Flávia Oliveira: ‘Glória Maria foi corajosa ao ousar ser um corpo negro feminino no jornalismo de TV’

'De tudo que Glória Maria tenha feito, talvez a coisa mais revolucionária tenha sido essa banalidade de descer uma montanha-russa', escreveu a colunista do GLOBO

FONTEO Globo, por Flávia Oliveira
Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo/ Arquivo O Globo)

A despedida de Glória Maria encerra um capítulo glorioso do jornalismo feminino negro brasileiro. Toda jovem, toda menina, toda mulher negra brasileira que um dia, a partir dos anos 1970 do século XX, imaginou ser jornalista, teve Glória Maria como referência. É um dia de luto e, ao mesmo tempo, de gratidão. Por esta mulher que teve como nome a glória e como principal característica a coragem. Glória Maria foi corajosa ao ousar ser um corpo negro feminino no jornalismo de televisão. Não é trivial. Não é trivial ser uma mulher negra no Brasil. Mulheres negras no Brasil estão na base dos indicadores socioeconômicos. Nós, negras, somos a maioria das desempregadas, a maioria das pobres, a maioria das mulheres sem cônjuge ou companheiros, com filhos. Somos as cuidadoras das nossas famílias e de tantas outras famílias, pobres, ricas ou remediadas do Brasil, herança de um passado escravocrata. Somos as mulheres com menor escolaridade, com os piores índices de acesso à saúde. E a Glória foi a mulher que ousou tirar os nossos corpos da fatalidade da precarização e exibir em cadeia nacional contando as histórias do Brasil.

Gloria Maria, apresentando o Globo Repórter – Foto: Rede Globo/Reprodução

Glória Maria inspirou, certamente, todas as jornalistas negras brasileiras, e nelas eu me incluo. E todas nós, jornalistas negras brasileiras, em algum momentos foram confundidas, chamadas de Glória Maria. Somos herdeiras de Glória Maria, do legado de Glória Maria. Ela nos honra e nos orgulha.

Como jornalista, também destaco não só o fato de Glória ter sido essa jornalista negra brasileira, essa jornalista negra brasileira de televisão, mas uma jornalista negra de televisão que ousou ocupar todos os espaços possíveis do jornalismo de TV. Foi repórter, apresentadora, âncora, correspondente. Tratou de assuntos duros, sérios e lúdicos. Poucas pessoas, talvez, compreendam o significado de uma mulher negra jornalista reportando uma montanha-russa. De tudo que Glória Maria tenha feito, talvez a coisa mais revolucionária tenha sido essa banalidade de descer uma montanha-russa. Diversão e lazer não são triviais. Diversão e lazer para pessoas negras no Brasil são luxo e privilégio, não direitos. E ela nos fez sonhar com jornalismo lúdico e com diversão.

Como mulher negra, brasileira, como cidadã, ela foi a primeira a acionar a lei Afonso Arinos para enfrentamento ao racismo. É uma referência também no antiracismo, quando esse nome nem era citado. Foi uma mulher que assumiu duas filhas sem um companheiro, sem uma referência masculina. Essa é a história de muitas, da maioria das mulheres negras brasileiras. É a escolha que muitas mulheres negras brasileiras fizeram e fazem pelo compromisso que temos – biológico, histórico, cultural, tradicional – com a vida. A vida que nossos úteros geram ou a vida que outros úteros nos legaram de presente.

Glória Maria partiu num dia 2 de fevereiro, de Iemanjá, a dona de todas as cabeças. Foi minha mãe Iemanjá que deu a ela o alívio para esta doença que a afetou na cabeça, mas que agora está livre de todos os males. E nós, mulheres negras brasileiras, jornalistas negras, vamos para sempre lembrar do legado, da herança que ela nos deixa. Glória Maria é a glória. Viva Glória.

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