Favela do Jacarezinho e o direito de memória e dignidade para seus mortos

FONTEPor Alessandra Tavares, de ECOA
Memorial é derrubado com auxílio de caveirão da Core (Foto: Reprodução/ G1)

Com as palavras de ordem “Nenhuma morte deve ser esquecida! Nenhuma chacina deve ser naturalizada!”, o monumento em “Homenagem aos mortos da chacina do Jacarezinho” foi erguido em uma calçada na entrada da comunidade, localizada na zona norte do Rio de Janeiro.

Após um ano da ação policial que entrou para História como a mais letal do Estado do Rio de Janeiro, um bloco de concreto com placas que continham críticas ao enfrentamento do tráfico de drogas e os nomes dos 28 mortos, inclusive o do policial que morreu em serviço, era o lugar de memória para que a dor e o trauma vivido não fossem silenciados e/ou esquecidos.

O monumento fazia referência ao fatídico 06 de maio de 2021, mais um dia com gosto de sangue na “cidade em chamas”. Foram 27 moradores mortos que, segundo o comandante da polícia, eram todos suspeitos.

Faz parte dos cotidianos dos moradores das favelas serem acordados na madrugada por som de helicópteros e tiros. Naturalizou-se a ideia de entrar atirando com a justificativa do cumprimento de mandados e/ou “guerra contra o tráfico”. Para o negro favelado, o carimbo da suspeita é sumária justificativa para sua morte, naturalizando o extermínio de seu corpo.

São inúmeras famílias da localidade que vivem no meio da disputa entre criminosos e o Estado. Faz parte de um cotidiano de medo e de morte a execução sumária de quem estiver no caminho como suspeitos e as famigeradas balas perdidas que sempre acham o caminho de corpos negros. São famílias que além de terem que lidar com o luto precisam, na maioria das vezes, defender a dignidade do seu morto. São mães, pais, avôs, irmãos e cônjuges que enfrentam a luta para ter um corpo a velar, enterrar e o direito de memória de seus entes queridos.

A dignidade dos moradores da região é constantemente ameaçada em meio ao que foi pontuado na placa do memorial, uma “política genocida e racista do Estado do Rio de Janeiro, que faz do Jacarezinho (e todas as favelas) uma praça de guerra, para combater um mercado varejista de drogas que nunca vai deixar de existir”.

Não estamos discutindo a legalidade do comércio varejista de drogas, aquele ligado aos pontos de vendas, em regiões mais pobres ou em condomínios de luxo. A crítica é sobre a forma e a sua eficácia no real combate ao tráfico de drogas.

Importante destacar que a ação do Estado é completamente díspar dependendo da geografia e classe social de cada região. Entrar atirando em condomínio de luxo ou universidade de bacana é impensável, assim como deveria ser nas comunidades, mas sabemos que a realidade é bem diferente. Quantas pessoas mais precisam morrer para que tenhamos a prova de sangue de que tais medidas não estão funcionando?

Com as justificativas da falta de autorização da prefeitura para sua construção; que a família do agente morto não havia liberado a inclusão do seu nome; que o monumento fazia homenagem aos traficantes, por tanto, era uma apologia ao tráfico de drogas, o memorial durou exatos 4 dias.

A truculência do Estado marcou mais uma vez a relação com os moradores da localidade. Agentes da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) usaram marretas e um blindado, conhecido como “caveirão” e destruíram a estrutura. Os destroços do que sobrou do monumento foram apreendidos como prova de um crime cometido pela comunidade de querer exercer o seu direito de memória.

Às famílias do Jacarezinho foi sumariamente decretado o silêncio e o apagamento de sua dor, em nome do contraditório cumprimento da lei de levar ao chão: a vida, a dignidade e o direito dos favelados, em sua maioria negros, de terem seus mortos lembrados.

Assim como Bica do conto de Conceição Evaristo narrou, tem dias que combinar de não morrer não é o suficiente, sobretudo nas favelas pelo Brasil afora. Embora “não morrer nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas”.

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