Flávia Oliveira: dividida entre o jornalismo e a atuação em movimentos sociais

FONTEMarie Claire, por Adriana Ferreira da Silva
Flávia Oliveira (Foto: João Cotta)

“Meu médico tem convicção, mas não tem provas”, conta, rindo, Flávia Oliveira, sobre sua provável contaminação pelo coronavírus – ela fez os testes, mas foram inconclusivos. Foi após viajar a São Paulo para seu último compromisso público em março, um encontro com Nikole Hannah-Jones, repórter do jornal The New York Times, no Instituto Moreira Salles, que ela acredita ter adoecido. “Eu estava em semi-isolamento no Rio, então fiquei trancada no hotel e fui de lá para o evento. Quando terminou, decidiram sair para jantar. Eu disse que não iria, mas acabei cedendo. Mas daí o jantar se estendeu ao [espaço cultural] Aparelha Luzia, que foi enchendo, enchendo… Quando terminou a noite, estavámos todos nos abraçando. Foi a cerimônia do adeus da aglomeração”, diz ela.

Os sintomas de Covid-19 vieram em forma de febre e dores intensas nas costas. “Numa madrugada, acordei com tanta dor que quase pedi para ir ao hospital, mas me acalmei”, descreve. “Na terapia, tratei disso. Não é que eu tenha sentido medo de morrer. Sou uma mulher do candomblé e temos uma sensação de vida e morte diferente. Mas seria uma pena danada não estar neste plano para ver o que iria acontecer.” Durante esse período, isolada num cômodo da casa que divide com o marido e a filha, Flávia não parou um único dia. Seguiu escrevendo para o jornal O Globo, fazendo entradas na rádio CBN, gravando podcasts e atuando como comentarista na Globonews, canal para o qual chega a ficar até sete horas por dia disponível. Também passou a participar de eventos virtuais: até hoje, foram mais de 40.

“Como jornalista, me confronto com números dramáticos e tento guardar essas informações, usando sensibilidade para saber o que compartilhar””
Flávia Oliveira

Em meio a esse turbilhão, o que a emociona é o ofício como conselheira de movimentos sociais. “Tenho compartimentado minha dor. Como mulher, negra, mãe, sigo protegendo minha saúde, preocupada com os meus. Como jornalista, me confronto com números dramáticos e tento guardar essas informações, usando sensibilidade para saber o que compartilhar. Demorei, por exemplo, para falar sobre luto. Só no início de abril, numa reunião com jovens da favela, é que disse: ‘Vamos começar a perder gente, e vamos nos sentir culpados de não estar conseguindo fazer mais, mas não se sintam. Vocês estão trabalhando duro desde o primeiro dia’”, diz Flávia, que, neste momento, embarga a voz e deixa as lágrimas fluírem.

A sensibilidade que faz dela uma jornalista capaz de discutir com figurões da economia com a mesma desenvoltura com que participa de encontros de mulheres negras reflete uma trajetória que começou no Irajá, subúrbio do Rio, onde moravam ela e a mãe, Anna Lúcia. “Meu pai foi embora sem se despedir na Copa de 1978, quando eu tinha de 8 para 9 anos. Foi a maior tristeza da minha vida, porque eu era apaixonada por ele. Quando nos reencontramos, não conseguia chamá-lo de pai”, diz ela. Flávia cresceu sob a tutela da mãe que, com educação básica, fez da filha um modelo. “A escola pública explica minha ascensão socioeconômica, mas tenho também a consciência de minha experiência de vida, como a pedagogia da minha mãe, que me educava com ditos populares com significados éticos.”

Ainda que tenha vivido o preconceito racial desde a infância, só na Universidade Federal Fluminense Flávia se deu conta de suas sórdidas engrenagens e passou a falar sobre sua negritude. “Minha família era subordinada ao racismo estrutural. Minha avó dizia que minha mãe tinha ‘barriga limpa’, que era a capacidade de gerar filhos mais claros, porque ela se casou com um branco. Minha família foi adoecida pela ideologia do embranquecimento”, diz ela.

Como jornalista, Flávia teve uma rápida passagem pelo Jornal do Comércio, até ir para O Globo, em 1994, e deu seu primeiro grande furo no mesmo ano: ao receber a missão de “colar” no então ministro da Fazenda do governo do ex-presidente Itamar Franco, Rubens Ricupero, num velório, seguiu a ordem tão ao pé da letra que embarcou no carro do ministro quando ele deixou o lugar e conseguiu detalhes sobre uma nova medida econômica. Ao narrar ao editor, ouviu de Miriam Leitão: “Menina, você é repórter mesmo, hein?”. Pouco tempo depois, Miriam a escolheu como sua interina. “Até hoje, trocamos juras de amor. A Miriam é uma referência. Sempre quis ser uma jornalista de produção de conteúdo, por isso me espelho muito nela.” Hoje, é Flávia quem exerce essa influência, e aprende com a filha, a também jornalista Isabela Reis. “Ela me ajuda a avançar no feminismo.”

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