Em 2014, Jorge Dias, 21 anos, criou a Müe (se pronuncia muê), junto com outros três amigos da Zona Sul de São Paulo. A irmã, DomênicaDias, 17, virou modelo de suas criações – básicos em uma paleta minimalista e com o estilo da rua. “A gente falava na quebrada que ia müe no jogo, ia müe na prova e a ideia nasceu dali”, diz ele.
Começaram estampando camisetas compradas no Brás, e a brincadeira tomou corpo. Passaram a confeccionar as peças e, em breve, a Müe vai ganhar seu primeiro ponto físico, além do online, que já opera a todo vapor. Santista, Jorge sonha em ver as roupas sendo usadas pelo ídolo Neymar. Enquanto isso não rola, o maior divulgador é o pai da dupla. O que não é pouco, já que eles são filhos de ManoBrown, integrante dos RacionaisMC’s e um dos mais respeitados nomes do rap nacional.
“As pessoas veem que ele está com a nossa camisa nos shows e querem logo saber de onde veio.” A parceria entre família e business, no caso desse time, vai bem além da divulgação. Jorge está produzindo a nova turnê do pai, que recentemente lançou um CD solo. As vendas da Müe estão concentradas no e-commerce da BoogieNaipe, empresa que tem entre os sócios Brown e sua mulher, a advogada e ativista ElianeDias, coordenadora do SOSRacismo.
Já Domênica veste a camisa da marca enquanto também avança no campo do feminismo negro e do consumo consciente. É desse DNA explosivo que saem as criações da marca – que tem como maior hit os diferentes modelos da camiseta Marighella (um guerrilheiro que também foi tema de música do Racionais).
Meus pais deixaram claro que, sendo negra, a minha realidade não era igual à do colega. Racismo é assunto no café da manhã para a gente.
Domênica Dias
“Essa jaqueta jeans custou só 1 real”, conta. Entre as referências de Domênica estão o trio Salt-N-Pepa e as colegas Magá Moura, Karol Conká e a designer Loo Nascimento. “A moda é uma maneira de me armar e me encontrar e também uma ferramenta de autoestima”, diz ela, que curte penteados como as tranças soltas, as do tipo twist e as enraizadas. Foram três anos de transição para deixar para trás a química nos fios. “Quando vi que o meu cabelo era realmente crespo, entendi que tinha de amá-lo do jeito que é.”
Treta em casa
Moradores da Zona Sul paulistana, eles acreditam que a história muda quando estão “da ponte para lá ou da ponte para cá”. “Temos condições melhores e estamos fora das estatísticas da maioria das pessoas do Capão, mas somos dali”, diz Domênica. “Na minha escola particular, havia 250 alunos e só cinco negros. Meus pais deixaram claro que, sendo negra, a minha realidade não era igual à do colega. Racismo é assunto no café da manhã para a gente.”
Sempre vista como a diferente, ela virou o jogo no baile de formatura. “Pedi para a minha mãe um vestido da África, coloquei as tranças em um coque, chamei um maquiador que valorizasse a minha pele e fui uma rainha. Sabia que ninguém estaria igual a mim e foi um escândalo”, diz, brincando.
“É o nosso lifestyle. Por isso, as roupas falam naturalmente de MalcomX, além do Marighella”, afirma Jorge, que dá pitacos no print e na modelagem (desenhados pelos sócios), enquanto projeta a imagem da marca no mercado e faz a engrenagem rodar. A influência da mãe, eixo central da família, é evidente.
“Engajada na política, ela sempre trouxe o que aprendeu na rua para casa”, diz Domênica. “O legado dos nossos pais está aí e temos que dar continuidade na arte, na criação e na inovação”, completa Jorge. Mas os dois estão traçando seus próprios caminhos: tocam ainda as carreiras de ator e de atriz, enquanto ele faz faculdade de marketing e ela quer começar a graduação de artes cênicas.
Jorge já protagonizou o filme Na Quebrada, de Fernando Grostein, e, juntamente com Domênica, fez o clipe Boa Esperança, de Emicida, e a série 3%, da Netflix. Eles ainda guardam tempo para serem jovens: o garoto surpreende dizendo que gosta de Justin Bieber e ama carros e ela adora pesquisar história, participar de grupos de militância feminista e está sempre garimpando em brechós.
Mesmo libertários, os pais têm de se esforçar para lidar com questões levantadas pelos filhos, como as pautas feministas que costumam “gerar treta em casa”. “A gente debate e ele (Brown) discorda, mas depois repassa para milhões de pessoas. É legal ver que ele aprende com a gente.”
Sobre as semanas de moda, os irmãos citam a LAB, de Emicida e Fióti, como um turning point. “Antes, na SPFW, eu só via gente que não era parecida comigo e foi um choque tanta gente preta e maravilhosa”, diz Domênica. Jorge conta que a passarela está nos planos futuros. “Quero primeiro ver a Müe relevante, com uma mensagem que conquiste as pessoas”, diz. Parece só uma questão de tempo.
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