Favela: A verdadeira startup brasileira?

FONTEPor Christian Ribeiro, enviado para o Portal Geledés
Christian Ribeiro, sociólogo, mestre em Urbanismo, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP. Professor titular da SEDUC-SP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil. (Foto: Arquivo Pessoal)

Nas últimas semanas tem sido apresentado uma série de reportagens, nos mais variados órgãos de nossa imprensa, em que destaca as favelas enquanto exemplos de startups genuinamente brasileiras. Um processo de narrativa discursiva e visual, com forte teor emocional, em que acaba por ser exposto que vivemos o começo de uma verdadeira revolução em nossas cidades, através da ação filantrópica e altruísta de ONGs e entidades assistenciais em seu ensinar as populações habitantes das favelas espalhadas pelo país de que aprender a empreender é o caminho que levará a solução final e perfeita, a superação definitiva de todas as nossas mazelas sociais.

Um conjunto de ações coletivas coordenadas por grupos sociais apoiados e financiados por (grandes) empresas, interessados em serem parceiros desse processo de mudança econômica que se espalhará pelas periferias brasileiras. Como que atendendo a necessidade detectada, de agora que sabemos quais são os nossos direitos e como reivindicá-los – segundo a reportagem – é hora dessas populações ganharem o seu próprio dinheiro. Tudo posto, como um projeto pronto e acabado, sem falhas ou infortúnios, que mudará nosso patamar civilizatório, de maneira rápida e direta.

Numa construção ideológica em que não se coloca em pauta nossa estrutura social baseada em séculos de desigualdades originárias de um sistema constituído para ser excludente e segregador. Não existe questionamento as nossas tensões e conflitações que se originam dessa nossa realidade histórica, é tudo colocado de maneira amorfa e acrítica, quase num sentido de idílico, em que superaremos nossos problemas em “paz e harmonia”.

Fora que além dessa característica de reavivar nosso ideário de país “socialmente harmonioso”, temos um sutil, mas perversa concepção ideológica de que é o próprio pobre o culpado de sua miserabilidade. E a partir do momento que as mais variadas pesquisas apontam que no Brasil a miséria possuí gênero e cor, essa discursiva ideológica de culpabilizar sempre aos pobres seus infortúnios ganha outros contornos. É o nosso sistema social, sempre gerido por aqueles que se autointitulam como elites, que utilizando vestes neoliberais, que se isenta de toda participação e responsabilidade pelo caos humanitário em que se encontra mergulhada a sociedade brasileira. Com índices de fome, miséria e violência batendo recorde atrás de recorde, atingindo a realidade cotidiana daqueles a que agora tenta se imputar a culpa de suas próprias dores!

É um discurso perigoso, excludente e profundamente racista, pois promulga em ênfase que para se vencer deve-se sacrificar, sofrer, acordar cedo, não ter medo de trabalhar, de ter a coragem de enfrentar os mais árduos desafios, como se isso não fosse algo comum a história de qualquer favela no país! Como se a labuta do trabalho fosse algo desconhecido as populações que ali estão historicamente locadas, como se tivessem que serem educadas para ganhar dinheiro. Assim, reafirmando sutilmente, de que vivem na miséria por sua própria culpa, ignorância e incompetência!  Como se essas pessoas tivessem medo ou ojeriza ao trabalho… Ignorando a própria história da construção e desenvolvimento que deu forma ao Brasil enquanto nação! Que se fez construir, diretamente, pelo esforço intelectual e mental, pela tenacidade e sagacidade das populações afrodescendentes que majoritariamente constituem a grande massa moradora das nossas favelas e periferias urbanas. Não por inabilidade ou incompetência em “vencer na vida”, mas por consequência de nossa estrutura social racista e arcaica.

Por detrás da “nobre” iniciativa do grande empresariado nacional e internacional em “dar oportunidade” aos mais pobres e excluídos, de aprenderem por si só a apreender, para assim montar o seu próprio negócio sendo patrão de si mesmo, não dependendo de nada além de “força de vontade e perseverança”, temos um processo de apagamento de nossa história real. Em detrimento do realce e fortalecimento de uma ideologia que privilegia o individualismo e o egoísmo, como elementos chaves para se ter sucesso na vida! Tiro a culpa de nossas elites, de seu uso indevido e imoral do Estado para benefício de seus interesses particulares, jogando a responsabilidade das condições desumanas em que nos encontramos não desse sistema que aí está, mas das pessoas vitimadas por ele que se deixam abater, prostar e arrefecer perante as dificuldades da vida. Não percebendo que estas dificuldades são oportunidades de superação e crescimento que a vida – ou Deus, pelo discurso da Teologia da Prosperidade – nos apresenta para nos tornamos melhores e mais fortes, verdadeiros vencedores. Em vez de culpar os “outros”, em vez de culpar o Sistema, paro de reclamar e vou construir eu mesmo o meu futuro!

Essa lógica motivacional, presente a fala de qualquer coach do You Tube, é o mantra que se faz repetir cotidianamente nas periferias brasileiras, como se fosse a única “escapatória” que resta a quem “não desiste de ser alguém” nessa vida! Numa postura de desvalorização de toda e qualquer perspectiva crítica de se buscar opor e confrontar os conjuntos de diferenças e discriminações sociais que nos cercam na sociedade brasileira. É a negação de qualquer via política, socialmente consciente e crítica, de se buscar coletivamente a construção de novas formas de relações sociais mais includentes e igualitárias, humanisticamente mais inclusivas e não alienantes. Não existe mais o “nós”, mas apenas a incessante busca pela constituição do “eu”, dos marginalizados e mal pagos de hoje, conseguirem ter acesso as “oportunidades” oferecidas por aqueles que são diretamente responsáveis pela miserabilidade em que vivem! Se tornando os defensores de uma ordem que os mata de fome ou a tiros, que os tipificam enquanto inferiores e perigosos por sua origem étnico-racial, gênero, religião, classe social… Lhes retirando toda e qualquer noção de dignidade, de humanidade. Protetores de uma sociedade que os desprezam ao infinito, mas que canoniza aos seus algozes, aos seus senhores, em sua infinita bondade de lhes permitir meios que lhe possibilitem ascender! Mais um cidadão modelo, nesse sentido exemplar, de uma sociedade plastificada e cada vez mais sem vida!

Em que se você não conseguir mudar a realidade em que se encontra inserido, isso ocorre por sua própria incompetência, pois os meios e oportunidades lhe estão sendo dados e oferecidos. É uma lavagem cerebral perfeita, pois você não questiona os males sociais e a miséria que lhe rondam, a partir do momento que negar essa realidade é impossível, mas – e daí surge a perversidade dessa situação – você também não culpabiliza quem cria, gere e se beneficia desse sistema, muito pelo contrário, pois acaba gerando um processo de admiração e reconhecimento pela bondade destes em “oferecer” oportunidades que possibilitem aos “menos favorecidos” vencer na vida por seus próprios “méritos e esforços”. Se tiverem verdadeira determinação, foco e, verdadeira, vontade de trabalhar! 

Um ideário que se espalha cada vez mais, de maneira acrítica e sem resistência, estimulada em reportagens aparentemente despretensiosas e bem-intencionadas, nas políticas de desmonte da escola pública enquanto geradora de consciência crítica e cidadã, na demonização da política enquanto instrumento de luta e contestação da ordem vigente, naturalização das diferenças e desigualdades sociais como algo ruim, mas que “sempre existiu e existirá”. Num caminho de não futuro, ao menos que você incorpore e defenda as premissas de uma sociedade cotidianamente cada vez mais lhe fecha todas as portas, todos os caminhos para uma vida fora das amarras que até hoje perpetuam as nossas opressões e dominações por raça, classe social, credo, gênero e sexualidade! O que nos explica as loas e defesas apaixonadas do empreendorismo da miséria, da teologia da prosperidade e da educação tecnicista – única e exclusivamente voltadas as populações mais pobres de nossa sociedade, no país em que o ato de estudar, no seu sentido mais amplo e libertador, deixou de ser libertador, para voltou a ser defendido enquanto privilégio destinado aos poucos/escolhidos de sempre – como formas de impedimento a qualquer tentativa de contestação e enfrentamento a ordem vigente.

“Mandar a miséria para a lua”, “A favela venceu” são ideias, são conceitos ao mesmo tempo oriundos e constituintes dessa realidade alienante e elitista, que agora começa a divulgar aos quatro ventos o conceito da favela enquanto o verdadeiro modelo de startup brasileiro, para isso utilizando-se de todos os processos criativos culturais e políticos criados ou desenvolvidos a partir das nossas favelas. Mas sempre, despolitizando essas experiências de suas origens e práxis contestatórias, de suas ações conflitantes e em oposição a nossa ordem social vigente. Se ignora, literalmente essas experiências negras urbanas populares de viés contestatórios para louvar as suas “originalidades” e “virtudes”, mas sem destacar que estas se davam e se caracterizavam por oposição a esse Sistema que hoje buscam louvar e defender, ao descaracterizar o verdadeiro sentido que a elas deram sentido e significados. 

O samba, o candomblé, a umbanda, a transformação do futebol enquanto arte e identidade nacional, a criação das bases revolucionárias da modernidade brasileira, são expressões conscientes, organizadas e sistematizadas de negritudes por estas terras enquanto legado que deve ser reverenciado, louvado e protegido em suas trajetórias de lutas e resistências que contra todas as possibilidades e expectativas continuam a tensionar e confrontar aos que consideram senhores dos destinos de tudo e de todos! 

Para ficar nítido, para que não haja dúvidas, de que as favelas não são startups… Que fique explícito que as favelas foram palco, os primeiros espaços coletivos urbanos de originalidades políticas e culturais que buscavam – e construíram – a edificação de um outro mundo, para longe da lógica perversa e cruel que desumanizava e matava, convém relembrar, aos que não eram considerados dignos de fazer parte da sociedade brasileira. Um padrão de exclusão-extermínio dessas pessoas e suas culturas que continua a existir até hoje, mesmo que mascarado como “oportunidades para vencer na vida”! 

Favela não é startup, mas local de vivências e experiências humanas que não aceitaram e não aceitam ficar a margem do destino, reféns de uma sorte “abençoada” e defendida por outros. Favela é sinônimo de resistência e luta, não ação de marketing para endossar práticas e discursos de exclusão, de segregação ou dominação! Não para beijar as mãos dos gestores diretos de nossas dores, traumas e mortes através dos séculos…   

Favela é luta, é resistência, é vitória, é vida… E, acima de tudo é o semear de uma constante esperança para a construção de um país melhor, mais justo, igualitário e democrático que de fato todos nós merecemos! Ela é aquilo que não poderia ou deveria existir – por isso foi (é) tão combatida ao longo dos séculos – mas que aqui está e se tornou o berço do nosso melhor potencial humano e de inventividade que colaboramos ao mundo! Sem precisar ser startup. Uma associação dessas é muito além de estúpida, é canalha, é torpe, é vil, além de profundamente ofensiva e desrespeitosa. Nossas majestades, nossas histórias não se medem e muito menos se fazem reguladas pelas réguas da mediocridade, do egoísmo e do individualismo. Esses são os motes, as nada doces virtudes daqueles que se consideram os nossos senhores, não o são daqueles que sempre viveram do “outro lado da fronteira” dessa terra de oportunidades marcadas chamada Brasil!


Christian Ribeiro, mestre em Urbanismo, professor de Sociologia da SEDUC-SP, doutorando em Sociologia pelo IFCH-UNICAMP, pesquisador das áreas de negritudes, movimentos negros e pensamento negro no Brasil.

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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