Festa para os gênios nascidos em 1942

O Brasil se converteu tão intensamente em território de ódio e luto, inépcia e irrelevância, miséria e desmonte, que perdemos de vista possibilidades únicas de celebração. Semanas atrás, nosso embaixador na França festejou o Bicentenário da Independência em jantar num hotel de luxo de Paris, a € 210 por pessoa, na companhia de sobreviventes da nobreza do país que decapitou a Monarquia em 1789. Combinação impecável entre o ridículo e o anacrônico. É tempo mesmo de agradecer pelos 80 anos de nascimento de uma coleção de gênios que poucas nações — quiçá nenhuma — conseguiram produzir num só momento. Em 1942 vieram à luz Muniz Sodré e Nei Lopes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Paulinho da Viola e Tim Maia, Nara Leão e Clara Nunes.

Eu assistia à série documental sobre Nara Leão — e seu protagonismo incontestável na vertente do samba denominada Bossa Nova —quando comecei a tomar nota dos brasileiros geniais de 1942. A capixaba, que partiu em 1989, se tornaria octogenária em 19 de janeiro. A mineira Clara Nunes, outra voz que perdemos precocemente, em 1983, chegaria aos 80 em 12 de agosto; em 28 de setembro, Sebastião Rodrigues Maia, o gigante Tim, carioca morto em 1998. São três grandes nomes da música brasileira cuja existência foi abreviada, contraponto ao aumento persistente da longevidade da população na segunda metade do século XX, até a pandemia da Covid-19 se apresentar.

Dois dos maiores intelectuais negros de todos os tempos, Muniz Sodré de Araújo Cabral (12 de janeiro) e Nei Braz Lopes (9 de maio) vieram ao mundo em 1942. Muniz é jornalista e sociólogo, pesquisador e tradutor, professor emérito da Escola de Comunicação da UFRJ, obá de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá, terreiro de candomblé da Bahia, sua terra natal. Escreveu ou participou de mais de três dezenas de livros. Carioca de Irajá, salgueirense, Nei Lopes é compositor e cantor, dicionarista e pesquisador de línguas e História africanas, romancista e enciclopedista, formado em Direito e doutor honoris causa pela UFRJ e pela Uerj. É autor de 40 livros; em parceria com Wilson Moreira, produziu clássicos do samba.

A Bahia nos presenteou com Gilberto Gil (26 de junho) e Caetano Veloso (7 de agosto), cantores, compositores, pensadores, parceiros. Escorpianos, Mestres Milton Nascimento (26 de outubro) e Paulinho da Viola (12 de novembro) nasceram no Rio de Janeiro. Bituca, que tem vida e obra assentadas em Minas Gerais, anunciou no último fim de semana a turnê de encerramento da carreira. Seguirá criando, tal como seus contemporâneos.

Encontrei Caetano no aniversário de Regina Casé e, fingindo a mesma normalidade com que batuco agora o teclado, indaguei sobre 1942. “Eu nasci”, respondeu. Na sequência, emendou com a memória da Solução Final, o plano nazista de extermínio. Em 16 de janeiro daquele ano começou a deportação de judeus do gueto de Lodz para o campo de Chelmno, ambos na Polônia. A Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939, entrava no período mais execrável. Em 1º de janeiro de 1942, 26 países assinaram em Washington (EUA) a Declaração das Nações Unidas, marco da reação dos Aliados ao hitlerismo. O Brasil aderiu posteriormente; em agosto, o então presidente, Getúlio Vargas, declarou guerra ao Eixo.

Tempos de guerra não soam apropriados à natalidade, tampouco ao desabrochar de gênios. Mas aconteceu no Brasil. O historiador Carlos Fico, professor titular da UFRJ, dedicado aos estudos sobre o tempo presente, vê na urbanização a coincidência:

— Um ponto importante é o crescimento das cidades, com o paulatino predomínio demográfico da população urbana, entre 1940 e 1970. Em paralelo à urbanização, a industrialização também caracteriza a modernização que o país experimentou. Os setores médios urbanos (classes médias) foram essenciais para a constituição de um mercado de produtos culturais. O Rio de Janeiro tem papel fundamental. Muitos artistas e intelectuais afirmam que os anos 1950 foram a melhor época da cidade, não apenas em atividades artístico-culturais, mas também da própria experiência cotidiana.

Na economia, Fico destaca, o poder de compra do salário mínimo era alto — hoje, nos anos Jair Bolsonaro, bateu o menor nível em três décadas —, o que contribuiu para o consumo de lazer e cultura, da música ao cinema. A indústria fonográfica, bem como rádio e TV, avançou intensamente nos anos 1950 e 1960. Universidades se expandiram, o movimento estudantil desabrochou. Por fim, havia o que o historiador batizou de “experiência democrática 1945-1964”, com pleitos regulares, partidos identificáveis (UDN, PSD, PTB), competição eleitoral efetiva. Ambiente político-econômico favorável, urbanização iniciada, a ciência alavancando a longevidade, via vacinas, medicamentos, hábitos de nutrição e higiene. Em terreno fértil, os gênios brotaram. Viva!

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