Feminicídio terá aumento expressivo se STF revogar decisão de Rosa Weber sobre armas, analisam especialistas

FONTEO Globo, por Pâmela Dias
Arte: André Mello

Em decisão individual, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber suspendeu trechos dos decretos editados pelo presidente Jair Bolsonaro que facilitam a compra e o porte de armas e entrariam em vigor nesta terça-feira (13). A expectativa agora é que, a partir de sexta (16), o STF analise a decisão de Weber, podendo referendá-la ou revogá-la. Caso os decretos sejam mantidos na íntegra, especialistas afirmam que o Brasil verá um aumento expressivo da violência contra a mulher. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 51,6% dos feminicídios são cometidos com o uso de arma de fogo.

Sandra Ornellas, delegada e diretora do Departamento-Geral de Polícia de Atendimento à Mulher (DGPAM) do Rio de Janeiro, afirma que a ação da ministra do STF foi de “extrema importância para a redução do índice de violência”.

— O trecho do decreto que amplia a possibilidade de um colecionador de armas comprar mais que o inicialmente permitido é muito perigoso, pois, caso seja furtado, ele não terá nenhuma responsabilidade sobre o uso desses armamentos por terceiros — diz a delegada, para quem permitir que mais pessoas tenham armas em casa aumenta o sentimento de poder do homem perante a mulher, incitando ainda mais a violência doméstica.

Sara Gama, promotora de Justiça na Bahia, diz que é um fato que o uso de armas potencializa o feminicídio. Ela lembra que entre as três primeiras perguntas do Formulário Nacional de Avaliação de Risco, que está em vigor desde o dia 3 de março de 2020, está se o agressor usou arma, seja de fogo ou branca, para agredir.

— O histórico da violência mostra que quando o agressor se utiliza de uma arma existem 20 vezes mais chances de acontecer feminicídio — diz Gama, que recorre ao Direito comparado para dar uma ideia desse impacto: — Nos Estados Unidos, por exemplo, onde se tem acesso fácil às armas, 65% dos feminicídios acontecem com uso de armas. Os homens as usam para demonstrar poder e domínio contra companheiras ou ex-companheiras, que, muitas vezes, estão tentando romper com o ciclo de violência.

Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos mostram que, ao longo de 2020, o Brasil somou 105.671 denúncias de violência contra a mulher, sendo 72% referentes à violência doméstica e intrafamiliar. Foram quase 290 denúncias por dia ou uma a cada cinco minutos, segundo os números do Ligue 180 e do Disque 100, canais de atendimento mantidos pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.

Já o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que 1.326 feminicídios foram registrados no país em 2019. Esse tipo de crime cresceu 43% desde 2016, primeiro ano inteiro de vigência da Lei do feminicídio, criada em 2015.

A delegada Sandra Ornelas afirma que é cientificamente comprovado por pesquisas que o armamento gera mais violência.

— Apesar de muitas vezes não ter como impedir uma agressão, é muito mais difícil conter um disparo, que é mais letal. Nas delegacias é perceptível que o homem acha que a arma vai torná-lo mais forte. Isso é fruto de um machismo doente que entende que a mulher é propriedade. Em um embate, ele não vai pensar duas vezes em atentar contra a companheira — afirma.

Foi o que aconteceu com a pernambucana Maria da Penha, cuja luta de 19 anos por justiça resultou na criação da lei que protege as mulheres da violência doméstica, em vigor desde 2006. Ela sobreviveu a uma dupla tentativa de feminicídio que a deixou paraplégica e, em entrevista à reportagem de Celina, em julho de 2019, afirmou ter sido “vítima de arma de fogo que nem sabia que meu marido tinha”.

Conceição de Maria, que é co-fundadora e superintendente geral do Instituto Maria da Penha, organização que atua na conscientização contra a violência de gênero, afirma que, ao se considerar que o Brasil é o quinto país que mais mata mulheres, pode-se deduzir que as armas não serão usadas apenas para proteção pessoal, como aponta Bolsonaro. Mas também para perpetuar a violência doméstica.

— Em anos passados, ao saber da proposta de flexibilização de armas, já encaminhamos notas às autoridades falando por que a ação não seria ideal. Ao saber que alguns decretos poderiam entrar em vigência, ficamos muito apreensivas, pois temos o exemplo claro da Maria da Penha. A cultura brasileira de subjugar a mulher já é um fator suficiente para deduzir que armar a população reflete diretamente na violência contra a mulher — explica Conceição.

A superintendente geral do Instituto Maria da Penha acredita que a situação a longo prazo poderá ser ainda pior, caso o STF revogue a decisão de Rosa Weber. A questão é: o Brasil ainda não possui políticas públicas efetivas de proteção à mulher, ou seja, caso as agressões aumentem, o resultado serão mais mulheres vitimadas e menos agressores punidos.

— As políticas públicas que atendem à Lei Maria da Penha ainda estão muito aquém. Nas regiões interioranas, praticamente não existem delegacias nem centros de referência da mulher para que elas possam buscar ajuda e romper com o ciclo de violência. Todo município, por menor que seja, deve ter atendimento e abrigo sigiloso porque mulheres não podem morrer por falta de leis eficientes — completa.

A promotora de Justiça Sara Gama rebate aqueles que argumentam que mulheres poderiam usar armas para se defenderem de seus agressores:

— Muitas pessoas alegam que haverá também a possibilidade das mulheres se armarem e se defenderem, mas isso é uma incógnita. Historicamente, o uso de armas é muito mais feito por homens do que por mulheres. Não podemos entender essa possibilidade como algo que possa mudar essa realidade de violência, porque não é cultural mulheres se armarem.

Estatuto do Desarmamento

A pesquisa do Atlas da Violência 2020, divulgada pelo Ipea, aponta que, entre 2003 e 2018, anos de vigência do Estatuto do Desarmamento, a velocidade de crescimento anual de mortes por arma de fogo diminuiu para 0,9% no Brasil. Antes da legislação o índice era cerca de 6,5 vezes maior.

O cenário foi alterado no ano passado, quando o país apresentou um aumento de quase 200% nas vendas de armas controladas pela Polícia Federal no primeiro semestre, e de 24% na venda de munições entre janeiro e maio, fruto das flexibilizações.

A advogada criminalista Izabella Borges, pontua que a lei não reduziu drasticamente o número de homicídios, mas, a partir dela, vidas foram poupadas.

— Apesar de não ter sido totalmente eficiente, é preciso pontuar que vidas foram poupadas, ainda que não figurem os índices gerais, representam muito para seus entes. Desse modo, desarmar, ainda que em pequeno percentual, configura-se a melhor solução.

Borges lembra que, para além das mortes, reduzir a circulação de armas impacta também na redução de outros crimes como o tráfico e assalto, por exemplo.

-+=
Sair da versão mobile