Experiências da negritude na fotografia baiana do final do século XX

FONTEPor Elson de Assis Rabelo, enviado para o Portal Geledés

Os negros sob o olhar da câmera

Lucídio Lopes. Fotografia de Isabel Gouvea. Fonte: Catálogo Fotobahia, Salvador, 1984.

Nesta primeira imagem, vemos Licídio Lopes, pescador, nascido em 1899, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. A fotografia foi feita em 1984 por Isabel Gouvea, fotógrafa paulistana, integrante do Grupo de Fotógrafos da Bahia, à época. O homem octogenário, em traje elegante, encara a câmera exibindo duas telas por ele pintadas, nas quais se veem a Igreja de Santa Ana do Rio Vermelho. O fotografado foi enquadrado numa posição que permite observar os objetos representados nas pinturas: a igreja, num plano mais atrás, convivendo no espaço tradicional do festivo bairro costeiro com as linhas arquitetônicas de um prédio recentemente erigido. No mesmo ano da captura fotográfica, o livro O Rio Vermelho e Suas Tradições, com crônicas escritas por Seu Licídio, foi publicado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia e prefaciado por Jorge Amado.

Licídio Lopes era uma das dezenas de pessoas negras fotografadas pelas lentes de Isabel Gouvea e pelos demais integrantes do Grupo de Fotógrafos da Bahia. Este havia surgido em 1978, com a proposta de congregar a produção fotográfica baiana, lutar pelo crédito autoral, pela regulamentação profissional e dar visibilidade às imagens produzidas através das exposições chamadas de Fotobahia, nome que acabou identificando também o coletivo de fotógrafos. Nas imagens que aparecem nos catálogos das exposições, publicados até 1984, pelo menos um terço dos fotografados são pessoas negras, nas mais diversas atividades e situações sociais: crianças brincando, em situação de rua ou em ambiente doméstico, baianas de acarajé, feirantes, pescadores, praticantes do Candomblé, músicos, capoeiristas etc. 

O olhar sobre os negros é um traço relevante da inclinação à denúncia social que aqueles fotógrafos, em sua maior parte pessoas brancas de classe média, elaboravam a partir de suas referências, especialmente quando estas vinham do fotojornalismo e das agências nacionais e internacionais. Em termos demográficos, a par das condições de trabalho e renda, bem como de acesso à educação formal, a população negra era praticamente sinônimo de população pobre, de modo que o recorte racial das imagens de Fotobahia frequentemente se cruza com o recorte de classe, quando se tratava de denunciar questões sociais, como o cotidiano das pessoas em situação de rua no Centro Histórico de Salvador. A jornalista Mariluce Moura, que escrevia no Jornal da Bahia e nos catálogos a respeito daquelas imagens, chega a mudar seu posicionamento: do elogio ao que ela considerava como “fotojornalismo sincero”, em 1979, ela passa à crítica da repetição exaustiva da temática da pobreza, primeiro em 1980, depois em 1983. E era uma pobreza que tinha cor.

Entretanto, fotógrafos como Isabel Gouvea, Renato Marcelo, Adenor Gondim, Agliberto Lima, Mário Cravo Neto, Aristides Alves, entre outros, não se detiveram apenas na fotografia dos sujeitos negros como pobres. Por exemplo, Mário Cravo Neto trazia, no catálogo de 1978, a foto de uma máscara geledé, prefigurando os temas religiosos de matriz africana que viriam a se tornar a tônica de seus célebres projetos fotográficos. Agliberto Lima publicou, no catálogo de 1979, um dos últimos retratos de um dos principais representantes da capoeira do século XX, o já idoso Mestre Pastinha, que faleceria dois anos depois. Em 1984, Adenor Gondim publica um delicado retrato de uma menina com turbante, com trajes que remetem às práticas religiosas que, no futuro, seriam um de seus temas de predileção, como a Irmandade da Boa Morte, do município de Cachoeira.

A presença dos negros no campo de visão dos fotógrafos tem sua explicação histórica. Na segunda metade do século XX, a Bahia e especificamente a cidade de Salvador passaram por um conjunto de processos que afetaram grande parte do que se entendeu como sendo a baianidade herdada das espessas camadas de passado da primeira capital do Brasil, e que, desde o século anterior, atraía o olhar e as câmeras de viajantes, jornalistas e antropólogos. Entre tais processos, destacam-se o crescimento urbano, a favelização, a diversificação econômica – na qual o turismo passou a ter cada vez mais peso ao lado do comércio e da indústria –, o investimento maciço na formatação dos produtos culturais para o consumo, como o carnaval, a culinária, o artesanato e as festas de largo.

Diversos estudiosos têm apontado para as facetas ambíguas que vieram a acompanhar esses processos: a empresarização de festas e sociabilidades de origem popular e, sobretudo, negra, como a Lavagem do Bonfim e a Festa de Iemanjá, e o par oscilante entre a mistura e a reafricanização de práticas culturais de referências negras como os Candomblés, em suas diferentes nações, a Capoeira, os blocos afro, para ficar nos exemplos mais comuns.

Paralelamente, ao longo de décadas, com ritmos distintos em diferentes contextos do mundo, a prática fotográfica se expandiu para além dos estúdios comerciais, do fotojornalismo, das agências de documentação fotográfica e dos campos científicos. Com mudanças também nos dispositivos tecnológicos e na composição de formas, outros espaços de uso se afirmaram, como as galerias de arte, os ambientes familiares, as religiões populares, as experimentações artísticas e os projetos documentais dos fotógrafos.

Pelo acesso difícil a equipamentos, pela ausência de formação para ser fotógrafo e pelo correlato imperativo de construir sociabilidades entre diferentes classes sociais para constituir um campo e se estabelecer num mercado – o que frequentemente poderia esbarrar no racismo –, este ofício, no Brasil e em outras partes do mundo, foi muito pouco oportunizado a pessoas negras, o que só veio a se transformar recentemente. Com a fotografia baiana, e com Fotobahia, em particular, o caso parece não ter sido diferente, mas o momento havia começado a acenar para certas transformações.

 

Os negros tomam as câmeras nas mãos

Esses percursos e campos de imagens indicam que, dentro e fora de Fotobahia, surgiu com maior ênfase um olhar dos negros na fotografia. Mesmo dando uma contribuição apenas pontual ao Grupo de Fotógrafos da Bahia, a trajetória pioneira, nesse sentido, é a do fotojornalista Anízio Carvalho, que nasceu em 1930 e começou a trabalhar como fotógrafo nos anos 1950. Considerado o fotógrafo baiano de atuação mais longeva, Anízio se orgulha de ter comparecido com sua câmera a importantes momentos políticos e sociais da história da Bahia e do Brasil, como a transição dos regimes políticos entre os anos 1960 e 1980; e seu marcante diálogo com artistas da música e em especial com pessoas do Candomblé, dos quais produziu numerosos retratos, um deles publicado no catálogo de Fotobahia de 1979.

Praticante do Candomblé em cerimônia. Fotografia de Anízio Carvalho. Fonte: Catálogo Fotobahia, Salvador, 1979.

Por outro lado, temos os fotógrafos mais identificados como artistas visuais, a exemplo de Juarez Paraíso e Bauer Sá, nascidos, respectivamente em 1934 e 1950. Com carreiras artísticas reconhecidas, ambos tiveram obras adquiridas ou expostas por importantes instituições, com destaque para os museus cujo escopo expositivo e arquivístico se voltam para as culturas negras, como o Museu Afro-brasileiro da Universidade Federal da Bahia (MAFRO-UFBA), que tem, em sua reserva técnica, fotografias de penteados afro-brasileiros feitas por Bauer Sá, e o Museu Afro Brasil, de São Paulo, que contou com o famoso desenho em que o próprio Juarez figura como uma medusa, na exposição “A Serpente no Imaginário Artístico”, de 2014.

Da vastíssima obra de Juarez Paraíso, nome pioneiro da arte contemporânea na Bahia, idealizador e curador das bienais de arte baiana dos anos 1960 – especialmente a II Bienal, quando o artista foi preso pela ditadura –, nos detemos sobre duas fotos. A foto publicada no catálogo Fotobahia de 1978 parece querer documentar sua obra plástica, dando destaque ao volume, aos diferentes ângulos de suas esculturas e a suas conotações que variam do abstrato ao erótico. O catálogo de 1979, em particular, traz a foto de uma mulher negra, a quem não conseguimos identificar. Ela usa trajes de ialorixá, alto cargo no Candomblé, e tem diante de si duas grandes figas fálicas esculpidas pelo artista. As figas entronizam a senhora e concorrem com a indumentária, os braceletes, os fios de conta e o torso amarrado na cabeça para que cruzemos o olhar firme da fotografada, numa composição minuciosamente pensada em torno dos significantes visuais do axé que emanaria do seu corpo e que é procurado pela imagem.

Praticante do Candomblé tendo diante de si esculturas de Juarez Paraíso. Fotografia de Juarez Paraíso. Fonte: Catálogo Fotobahia, Salvador, 1979.

Embora, entre estes três fotógrafos, Bauer tenha sido aquele que mais participou diretamente das ações de Fotobahia, somente duas fotos de sua autoria foram encontradas nos catálogos: uma publicada em 1980, de uma palafita focada à distância, remetendo ao tema da pobreza, e uma no catálogo de 1984, onde se vê um gesto que pode ser uma performance, em que um homem branco desenrola uma corda da cabeça. Chama a atenção, particularmente, o par de fotos da coleção original do MAFRO-UFBA, sobre a qual restam poucas informações. São duas imagens sem rosto, provavelmente de mulheres, nas quais os cabelos são vistos por trás com arranjos de tranças e adereços que os unem. Uma das imagens está emoldurada em forma de cartaz, com o título “Tendências estéticas afrobaianas” ao seu redor, fazendo a divulgação de um evento, talvez uma exposição, que era promovida pela Superintendência Estudantil, pela Coordenação Central de Extensão e pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA – neste último espaço e em meio ao fortalecimento da militância negra é que nascera o MAFRO, instalado em 1982. Mesmo sem um rosto para devolver o olhar para a câmera do fotógrafo, o cartaz e a imagem mobilizavam um tema importantíssimo dos movimentos negros, que era a estética capilar, com sua diversidade criativa e sua potência de afirmação política.

As transformações da prática fotográfica, ocasionadas até mesmo pela inserção dos sujeitos negros nesses campos de produção, não apenas democratizaram o acesso aos equipamentos e a um lugar no mercado, mas também promoveram emancipação de olhares negros para que pudessem lançar luzes sobre as multiplicidades de experiências de negritude que constituem seus modos de vida, de expressão e de dignidade na sociedade baiana contemporânea. 

 

Assista ao vídeo do historiador Elson de Assis Rabelo no Acervo Cultne sobre este artigo:


Nossas histórias na sala de aula

O conteúdo deste texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Ensino Fundamental: EF05HI03 (5º ano: Analisar o papel das culturas e das religiões na composição identitária dos povos antigos); EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil); EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas.

Ensino Médio: EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais – etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc. –, avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS103 (Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e informações de diversas naturezas – expressões artísticas, textos filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas, tradições orais, entre outros); EM13CHS104 (Analisar objetos e vestígios da cultura material e imaterial de modo a identificar conhecimentos, valores, crenças e práticas que caracterizam a identidade e a diversidade cultural de diferentes sociedades inseridas no tempo e no espaço); EM13CHS106 (Utilizar as linguagens cartográfica, gráfica e iconográfica, diferentes gêneros textuais e tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais, incluindo as escolares, para se comunicar, acessar e difundir informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva).

 

Elson de Assis Rabelo

Doutor em História pela UFPE, Professor da UNIVASF e colaborador da UFBA; E-mail: elson_rabelo@hotmail.com; Instagram/Twitter: @oxossidearuanda

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 
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