís Araújo, em quem tentava me inspirar. Digo ‘tentava’ porque a atriz tem a pele bem mais clara que a minha. Sou negra retinta e, ainda hoje, quase não há pessoas da minha cor nas novelas.

E eu ainda era magricela, alta demais e com o cabelo tão duro, a ponto de achar que a única solução era alisar. Desde os 13 anos, passava três ou quatro horas com formol ardendo na cuca. Depois de cinco anos suportando essa química, meus fios enfraqueceram e começaram a cair. Nunca vou esquecer do dia em que fui à cabelereira em busca de uma solução e ela me disse: ‘Vai ter que raspar’. Não consigo pensar em notícia pior para se dar a uma garota de 17 anos que já se acha feia. Não sei como não desabei ali mesmo, na frente dela, e tanto desgosto.

Nunca dividi essa angústia com ninguém da minha família e, quando chorava, mesmo em casa, era escondido. Preconceito não era assunto sobre o qual conversávamos em família. Não por ser um tabu, mas porque meus pais são pessoas bem humildes e tinham problemas maiores. Precisavam botar comida na mesa, não havia tempo para outras questões.

A responsabilidade me fez amadurecer cedo. Nunca fui de festa, namoradinho ou galera. Aliás, também tive poucos amigos por ser acanhada e caladona. Não conseguia bater um papo à vontade, nem olhar nos olhos das pessoas enquanto falava. Era um bicho do mato mesmo! Conversava de cabeça baixa, mirando o chão.

A modelo Maria Oliveira (Foto: Divulgação/Way Model)

No entanto, aos 16, em 2014, percebi que estava na hora de enfrentar minha timidez e ir à luta. Meus pais já não conseguiam pagar as dívidas. Por mais que eu ajudasse na criação dos meus irmãos, tinha que botar dinheiro em casa também. Essa urgência aumentou no dia em que a luz e a água lá em casa ficaram a ponto de serem cortadas. Meus pais nunca ficaram tão desesperados…

Até então, eu tinha um sonho: estudar medicina. Mas aquela dificuldade financeira pesada me fez aceitar de vez que meu destino estava traçado: como minha mãe e minha avó, meu futuro era ser empregada doméstica em Santana da Vargem. Por um tempo ainda tentei trabalhar na área médica, fazendo um cursinho profissionalizante para atendente de farmácia. Mas desconfiava que, por ser negra e pelo desconforto que geraria entre clientes racistas, dificilmente alguém me contrataria. Tive certeza disso quando um rapaz lá do bairro que não tinha se preparado foi escolhido para a vaga que eu era concorrente. O cara era branco, óbvio.

Para ser faxineira, no entanto, surgiu oportunidade rapidinho. Minha mãe conhecia várias famílias na cidade e, como sempre foi ótima profissional, sua indicação abriu portas. Meu irmão, Anderson, que estava com 12, assumiu o meu posto nos cuidados com os menores para que eu pudesse trabalhar. Assim, comecei a fazer a limpeza duas vezes por semana e recebia R$ 80 por dia. O lugar era enorme: oito cômodos, a casa mais rica em que eu havia entrado! Meus patrões eram um casal com duas crianças. O início foi difícil, porque eu morria de medo de quebrar alguma coisa e tinha vergonha de tudo, até de perguntar como deveria fazer meu serviço. Por causa disso, levava broncas por bobagens como não dobrar as roupas do jeito certo ou por esquecer de lustrar um móvel. Minha patroa não chegava a ser grosseira, mas, mesmo assim, eu ficava mal. Se pudesse cavava um buraco no chão e me escondia!

Quase um ano se passou quando o inusitado me aconteceu. Uma mulher bonita e bem vestida, dona de uma loja de roupas no centro da cidade, me parou na rua e perguntou se eu gostaria de participar de um concurso de beleza. Achei que ela estava tirando um sarro da minha cara! Eu tinha acabado de raspar o cabelo, vivia com lenços amarrados na cabeça para disfarçar a quase careca…

Mesmo com toda minha desconfiança, essa lojista, a Gabriela Spineli, me convidou para participar do concurso de Rainha da Festa do Peão da minha cidade. Não tinha cachê, mas o prêmio eram roupas de sua loja. Foi aí que meus olhos brilharam! Eu nunca havia usado uma peça nova na vida. Lá em casa sempre nos vestimos com roupas doadas pelos patrões dos nossos pais. Topei.

Maria Oliveira (Foto: Divulgação/Way Model)

O concurso aconteceu em um ginásio de uma escola grande lá em Santana da Vargem. Usei um short jeans, uma camisa quadriculada, além de botas e chapéu de peão de boiadeiro. Nunca havia me sentido tão bonita e arrumada com aquelas roupas e a maquiagem! No entanto, mesmo com essa autoconfiança, morri de vergonha e quase empaquei na hora de entrar na passarela. Os organizadores do concurso praticamente me empurraram para o público.

Na plateia, estavam mais de 300 pessoas. Todo mundo me aplaudia, alguns até de pé. Vi minha família ali, toda orgulhosa e me dando a maior força, foi incrível. Não fiquei entre as finalistas, mas nunca me senti tão feliz e orgulhosa de mim mesma.

A Gabriela continuou a me chamar para outros concursos e a me incentivar a ser modelo. Sempre que ficava sabendo de uma apresentação de beleza regional, me avisava. Não dei bola na maioria das vezes – estava cansada demais para conciliar a rotina de empregada doméstica com as provas da escola. Além disso, os desfiles raramente ofereciam cachê. Também havia outro motivo pelo qual não me animava. Estava arrasada com os rumos que minha vida tomava. Medicina era um projeto que parecia cada vez mais distante à medida que as datas dos vestibulares se aproximavam. Sem cursinho e dinheiro para inscrição, como poderia continuar sonhando?

Em busca de um milagre, decidi ir a uma procissão que acontece todo mês de setembro em minha cidade. Devotos de Padre Victor [(1827-1905), primeiro ex-escravo a se tornar padre no Brasil, beatificado pela Igreja Católica em 2015] caminham 26 quilômetros de Santana da Vargem até a igreja do padroeiro, em Três Pontas. Passei a andança inteira rezando, implorando ao Padre Victor que me desse uma luz. Um mês depois, vi no Facebook o anúncio de um evento que selecionaria candidatas à modelo, em Três Pontas. Mostrei para a Gabriela, que me incentivou a ir atrás. Cerca de 50 meninas foram à seletiva. Eram de vários tipos: altas, baixas, magras, gordinhas, brancas, negras – uma minoria, para variar.

Quando chegou a minha vez de me apresentar aos olheiros, fiquei acanhada como nunca, as palavras mal saíam da minha boca. Perguntaram meu nome, minhas medidas, se já havia tido alguma experiência com moda. E eu engasgava a cada resposta. Saí de lá bem desanimada. Jamais conseguiria me tornar médica e também não servia para ser modelo. O jeito era me conformar com a vida de empregada doméstica.

Maria Oliveira (Foto: Divulgação/Way Model)

Só que uns dois meses depois, quando meu celular acusou um número desconhecido em uma ligação, nem imaginei que poderia ser das olheiras, mas era Lorena Bueri, pedindo que em dois dias eu estivesse em São Paulo. Ela me levaria para uma bateria de entrevistas em várias agências de modelos. Desliguei o telefone sem saber direito o que pensar e saí correndo contar para a Gabriela, minha maior incentivadora. Ela ficou empolgada e me ofereceu ajuda com a passagem e o que eu mais precisasse. Se não fosse ela me emprestar R$ 300, eu teria perdido a oportunidade, pois não tinha grana para bancar a viagem.

Nunca havia ido a um lugar tão distante e meus pais me levaram à rodoviária com o coração na mão. No ano anterior, a novela Verdades Secretas contou a história de modelos que faziam ‘book rosa’ e caíam na prostituição. E eles tinham pânico de que acontecesse comigo. A ordem deles era que eu ligasse de hora em hora para contar cada um dos meus passos com a Lorena, que me hospedaria em sua casa nos dois dias que passaria em São Paulo.

Claro que não deu para cumprir a promessa, pois foi uma correria só! Em cada agência visitada, eu tinha que colocar o biquíni (eu nunca tinha vestido um), posar para algumas fotos de celular e contar um pouco da minha história. Dessa vez estava mais preparada: a Lorena fez um ‘ensaio’ comigo, me ajudando com respostas simples e certeiras.

Uma das coisas mais legais que aconteceu nessas agências foi a forma com que eu era recebida. Senti que as pessoas me olhavam com admiração quando eu entrava na sala dos castings, como se tivessem encontrado o que procuravam. Eram olhares e sorrisos me deram um pouco mais de autoconfiança: ‘Olha aí, eu posso ser uma modelo!’, pensei. Voltei para Santana da Vargem na expectativa do que viria. Era uma sexta-feira de dezembro de 2016. Na segunda, a ligação da Lorena: ‘Arrume sua mala, a agência Way quer trabalhar com você’.

Fiquei eufórica e desconfiada ao mesmo tempo. Aquilo era sério mesmo? Estavam me querendo em São Paulo para ser modelo? Corri para contar aos meus pais, que compartilharam aquele sentimento comigo: uma mistura de esperança de uma vida melhor e medo de que desse tudo errado.

Mais uma vez, com a ajuda financeira da Gabriela e também da Lorena, eu estava morando em São Paulo, em uma casa da Way com outras 12 new faces. Comecei a fazer academia, a ter aulas de inglês, de pose para as fotos e de como desfilar na passarela.

Andar de salto nas primeiras vezes foi um martírio, nunca pensei que pudesse ser tão complicado! E também havia os testes para os trabalhos. No susto, tive que me virar para usar o metrô e a me deslocar na cidade. Perdi as contas das vezes em que me perdi, o que teve seu lado bom. Na marra, venci meu acanhamento para pedir informações aos desconhecidos na rua.

Em dois meses, pintou a primeira oportunidade: um editorial de joias para uma revista de moda. Na semana seguinte, veio novo convite, dessa vez para a seção de beleza da Marie Claire. Esse último foi bem importante, pois me abriu portas para minha primeira campanha publicitária: um catálogo de maquiagem que me rendeu um cachê expressivo, R$ 10 mil. Comprei um celular bacana, algumas roupas e mandei quantia boa para os meus pais.

De um ano para cá posso dizer que não parei de trabalhar. Posei para as publicações mais bacanas, para campanhas de grandes marcas como Riachuelo e Levi’s, desfilei para mais de 10 grifes em duas temporadas da São Paulo Fashion Week. Também me orgulho de ter conseguido melhorar a vida da minha família: minha mãe parou de trabalhar e eles deixaram nossa casa mais bonita com o dinheiro que tenho mandado.

Agora estou ansiosa para que surja uma oportunidade de trabalhar em Paris ou Nova York. Ano passado fui novamente à procissão do Padre Victor fazer esse pedido. Mas meu sonho, de verdade, continua o mesmo: estudar medicina. No momento em que for possível conciliar, quero me matricular no cursinho pré-vestibular.

Não vou dizer que hoje, por ser modelo, me acho linda. Longe disso! Mas minha autoestima está mais positiva. Só consegui posar bem para as fotos quando aprendi a reconhecer quais são os pontos fortes da minha aparência. Agora me olho no espelho e gosto da cor da minha pele, do meu sorriso, da minha postura e de como meu cabelo raspadinho me deixa estilosa.

Continuo achando a Taís Araújo, minha primeira ‘negra-referência’, incrível. Mas vocês já viram como é diva a Alek Wek [top model sudanesa, que tem o mesmo tom de pele de Maria]?”

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