‘Farol que se apaga’: assassinada, Tia Vera criou creche na periferia de SP 

FONTEPor Paulo Eduardo Dias, do UOL
Vera Lúcia da Silva Santos, líder comunitária da periferia da zona sul de São Paulo (Foto: Reprodução/ONG Auri Verde)

Quando o caixão da líder comunitária Vera Lúcia da Silva Santos, 64, desceu à sepultura na chuvosa e fria tarde desta sexta-feira (21) em um cemitério de Parelheiros, zona sul de São Paulo, os moradores do Jardim Varginha viram se apagar um de seus faróis. Ela havia iluminado pelos últimos 30 anos a vida de crianças e adolescentes da periferia da capital paulista ao manter seis creches e um centro para jovens.

As condições da morte de Tia Vera, como era chamada, intrigam a polícia. Ela despareceu na manhã de 16 de julho. Dois dias depois, um corpo carbonizado foi encontrado no porta-malas de seu veículo, também incendiado. A polícia trabalha com a possibilidade de o assassinato ter sido motivado pelo dinheiro movimentado pela ONG Auri Verde, liderada por Vera e que gerencia, em convênio com a prefeitura, as creches, um centro para crianças e adolescentes e o espaço para uso da comunidade.

O carro estava a cerca de cinco quilômetros do local de onde ela teria sumido, segundo a investigação. Devido ao estágio de decomposição do cadáver, a polícia teve realizar um exame DNA para identificá-lo. O resultado só saiu nesta semana. Realmente era Vera.

Procurada pelo UOL, a Secretaria da Segurança Pública informou que “o caso segue em sigilo pela Divisão de Homicídios do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), que realiza diligências para esclarecimento dos fatos”.

Em entrevista à TV Globo, o delegado Marcelo Jacobucci, do DHPP, afirmou que a principal linha de apuração é a saúde financeira da ONG, que movimentava um montante considerável de dinheiro devido aos contratos com a prefeitura.

O crime chama a atenção pelo teor do trabalho de Vera. As seis creches possuem capacidade para atender até 1.018 crianças de 0 a 3 anos. Já o centro podia receber até 180 crianças e adolescentes para atividades artísticas e culturais.

A sede da ONG, outro espaço destinado a estreitar os vínculos com a comunidade, oferecia aulas de zumba, break, teatro, sertanejo e balé, além de reuniões e eventos festivos. Cerca de 250 pessoas frequentavam o lugar por mês. Ao todo, a entidade emprega 130 funcionários.

Por todo esse trabalho, a líder comunitária é vista na região como uma salvadora de crianças e adolescentes. Jacqueline Suzan, 43, mora no bairro há 16 anos e conheceu Vera assim que chegou, vinda de Campinas.

Cheguei a São Paulo em 2003. Não conhecia nada nem ninguém. Dona Vera foi um dos anjos na minha vida. Eu morava de favor, mas precisava trabalhar e tinha acabado de arrumar um emprego. Não tinha onde deixar minha filha mais nova, e ela acolheu a menina.

Jacqueline Suzan e sua filha Thaís Suzan. A jovem, agora universitária, frequentou uma das creches mantidas por Vera Lúcia (Foto: Arquivo Pessoal/Jacqueline Suzan)

Hoje, a jovem de 20 anos é estudante de ciências sociais na Universidade Federal de São Carlos, no interior de São Paulo. Jacqueline, que está desempregada, diz que, não fosse a acolhida de Vera, sua vida e de sua filha teriam tomado outro rumo. “O que seria de nós se ela tivesse negado? Teria que sair do emprego, e a história seria outra. Meu caso não é o único, muitos têm o mesmo sentimento de gratidão que eu”, completou.

Dona Vera era uma pessoa ímpar, solidária, que dedicou sua vida, quase 30 anos, em prol da comunidade onde vivia. Lutou para todas as crianças e adolescentes terem educação de qualidade e para os pais delas poderem trabalhar e ter onde deixar seus filhos.

Bastante emocionada, Jacqueline conta que foi ela que procurou o 85° DP, do Jardim Mirna, para comunicar o desparecimento de Vera Lúcia. A iniciativa ocorreu logo após ser alertada por um dos filhos da líder comunitária sobre o sumiço da mãe e do veículo que ela usava.

Quem também se emociona ao falar de Vera Lúcia é a advogada Alene Watanabe Ribeiro do Valle. Ela é proprietária de um dos imóveis alugados pela líder comunitária para ser usado como creche. Mas a relação que era comercial virou amizade há quase dez anos.

A Vera é um farol que se apaga nessa região. Ela dava oportunidade para aqueles meninos. A única oportunidade que alguns deles têm é o crime, é o tráfico. Ela salvava vidas.

A líder comunitária Vera Lúcia e Alene Watanabe, dona do imóvel em que funciona uma das escolas, mantinham amizade de quase 10 anos (Foto: Arquivo pessoal/Alene Watanabe)

Foi a advogada quem chamou a amiga para participar das reuniões do Conselho Comunitário de Segurança do Jardim Mirna quando ainda presidia o colegiado, que reúne moradores do bairro, policiais civis e militares. A participação virou assunto de família. Atualmente, o conselho é presidido por Edson Passos, um dos filhos de Vera Lúcia.

Ela trabalhava entre 12 a 15 horas por dia. A ONG, as creches e o centro comunitário eram a vida dela. Era uma pessoa muito especial, simples e esforçada, que deu a vida para comunidade. Não pegava dinheiro para ela. A gente vê muita creche, muita gente fazendo cambalacho aqui, cambalacho ali para usar dinheiro para benefício próprio. A Vera nunca fez isso.
– Alene Watanabe, advogada

Líder só soube o próprio nome aos 15 anos

Nascida em Taperoá, no sul da Bahia, Vera chegou a São Paulo em 1975. Veio para ser empregada doméstica em uma residência no bairro do Paraíso, na zona sul de São Paulo, após trabalhar em uma casa de Salvador.

Depois do serviço doméstico, chegou a trabalhar em uma fábrica de sorvetes. Foi nesta época, em 1992, que chegou ao Jardim Varginha. Lá, fundou a Sociedade Amigos do Jardim Auri Verde, que nasceu para regularizar loteamentos e pressionar a prefeitura para ampliar o saneamento básico. Até então, o bairro era só uma região tomada pelo mato e cortada por vias de terra batida nas proximidades da represa Billings.

Vera Lúcia da Silva Santos, líder comunitária da zona sul de SP, atuava em ONG que mantinha creches para crianças (Foto: Reprodução/ONG Auri Verde)

Vera, que deixou cinco filhos, perdeu a mãe quando tinha apenas três anos. O pai acabou por deixar cada um dos filhos sob os cuidados de uma pessoa na cidade.

Até os 15 anos, ela pensava se chamar Joana, nome dado pela família adotiva. Só veio a descobrir sua identidade quando encontrou um tio. O homem disse que seu nome de batismo era Vera Lúcia, em homenagem à avó, Veridiana, e à mãe, Lucília.

Em vídeo gravado pela ONG, a líder comunitária afirmou que tudo o que havia conquistado era fruto do trabalho em comunidade. Sem soberba, encarava os mutirões como forma de realizar sonhos. “Eu, Vera, não fiz nada sozinha, não, nós fizemos juntos e juntos, um a um. Juntos, a gente conseguiu.”

 

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