“A forma como a sociedade pensa as crianças é como vê as mulheres”, avalia doula

Pesquisadora Morgana Eneile defende que a esquerda deve mudar a forma como lida com crianças para desalienar mulheres

Por Pedro Ribeiro Nogueira Do Brasil de Fato

“Mudar o olhar sobre as crianças é mudar o ponto de vista de sociedade: as crianças pertencem a sociedade, todos maternam” / Marcelo Cruz

Dona de uma fala provocativa e certeira, Morgana Eneile, professora e doula, presidenta da Associação de Doulas do Rio de Janeiro, pesquisadora de juventude, educação e processos sociais na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), participou neste sábado (21), do debate sobre o Rio de Janeiro e seus desafios, no 2º Festival Internacional da Utopia, em Maricá (RJ).

Em sua intervenção, conclamou que a esquerda – e a sociedade como um todo – repense de maneira profunda a forma como trata suas mulheres e crianças, assim como as pessoas negras e a juventude. Perguntada sobre o encarceramento feminino, foi bastante enfática ao dizer que “precisamos libertar essas mulheres e pensar outras formas de lidar com o crime que não passem pelo punitivismo”.

Eneile também ressalta a importância de encararmos que todos participamos da “maternagem” e avançar cada vez mais em espaços políticos que se abram para as crianças e tirem a mulher do lugar de invisibilidade no nascimento. “Quantas redes de apoio à mães são formadas por homens?”, questiona.

Além disso, defendeu também o direito ao prazer, ao ócio, à experimentação, à transformação pessoal e à mudar os caminhos da sua vida para toda a população – e não apenas para os setores privilegiados da sociedade.

“Como pobre foi muito estranho para as pessoas que eu quisesse trabalhar numa área de cultura. Porque afinal de contas você é pobre, você tem que fazer algo prático, exercer uma função que te dê dinheiro, para você se sustentar”, pontua Eneile.

Confira abaixo a íntegra da entrevista de Morgana ao Brasil de Fato.

Brasil de Fato: O que Rio vive hoje com a intervenção militar e quais são as saídas populares para essa conjuntura?

Morgana Eneile: A intervenção militar tem um dado de invasão, no sentido do que a gente já tinha de precariedade, ou seja, a gente já tinha uma vida precária, já tínhamos um quadro de encarceramento de jovens e mulheres crescendo exponencialmente. Isso por si só já demonstra que essa intervenção não acumula para um Rio que têm condições de se pensar sem violẽncia.

E pensar do ponto de vista da violência os desafios do Rio, é pensar outro modelo de inclusão de mulheres e de jovens que altere o sentido com o qual a sociedade e as instituições se pensam. Em especial em relação às mulheres e jovens negros e negras que vivem hoje em uma situação de base de pirâmide e são transformados em vítima ao invés de potência.

Ao investir nesse processo, de alternar o processo da pirâmide, priorizando nessas populações, vai muito além de qualquer processo de encarceramento ou de punição que temos hoje aplicados na nossa sociedade.

Como realizar processos de escuta e participação popular que potencializam essas transformações?

O processo de escuta parte da noção de que é muito comum que o estado pense as políticas a partir do que ele acha que tem que oferecer. E o fato dele achar que as mulheres e jovens devam ser manicures e cabeleireiras, pedreiros e assistentes de elétrica, sem querer desmerecer essas profissões que são essenciais para nossa sociedade, mas impõe a uma determinada camada da sociedade que ela não tem direito à escolher qualquer outra coisa, que ela não tem o direito de viver e ser plena inclusive do ponto de vista de demorar à escolher.

Isso faz toda diferença do ponto de vista da política pública quando você convoca essas populações a se pensar e se refletir inclusive para além do que eles são hoje.

Quando você constrói esse tipo de política, tem que ter por parte do estado, uma habilidade de compreender que as pessoas têm o direito ao desejo, a pensar o que querem ser e não só a receber do estado o que ele acha que convém naquele momento àquela pessoa a partir do seu endereço, da sua cor e da sua condição de vida, de jovem, de mulher e o fato dela ser negra e impor a ela um papel determinado pelo racismo estrutural e mesmo fortemente pelo racismo institucional.

Quando a gente pensa que essa alteração passa pela participação social que tem hoje esse dado de novidade, que por exemplo, quando uma empresa faz uma propaganda sem uma mulher negra, porque representatividade importa, quando ela não contém um jovem negro, você percebe que a sociedade hoje grita.

E vamos continuar gritando porque esse é o lugar do processo. E se isso, se o estado não souber escutar para formular as políticas, caberá às mulheres e aos jovens quebrarem todas fileiras, todos muros que estiverem pela frente. O tempo em que os jovens e as jovens, que as mulheres negras, tinham para esperar que o estado fizesse algo por eles já está passando. Nós vamos ocupar os espaços e se tiverem outras pessoas nos espaços que são nossos, a gente vai dizer o seguinte: levanta que esse lugar é meu.

Em sua fala você desenvolveu um discurso sobre como o desejo, sobre o direito ao ócio, ao prazer, à indecisão, às potencialidades. Isso, como você apontou, é um privilégio de poucos…

Uma das coisas mais estranhas que eu pude vivenciar na minha vida é que como pobre foi muito estranho para as pessoas que eu quisesse trabalhar numa área de cultura. Porque afinal de contas você é pobre, você tem que fazer algo prático, exercer uma função que te dê dinheiro, para você se sustentar.

Porque as coisas vinculadas ao prazer geralmente são ligadas a coisas que você estabelece como direito posterior. Quando você vai discutir numa situação de um debate político, é muito comum que o debate da cultura seja o último. Porque ele tem a ver com ócio, desejo, prazer, felicidade e sentir-se pleno.

Só que, numa lógica cotidiana, para que você vá pensar nisso, ou desejar isso, primeiro você tem que estar saudável, depois você tem que estar educado, depois você tem que ter infraestrutura, mobilidade, é como que o direito de existir de forma plena só possa existir para quem tem todas as condições para isso.

Quando a gente aceita nos colocarmos enquanto sociedade em um lugar em que não temos direito ao prazer enquanto não tivermos educação, saúde, moradia, esgoto, enfim, se a gente tiver que esperar que todas demandas da nossa existência – que são importantes – se concretizarem para ser feliz, para ter direito à plenitude, isso é de uma crueldade que nada mais é algo inculcado pelas classes privilegiadas de que não temos direito à isso, ao prazer, aos espaços culturais, a viver e experimentar as coisas.

Nós temos direito à experimentação, é um direito cada vez mais necessário para promover outra sociedade, que as pessoas entendam que experimentar faz parte da condição de infância e juventude, que não se encerra quando a gente vira adulto.

A gente tem que experimentar porque temos o direito de ser plenos e ser plenos quer dizer que temos que viver o prazer e desejar inclusive não fazer nada. Isso não é um direito dos ricos. Vamos nos recuperar isso para gente, de mudar quando quiser e de construir um novo caminho sempre que tivermos desejo de andar por outros sentidos de forma mais feliz.

Você também falou da questão de como a esquerda lida com as crianças nos espaços políticos e no geral. Sobre o cuidado de todos e de como a presença da infância é enriquecedora e não apenas isso, ela permite desalienar as mulheres dos espaços de participação.

A maneira como a sociedade pensa as crianças tem tudo a ver com como a sociedade pensa as mulheres, né? Porque tem um efeito enorme, que a gente percebe e combate como doula, na minha função de doula, que é quando as mulheres engravidam elas viram um ente fora do tempo. Elas passam a serem tocadas – sem desejarem serem tocadas -, elas passam a ter sua vida tornada pública e exposta, como se aquela barriga fosse um patrimônio de todas as pessoas da sociedade. O problema é que essa criança nasce.

E quando ela nasce essa mulher é jogada para dentro de casa, invisibilizada, passa uma relação de puerpério em que nem a rede pública nem a privada tem uma previsão de um processo de acolhimento, seja na saúde mental ou no seu bem estar, é como se ela tivesse feito um processo de recolhimento que acaba sendo imposto por um período muito longo.

Eu defendo que as mulheres possam o ser o que elas quiserem, inclusive donas de casa, mães exclusivas, que tenham tempo e possam se dedicar exclusivamente a isso, mas aí que está: o fato de que as mulheres passam por esse processo de recolhimento faz com que elas saiam da cena, elas saem da cena e se tornam invisíveis.

Nem políticas se tornam, porque elas estão tão invisibilizadas que nem condições de fazer uma participação social ativa e que conduza um processo de demarcação de território propriamente dito do ponto de visto político. Logo, quando a gente diz: “mais políticas para mulheres”, todas as vezes que essas ações não envolvem espaços de acolhimento de crianças, eles produzem exclusão, ao invés de produzir inclusão.  Porque você vai incluir um grupo de mulheres mas vai deixar de fora um grupo grande de mulheres.

“As crianças merecem participar da vida da sociedade”, afirma Morgana. (Foto: Marcus Correa via Flickr/Creative Commons)

Durante muito tempo o movimento feminista discutiu essa compulsoriedade da maternidade como não sendo mãe. Negando esse papel da maternidade. Só que não é isso mais que as jovens mulheres hoje pensam. Jovens mulheres hoje pensam de que precisam estar nesses espaços inclusive com seus filhos. Essas crianças merecem participar da vida da sociedade e o processo de pensar o que é a maternagem é um processo que pensa a maternagem de forma ampliada.

Todas e todos maternam. O que é maternar? Maternar no sentido de que o processo de criação das crianças não pertence a quem a pariu. Não pertence a família próxima. Pertence a um sentido de que a sociedade deve a essa criança um lugar melhor e que para que ela não seja invisibilizada ela precisa estar nos lugares.

Isso colabora para a autonomia das mulheres – porque faz com que elas não fiquem dependentes de uma rede de apoio que as suportes, geralmente formada por outras mulheres, raramente a rede de apoio de uma mulher é formada por um homem. É formada por mulheres que abrem mão do protagonismo para que a mais nova tenha algum protagonismo e autonomia.

Então é um círculo que precisa ser quebrada e para isso a sociedade tem que assumir, inclusive nós, as pessoas progressistas e de esquerda, temos que assumir que conviver com as crianças é algo normal, habitual, esperado. Devemos esperar que as crianças estejam com a gente, contar que haverão crianças, e não ter aquele certo incômodo de ter uma criança chorando ou uma mãe amamentando, porque elas sentem, percebem, e ninguém quer levar seu filho para um ambiente onde terá uma cara feia. Mudar o olhar sobre isso é mudar o ponto de vista de sociedade, as crianças pertencem a sociedade, todos maternam, então que a gente consiga absorver as crianças cada vez mais.

E sobre a questão dos bebês presos, que é um pouca absurda…

É absurdo, mas é uma saída. Houve um crescimento expressivo nos últimos 10 anos da população encarcerada. No caso das mulheres isso é em uma proporção muito maior. Temos um alto índice de mulheres encarceradas que nem apenadas estão. E um grande número de mulheres que poderiam estar vivenciando um outro tipo de regime e não estão, sem que haja explicação para isso. Há dois anos, houve um caso muito impactante de uma mulher que deu à luz sozinha em uma solitária, dentro do [Presídio Feminino] Talavera Bruce. Ela deu à luz sozinha, gritou a noite inteira, todos os requintes de crueldade- e não podemos esquecer que se trata de uma mulher negra. Logo após, o que ocorre, uma vez que elas não têm direito a uma pena alternativa, e muitas delas nem apenadas estão, só estão encarceradas, nem puderam passar pelo processo de liberdade assistida.

“Precisamos libertar essas mulheres, devolvê-las às suas famílias e construir algum tipo de lógica que não seja punitivista para as mulheres”. (Foto: Agência CNJ via Flickr/Creative Commons)

Por isso há uma unidade materna infantil para onde elas são transferidas com seus bebês. Claro, que se você for ver essa unidade, ela é fisicamente mais organizada, não tem uma estrutura prisional da forma como você tem na memória, de uma cela. Mas é uma prisão. E esses bebês ficam com as gestantes até seis meses e depois são entregues para a família, e se não houver família, vão para uma instituição. Ou seja, porque as mulheres não podem ir para casa com seus bebês? E onde estão os parentes dessa criança? Quando uma mulher é encarcerada, em ampla maioria dos casos, a família se desfaz, e você tem as crianças espalhadas em um processo que poderia ser diferente. No Paraná, temos cerca de 3 mil mulheres encarceradas, mas metade delas tem penas alternativas de liberdade assistida. Precisamos libertar essas mulheres, devolvê-las às suas famílias e construir algum tipo de lógica que não seja punitivista para as mulheres em situação de crime.

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