Forte pra quê?

A importância de se estar atenta onde e em quem se emprega a própria forca

FONTEPor Etiene Martins, enviado para o Portal Geledés
Etiene Martins (Foto: Pedro Vilela/Divulgação)

Quem nasceu e cresceu cercada por mulheres negras muito provavelmente já perdeu as contas de quantas vezes ouviu “Eu sou forte para dor”. Falamos e interiorizarmos esse legado que alguns chamam de resiliência, já eu demorei, mas compreendi que não passa do efeito do racismo na psique negra. Essa fala verbaliza o quanto estamos imersas no racismo estrutural a ponto de naturalizá-lo e muitas das vezes sem perceber o estrago que ele faz na nossa saúde mental.

Essa crença coletiva começou com o contexto escravocrata, como uma forma de resistência ao trabalho desumano, aos estupros e outras torturas que essas mulheres foram submetidas. Mesmo passado 130 anos o modelo hierárquico prevalece e o estereótipo da mulher negra forte pra dor se propaga quase que uma característica hereditária. Uma pequena frase que retira mesmo que inconscientemente a humanidade de uma pessoa e demonstra o quanto o racismo altera nossa habilidade de reconhecer nossos limites e respeitá-los.

Ser forte pra dor é uma estratégia multifacetada do racismo e do machismo que tem dado certo. Estratégia para que as mulheres negras se proponham a negar a sua humanidade e se sujeite a trabalhos que exijam uma força física acima do suportado saudavelmente para o seu corpo, baixos salários, a trabalhos insalubres, a sub-empregos.

Mas não é apenas no mercado de trabalho que a violência ocorre. De acordo com o mapa da violência enquanto o feminicídio entre as mulheres brancas diminuiu, entre as mulheres negras só aumenta. É essa mulher que leva o primeiro soco, se diz forte e se nega a denunciar por que tem medo, é dependente financeira e emocionalmente. É essa mulher que o líder religioso convence que a violência do parceiro é uma provação e que ela é forte pra perseverar e que Jesus vai dá a vitória. Esse mito é tão presente no imaginário popular que faz com que um profissional da área da saúde opte por não anestesiar uma mulher negra na mesa de parto proporcionando que essa mulher sofra com a violência obstétrica diferente das não negras.

Aqui me lembro de uma frase que li em alguma bibliografia da academia, infelizmente não me recordo de quem: “tudo no mundo é mediado até a maneira como nos vemos”. Somos seres sociais e relacionais. O fato das pessoas em nosso entorno terem dificuldades de apreciar mulheres negras da maneira que realmente somos e atribuir a nós uma identidade baseada em vários estereótipos negativos dificulta e muito o desenvolvimento de um autoconceito positivo. Vivenciar a dor do ódio racial ou testemunhar essa dor não significava compreender suas origens sua evolução e seus impactos na nossa saúde física, mental e espiritual. A inabilidade de nós mulheres negras de compreendermos o racismo no contexto político desse país apenas reflete a extensão de nossa vitimização.

Nossa coluna já se curvou demais em razão de um peso desproporcional que carregamos ao longo de nossa história. Se é pra levantar peso que seja em uma barra na academia para proporcionar bem estar físico. Retirar esse peso inclui necessariamente estar atenta ao campo discursivo, imaginário enfim todo o simbólico que reforça sua subalternidade ao propor que você é forte pra dor. É necessário guardar cuidadosamente forças para viver e não só sobreviver. Ter uma boa reserva de forças para desfrutar da tão sagrada alegria. A luta só vale a pena se tivermos vitalidade física e saúde mental para desfrutar da vitória. Não vou falar para você pra esquecer que é negra, e gozar única e exclusivamente da sua humanidade, até porque já fiz e conheci muitas mulheres que se propuseram a fazer isso, mas vai ter sempre alguém para te lembrar e da forma mais cruel possível.

Minha vó gostava de usar a sua força lembrando de sua negritude ouvindo e cantando Elza Soares. Já eu, confesso que me vejo morando em uma das músicas do Ilê Ayé, na poesia da Cristiane Sobral ao deixar o meu cabelo em paz, me negando a lavar pratos e na sagacidade da Kehinde no clássico mais recente da literatura brasileira. É exercitando o auto afeto que se para de viver sob a demanda de uma necessidade forjada e socialmente hierarquizada nesse sistema ao qual estamos inseridas. É exercitando o auto afeto que vamos construindo uma psiquê saudável e provando da dor somente o inevitável sem se sentir orgulhosa de ser forte pra ela e sim para ultrapassá-la quando estritamente necessária.

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