Fora do compasso: estereótipos sobre as passistas na imprensa do Rio de Janeiro dos anos 1980

FONTEPor Claudielle Pavão da Silva, enviado ao Portal Geledés

A cadência dos pés das passistas frente às primeiras estrofes do samba-exaltação é um prelúdio da fusão entre o corpo e o som. Para os espectadores-foliões apaixonados, e talvez descompromissados, são esses passos elegantemente ritmados, feito contagem regressiva, que hipnotizam e anunciam o espetáculo. A explosão da bateria sincronizada aos pés e quadris das passistas revela que não se trata de um dom, mas sim de um trabalho constante, aliado ao aprendizado insistente, ambos passados de geração a geração. Melhor dizendo, ancestralidade.

A organização das escolas de samba foi crucial para a produção de identidades territoriais, valorização da cultura negra e construção de vínculos afetivos entre indivíduos que compartilhavam a experiência de ser negro em um país que ainda não superou o pós-abolição. Contudo, mesmo que o carnaval e o samba tenham se tornado objetos de diversos trabalhos acadêmicos, a figura masculina ficou como protagonista dos processos históricos pelos quais as escolas de samba passaram até chegarem ao formato que conhecemos hoje. E as mulheres? As mulheres que fazem parte da festa e da construção do samba têm suas histórias pouco visibilizadas e estudadas. 

O objetivo deste texto é observar como os estereótipos sobre as mulheres negras atravessaram o século XX. Para tanto, é necessário que compreendamos os processos históricos acerca do ideal de mulata e as formas como os estereótipos que envolvem questões de gênero e raça se articulam na reprodução de imagens que os retroalimentam.

Nos anos 1980, houve um crescente número de mulheres passistas nas escolas de samba do Rio de Janeiro e de outras localidades, o que se desdobrou na necessidade de formação de uma ala específica para tais componentes. O perfil majoritário dessa seção era de mulheres negras, o que retratava a participação da população que se identificava com a música, a dança e as vivências construídas e estabelecidas nas escolas às quais essas pessoas pertenciam.

A inauguração da Passarela do Samba do Rio, conhecida por Sambódromo, em 1984, teve grande impacto no formato dos desfiles e na sua espetacularização. Entretanto, para compor a ala de passistas, era preciso mais que saber sambar, era importante que as meninas e mulheres que quisessem compor a ala fizessem parte da escola de samba, envolvendo-se com a comunidade. E o reconhecimento dos mais velhos na jornada dos desfiles e espetáculos era parte fundamental desse processo de participação e envolvimento.

O senso comum defende que sambar é uma ação inata, mas os especialistas em desenvolver passos de samba apontam que a passista depende de anos de aprendizado e dedicação. Além disso, houve a profissionalização da categoria e o tempo investido para aprimorar o improviso característico da dança foi primordial para os praticantes e profissionais. 

No caso das passistas que pretendem se profissionalizar, atuando em shows de mulatas, e recebendo cachês para isso, as exigências sobre o corpo são tão importantes quanto o desempenho artístico. A altura, assim como fenótipos que conciliem características de corpos negros e brancos são fatores que definem quais mulheres participam dos espetáculos com remuneração. Esse é o caso das mulatas show, que se diferem das mulheres que atuam somente nas alas das passistas para os desfiles, situação apontada na pesquisa de Barbara Pereira.

Dentro dos espetáculos de carnaval e samba, a mulata é uma expressão artística que faz uso dos estereótipos, através de gestos e posturas, para a construção de uma personagem, possibilitando que as passistas sejam vistas e contratadas para se apresentarem, profissionalizando-se. Segundo Simone Toji, é “muito oportuno à performance destes sambistas a apresentação dos personagens da mulata e do malandro, não só porque são representações carregadas do significado da ambiguidade na formação da sociedade brasileira, como também brincar com os pressupostos que essas noções carregam, apresentando mulatas brancas e malandros com postura”.

Desse modo, essas referências a partir do malandro e da mulata teriam uma autorização à subversão, como podemos observar pela própria dinâmica do carnaval sobre as fantasias e brincadeiras presentes na festa marcada pela interação das ambiguidades. Todavia, a sexualidade exacerbada de uma suposta “cor do pecado” expõe os artifícios mobilizados na construção e manutenção de dispositivos de poder, garantindo a objetificação de determinados corpos em detrimento de outros. 

Os estereótipos ligados à performance e à disponibilidade sexual não afetam exclusivamente as mulheres negras, mas possuem especificidades de gênero e raça nas formas em que são acionados pela imprensa. Isso nos impõe um alerta a respeito das complexidades presentes nas festas de carnaval e nas encenações das mulatas, convidando-nos a refletir a respeito do direito ao corpo e à sexualidade, assim como dos estereótipos que enclausuram as mulheres negras a estarem submetidas a determinados perfis, desumanizando-as.  

Ao compreendermos as disputas nas narrativas construídas sobre os corpos das mulheres negras, temos a possibilidade de observar os rastros históricos que demarcam questões ligadas à escravidão, ao pós-abolição e à história do racismo no Brasil. Segundo a historiadora Giovana Xavier, a construção e manutenção de estereótipos sobre os corpos e comportamentos de mulheres negras foi resultado do “esforço em demonstrar a confluência entre traços físicos ‘anormais’ e o caráter ‘duvidoso’ como a principal marca da mulher ‘de cor’ e do seu corpo. É dentro desse contexto que nasceram tipologias literárias como as da bela mulata, da crioula feia, da escrava fiel, da preta resignada, da mucama sapeca ou ainda da mestiça virtuosa”.

As noções atribuídas aos corpos negros estão ligadas as relações de poder constituídas tanto no período escravocrata quanto no pós-abolição. O papel social de servir institui uma relação hierarquizada de sujeição a quem se beneficia do privilégio de ser servido. A experiência das mulheres negras nas relações de trabalho se deu, majoritariamente, nas atividades domésticas. O fato de os trabalhos domésticos já serem realizados pelas mulheres em suas próprias casas é um dos fatores que contribuiu para a inserção das mulheres negras no serviço doméstico, assim como a experiência da escravidão e a inferiorização de trabalhos manuais, conforme analisou Flávia Souza

Então podemos observar que os discursos sobre as “criadas para servir” eram estigmatizantes, definindo essas mulheres como perigosas e criminosas, o que vai ao encontro da pesquisa realizada pela historiadora Nathalia Peçanha, em sua dissertação, em que os discursos sobre as “criadas para servir” eram estigmatizantes. As representações do trabalho doméstico na revista Rio Nu chamavam a atenção da população sobre o risco dos filhos ilegítimos e da miscigenação, numa tentativa de evitar que os homens tivessem relações sexuais com essas mulheres e, caso o fizessem, que fossem brancas. 

Questões históricas a respeito das mulheres negras corroboram para a construção da identidade da mulata. No entanto, os processos históricos frente às dinâmicas sociais levantam ressignificações para os usos desse termo, mesmo que mulata continue enviesado por aspectos físicos e comportamentais oriundos do processo da miscigenação. 

A fim de demonstrar o alcance dessas reflexões de caráter mais teórico, realizaremos a análise de fotografias da Revista Manchete da década de 1980, em matérias que se dedicavam a apresentar os principais destaques dos desfiles de carnaval, com foco nas imagens de passistas. A cor, a posição de seus corpos e a interação com os componentes, além das legendas que acompanhavam as imagens foram os pontos observados e problematizados. 

As fotografias expostas na revista passam por um processo de seleção e essa seleção é feita por uma pessoa, ou equipe, que segue as orientações do editorial a respeito do que pode ou não pode ser publicado. Essas imagens, assim como os textos expõem uma narrativa sobre o carnaval, em consonância com a linha editorial. Isso é perpassado tanto pelas experiências e lugares de fala da equipe que selecionou as fotos quanto pelo público que a revista deseja atingir. Sendo assim, ao observarmos como as fotografias selecionadas para a publicação apresentam as mulheres, podemos perceber que a construção de uma narrativa sobre o carnaval pretende reforçar estereótipos sobre as mulheres negras e brancas, percorrendo a racialidade, a sexualidade e as formas de ser mulher.

No carnaval de 1983, a Revista Manchete fez sua tradicional cobertura sobre a festa, com recorrentes imagens de passistas sambando, rodeadas por ritmistas das escolas. O título presente na primeira imagem reverencia a beleza de “uma verdadeira deusa negra”, se referindo a sua cor. Numa tentativa de exaltar a beleza da passista, o exotismo e o essencialismo foram reproduzidos no texto, demarcando a negritude da mulher que posa para a câmera e, apenas no período dessa festividade, tem sua imagem estampada num periódico. É importante ressaltar que campanhas publicitárias, assim como programas televisivos e novelas raramente escalavam pessoas negras para destaques.

Revista Manchete, Rio de Janeiro, fevereiro de 1983, p. 25. (Fonte: Biblioteca Nacional.)

Nas outras imagens, há referências sobre os corpos das mulheres nas legendas das fotografias. Na segunda, as mulatas seminuas agradaram mais ao público, segundo a revista, evocando a sexualidade na exibição de seus corpos. A imagem possui três fotografias, uma mulher negra cercada de homens passistas que a abraçam, e as outras duas são mulheres brancas sozinhas, posando para a câmera. É possível que todas as mulheres que aparecem nas fotos tenham relação com a comunidade e possam, em algum momento, ter abraçado colegas homens que participavam do desfile. Todavia, a seleção dessas imagens decide que as mulheres negras devem estar cercadas de homens, evocando os estereótipos acerca da promiscuidade e disponibilidade sexual. O mesmo ocorre na terceira imagem que é acompanhada pela legenda “samba dito no pé, mas também com outras partes da anatomia”, em uma fotografia em que a posição espontânea da passista em movimento e a posição da câmera estabelecem como centro da imagem a sua virilha, o que é reforçado pela legenda.

Revista Manchete, Rio de Janeiro, março de 1981, p. 28 (Fonte: Biblioteca Nacional.)
Revista Manchete, Rio de Janeiro, fevereiro de 1983, p. 25 (Fonte: Biblioteca Nacional.)

A hierarquia social da cor, dentro do mesmo grupo racial, demonstra os aspectos já mencionados a respeito do impacto dos ideais sobre a miscigenação e o racismo na construção de trajetórias negras no pós-abolição. Todavia, esses aspectos não anulam a importância do samba e do carnaval como estratégias realizadas por sujeitos negros para subverter as dificuldades de sobrevivência e garantia de renda e lazer num país pautado pela diferenciação e hierarquização de raça, classe e gênero, o que pode ser observado na pesquisa de Alessandra Barbosa.

Entre os anos 1970 e 1980, observamos que a reorganização de movimentos sociais com a abertura política, aliada ao avanço de novas perspectivas nos estudos das humanidades sobre os conflitos sociais, possibilitou um terreno fértil para o fortalecimento do movimento negro e a influência desses estudos em políticas públicas, tendo como marco a Constituição de 1988, que define o racismo como crime inafiançável. 

Nesse momento histórico, marcado pelo fim da ditadura militar, temos o avanço dos estudos sobre sexismo e racismo protagonizados pela produção intelectual de mulheres negras. Lélia Gonzalez apontou as interseccionalidades das opressões vividas por mulheres negras em razão do sexismo e do racismo: “como todo mito, o da democracia racial oculta algo para além daquilo que mostra. Numa primeira aproximação, constatamos que exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra, pois o outro lado do endeusamento carnavalesco ocorre no cotidiano dessa mulher, no momento em que ela se transfigura na empregada doméstica. É por aí que a culpabilidade engendrada pelo seu endeusamento se exerce com fortes cargas de agressividade. É por aí, também, que se constata que os termos mulata e doméstica são atribuições de um mesmo sujeito”. 

É importante ressaltar que as críticas aos estereótipos sexuais não são um chamado à repressão da sexualidade das mulheres negras, ou uma tentativa de controlar seus corpos. Ademais, os próprios estereótipos já os fazem, quando exigem que essas mulheres castrem seus desejos para se afastar de estigmas sexuais e percorrer trajetórias profissionais ou pessoais que destoem do que foi historicamente reservado a elas. Dessa forma, a afirmação de Gonzalez sobre a relevância de contestar esses estereótipos lança luz sobre a ação de movimentos sociais na promoção de posicionamentos antirracistas e antissexistas. No entanto, o impacto desses questionamentos tem pouca força nas pesquisas acadêmicas, principalmente no campo da História do Brasil. 

Nas últimas três décadas a historiografia fez avanços importantes nesse sentido, mas ainda se percebe a força do “paradigma da ausência”, apontada pelo historiador Álvaro Nascimento, pois analisar a transformação das relações sociais e econômicas experimentadas em mais de trezentos anos de escravidão em relações pretensamente livres, sem considerar a cor das pessoas que viveram esse longo e conflituoso processo histórico, nos afasta das reflexões que essa transformação engendra e exige.  

As jovens negras que puseram seus biquínis brilhosos, arrumaram seus cabelos e seguiram para os desfiles de suas escolas de samba eram, em sua maioria, pertencentes às classes trabalhadoras. A possibilidade de brilhar, aparecer nos jornais e mostrar seu talento como passista, num contexto social ao qual o destino de grande parte das mulheres negras e pobres é viver de trabalhos subalternizados, em territórios violentos, traz mais sentido e ânimo às suas experiências de vida. O samba é também a agência das mulheres negras que criam estratégias frente às limitações impostas pelos estereótipos para viverem experiências de celebração da cultura negra.

Assista ao vídeo da historiadora Claudielle Pavão da Silva no Cultne.TV sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

Ensino Fundamental: EF09HI03 (9º ano: Identificar os mecanismos de inserção dos negros na sociedade brasileira pós-abolição e avaliar os seus resultados); EF09HI04 (9º ano: Discutir a importância da participação da população negra na formação econômica, política e social do Brasil); EF09HI23 (9º ano: Identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-los à noção de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de preconceito, como o racismo); EF09HI26 (9º ano: Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas).

Ensino Médio:  EM13CHS102 (Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos); EM13CHS103 (Elaborar hipóteses, selecionar evidências e compor argumentos relativos a processos políticos, econômicos, sociais, ambientais, culturais e epistemológicos, com base na sistematização de dados e informações de diversas naturezas – expressões artísticas, textos filosóficos e sociológicos, documentos históricos e geográficos, gráficos, mapas, tabelas, tradições orais, entre outros); EM13CHS402 (Analisar e comparar indicadores de emprego, trabalho e renda em diferentes espaços, escalas e tempos, associando-os a processos de estratificação e desigualdade socioeconômica); EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais); EM13CHS503 (Identificar diversas formas de violência – física, simbólica, psicológica etc. –, suas principais vítimas, suas causas sociais, psicológicas e afetivas, seus significados e usos políticos, sociais e culturais, discutindo e avaliando mecanismos para combatê-las, com base em argumentos éticos).


Claudielle Pavão da Silva

Mestra e doutoranda em História pelo PPHR/ UFRRJ. Diretora da Casa da Mulher Carioca Tia Doca – SPM. E-mail: clau.pavao@hotmail.com; Instagram: @clau_pavao

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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