Experiência com epidemias vem ajudando a conter disseminação do coronavírus na África

Crianças usam álcool em gel em uma igreja evangélica em Ouagadougou, Burkina Faso Foto: FINBARR O'REILLY / Finbarr O'Reilly/The New York Times

Medidas restritivas foram tomadas de maneira preventiva; analistas, no entanto, temem que propagação possa ser rápida em países mais pobres

Por Marina Gonçalves, do O Globo

Crianças usam álcool em gel em uma igreja evangélica em Ouagadougou, Burkina Faso Foto: FINBARR O’REILLY / Finbarr O’Reilly/The New York Times

Quando países europeus, como a Itália ou a Espanha, ainda tomavam medidas leves em relação aos primeiros casos de coronavírus na China, as nações africanas entraram em alerta. As cicatrizes da proliferação do ebola no continente, que entre os anos 2014 e 2016 deixou mais de 11 mil mortos e cerca de 28 mil infectados, ainda estavam abertas. Mas é justamente a experiência em assistência básica que diversos países adquiriram no combate à epidemia uma das explicações para a até agora lenta propagação do coronavírus na região, somada à expectativa de vida mais baixa em média no continente — apenas 5% dos mais de 1,3 bilhão de africanos têm mais de 65 anos —, e a possível subnotificação em alguns casos.

Ainda assim, especialistas ouvidos pelo GLOBO alertam que a doença está em estágio inicial na região e persiste o temor de que a progressão do vírus possa ser muito rápida quando atingir países com bolsões de pobreza ou afetados por conflitos internos. Na África Subsaariana, 63% da população — cerca de 700 milhões de pessoas — não têm sequer acesso a sabão e água limpa para lavar as mãos. Na última sexta-feira, a diretora-regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a África alertou para uma “evolução gravíssima” da epidemia no continente.

— Há um mês, havia somente um país na região com casos registrados. Duas semanas depois, havia cinco países com 50 casos. Há dois ou três dias, já havia 39 países, com cerca de 300 novos casos por dia — disse Matshidiso Rebecca Moeti. — A evolução é muito preocupante.

Agora, do total de 54 países africanos, 44 já registram casos confirmados: são mais de 4.700 infectados até agora e 152 mortes, segundo um levantamento da Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos. Para efeito de comparação, apenas na Itália, um dos países mais atingidos, foram quase 100 mil contaminados e 10 mil mortes. Os Estados Unidos lideram o número de infectados no mundo, com mais de 125 mil casos. Na África, o país com mais contagiados é a África do Sul, com 1.280 casos e 2 mortos, bem atrás do Brasil, por exemplo, que tem mais de 4.500 casos e 159 vítimas fatais. O Egito, com 609 casos, lidera em número de mortos no continente, com 40 falecidos.

Países mais afetados pelo coronavírus Foto: Arte O Globo

Augusto Paulo Silva, nascido em Guiné-Bissau e coordenador para a África do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris) da Fiocruz, explica que o Centro para a Prevenção e Controle de Doenças (CDC), órgão vinculado à União Africana e criado durante a epidemia do ebola, além de outros mecanismos regionais, vêm sendo essenciais para detectar e impedir a propagação do coronavírus no continente.

— A experiência com pandemias, como a Aids; com epidemias, como o ebola; e com endemias constantes como a malária e a tuberculose, vêm ajudando diversos países a se prepararem para dar respostas rápidas ao coronavírus. Uma das atividades mais importantes do CDC é a preparação para emergências em saúde pública. Além disso, organizações regionais de saúde, na África Ocidental, Central e Austral, implementaram políticas públicas e funcionam em rede. A própria Fiocruz apoia desde 2016 institutos nacionais, e ajudou a diagnosticar os primeiros casos em Moçambique.

Alexandre dos Santos, professor de História da África no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, destaca ainda as medidas rápidas tomadas para conter a disseminação da doença. Nações com laços mais estreitos com a China, como Quênia, Tanzânia, Etiópia, e com a Europa, como Argélia e Marrocos, fizeram uma triagem inicial dos turistas.

— No continente, mesmo em países mais pobres, a população e os governos sabem como agir em casos de epidemia. Por isso, grande parte das nações africanas tomou medidas antes de países como Itália, Estados Unidos ou o Brasil — explica Santos, destacando, no entanto, que os testes começaram a ser distribuídos mais tardiamente, o que indica que pode haver mortes não notificadas nas últimas três semanas. — Mesmo assim, não se pode dizer de maneira contundente que há subnotificação.

Mais de 20 países fecharam de forma total as fronteiras e pelo menos 13 decretaram quarentena obrigatória. Além disso, quase todas as nações fecharam escolas, igrejas, mesquitas e bares.

O governo da África do Sul, marcado pela negligência para combater a disseminação do HIV na década de 1990, vem sendo um dos mais elogiados por liderar as medidas restritivas do continente, incluindo um bloqueio de 21 dias que começou na sexta-feira a partir da meia-noite. O presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa — que testou negativo para coronavírus depois de fazer o exame como medida de precaução — justificou a medida para “evitar uma catástrofe humana de proporções enormes”. Ele também enviou o Exército às ruas para apoiar a polícia.

Na semana passada, John Nkengasong, chefe do CDC da União Africana, anunciou que países com bases industriais avançadas, como África do Sul, Egito e Marrocos, serão usados para produzir equipamentos como respiradores e ventiladores, caso as taxas de infectados aumentem. O espírito de cooperação regional vem sendo fundamental, mas pode não ser o suficiente. Na última quinta-feira, Ramaphosa pediu aos países mais ricos que apoiem o continente.

— Nós, como África, apelamos aos países do G-20, particularmente às economias mais desenvolvidas, para apoiar pacotes de estímulo ao continente — disse, acrescentando que também pediram o alívio da dívida ao FMI e ao Banco Mundial.

Por isso, apesar de todos os esforços, analistas ainda temem que, caso o surto se dissemine com mais velocidade, os sistemas públicos de saúde nas regiões mais pobres, já pouco estruturados, possam implodir. Há também grande receio com Estados pobres e incapazes de oferecer serviços básicos para a maioria de suas populações, com economias frágeis ou governos que passam por conflitos internos. O etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, presidente da Organização Mundial da Saúde, não tem trazido, na prática, o debate para o continente, avaliam alguns especialistas.

Segundo Silva, apenas em duas semanas será possível avaliar se as medidas de prevenção tiveram o impacto de conter a propagação no continente.

— Os países em situações de conflito, como a República Democrática do Congo ou o Sudão do Sul, são os que correm mais risco de uma tragédia humanitária. Uma vez que o coronavírus chegue a esses países, poderá se alastrar rapidamente.

Matshidiso Rebecca Moeti, responsável regional da OMS, disse que é preciso “trabalhar com quem facilita o acesso à água” no continente.

— É certo que em muitos lares africanos vivemos em famílias numerosas. Às vezes, é muito difícil para todos terem seu próprio quarto. Há uma vida comunitária muito forte. Devemos encontrar outros meios de higiene para minimizar a propagação do vírus — alertou.

No Egito, famílias de prisioneiros de consciência alertaram para o possível surto do vírus nas prisões superlotadas e pouco higiênicas do país. Segundo ONGs, o país tem cerca de 60 mil presos políticos. A Anistia Internacional pediu a libertação “imediata e incondicional” de detidos, mas apenas 15 dissidentes foram soltos até agora.

 

 

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