Houve uma época em que os livros de História explicavam a Inquisição Portuguesa como uma instituição que perseguia quase exclusivamente judeus e cristãos novos. Nessas histórias, africanos, escravos e libertos eram sujeitos inexistentes. Entretanto, com o passar do tempo, os pesquisadores depararam-se com um número significativo de processos envolvendo cativos, forros, africanos e indígenas, demonstrando, assim, a riqueza das fontes inquisitoriais à compreensão da diversidade étnica e cultural, bem como a escrita da história das Inquisições.
Foi desse modo, na lida com os arquivos físicos e digitais, que me deparei com a história de Francisco Rodrigues de Azevedo, morador de Cambambe, Fortaleza de Nossa Senhora do Rosário, Reino de Angola. Como bem diz o historiador Roquinaldo Ferreira, Angola diferencia-se das demais localidades de África, entre outros fatores, pelo expressivo grau de crioulização, que afetou não somente a costa, mas também a região interiorana. Cambambe era uma região fortemente militarizada – localizada no interior de Angola – o que explica a presença significativa de militares das mais variadas patentes, como capitães, soldados e alferes na localidade.
Na segunda metade do século XVIII, Francisco Rodrigues de Azevedo foi denunciado à Inquisição de Lisboa sob a acusação de ter mandado matar a feitiço um ex-capitão-mor, entre outros crimes. Para sustentar a acusação, foram arrolados os depoimentos de um conjunto de testemunhas (militares pretos e forros residentes no interior de Angola) que representava a realidade local. Um exemplo de testemunho foi o de Paulo Bangu, preto, forro e morador de Cambambe; ele alegou que o acusado vivia às bordas do Rio Kwanza e teria contratado os serviços de um “negro feiticeiro”, que vivia na senzala do Capitão Pais Souto, para matar Julião da Nóbrega e Tomé Rodrigues.
Em suma, após ouvir um conjunto de sete testemunhas de acusação, o capitão-mor do presídio, ou seja, a maior autoridade local, solicitou ao escrivão que redigisse o Termo de Conclusão e o Termo de Recomendação do Preso, documentos em que as autoridades locais portuguesas solicitavam cautela e vigilância com relação ao réu. Este teve seus bens sequestrados, entre eles, uma negra de nome Ana e a filha dela, uma negra de nome Izabel com uma cria de pé.
Mas quem era Francisco? Cativo? Forro? Ao que tudo indica, ele era um reinol, provavelmente um degredado para as terras de Angola. Vale ressaltar que, segundo Selma Pantoja, no século XVIII, houve um aumento significativo no fluxo de degredados, inclusive a população branca residente em Luanda era formada, majoritariamente, por degredados que, muitas vezes, ocupavam postos nos setores civis e militares com funções de mando e de destaque.
No que concerne às testemunhas, a maioria delas era homens, brancos, pretos e pardos, de idades variadas, sobressaindo os que possuíam algum tipo de patente militar. Entre eles, encontravam-se pessoas muito próximas ao réu, sobrinhos e primos consanguíneos ou por afinidade.
A história de Francisco permite traçar um retrato sobre a vida religiosa em Luanda e no interior de Angola, marcada por práticas sincréticas que agregavam brancos, negros, escravos e livres, e, ao mesmo tempo, aponta uma faceta do processo de crioulização, em que o modo de ser “crioulo” se expressou por meio dos comportamentos, práticas e atitudes. Estas certamente incomodaram os interesses políticos, econômicos e religiosos vigentes no interior de Angola.
Nesse sentido, convém frisar o papel desempenhado pela missionação. Segundo o historiador português Carlos Almeida, os relatos escritos pelos missionários que atuaram nesta região demonstram, de forma veemente, a relação entre as populações e a evangelização, apontando, assim, o impacto do processo missionário para a conversão dos nativos.
Em virtude disso, em 1693, D. Pedro II declarou ao Governador e Capitão Geral do Reino de Angola, Gonçalo da Costa de Alcáçova Carneiro de Meneses, que estava ciente do estado em que se encontravam as missões em Angola, indicando a urgente necessidade de manutenção e aumento desse serviço. A presença dos missionários se fazia necessária para conter a prática dos ritos tradicionais entre a população.
Em 1694, D. Pedro II respondeu ao Governador e Capitão Geral de Angola, enunciando estar ciente das atitudes dos moradores das senzalas do Reino de Angola, onde se praticavam “ritos diabólicos”, superstições e juramentos. D. Pedro II mandou avisar ao Inquisidor Geral sobre o assunto, estando o Bispo encarregado pela sua jurisdição. O monarca solicitou ao Governador de Angola que auxiliasse o Bispo em tudo o que fosse necessário.
Com o objetivo de contornar as dificuldades causadas pela baixa quantidade de religiosos no Reino, D. Pedro II recorreu ao Sumo Pontífice, solicitando moderação nos impedimentos. O objetivo era facilitar os processos para que os considerados pardos e ilegítimos pela Sé Apostólica pudessem se tornar Clérigos. Requereu que esta questão ficasse ao arbítrio do Bispo, para, assim, amenizar as consequências dessa proibição.
Para atenuar a falta de clérigos, enviaram de Portugal um total de doze religiosos da Terceira Ordem para atuarem como capelães de navio. Se os pardos e ilegítimos obtivessem dispensa, também seriam enviados a esse serviço. Nesse processo, que consiste em uma busca constante por missionários, a Coroa portuguesa posicionou-se de bom grado frente ao trabalho desenvolvido por capuchinhos e jesuítas.
Em 1700, D. Pedro II escreveu a Luís Cesar de Meneses, Governador e Capitão Geral do Reino de Angola, devido à falta de missionários no interior; isso significa que, passados dois anos da primeira carta, o problema ainda não havia sido resolvido.
O trabalho missionário iniciava-se pelos presídios do Bengo e Dande. Num segundo momento, os missionários eram enviados ao interior de Angola. D. Pedro II sugeria aos missionários que permanecessem na região até adoecerem e livrarem-se das doenças, o que poderia acontecer nos presídios ou na cidade de Luanda.
Em outras palavras, a ação missionária em Angola contou com o apoio real para a manutenção de suas atividades. O projeto de expansão da fé católica em Luanda e no seu interior estabeleceu-se tendo como base o tripé: a ação missionária, a atuação do episcopado e a prática inquisitorial. No final do século XVII, a aliança entre esses três setores constituiu a força motora no processo de desconstrução das religiosidades tradicionais e dos costumes das populações locais.
Afinal, se os africanos e seus descendentes não possuíam recursos monetários relevantes para atrair as garras da Inquisição, eles eram detentores de conhecimentos e práticas culturais notáveis, as quais determinaram a relevância destes como protagonistas e coadjuvantes no cenário inquisitorial.
Assista ao vídeo da historiadora Fabiana Schleumer no Acervo Cultne sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula:
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF07HI03 (7º ano: Identificar aspectos e processos específicos das sociedades africanas e americanas antes da chegada dos europeus, com destaque para as formas de organização social e o desenvolvimento de saberes e técnicas).
Ensino Médio: EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais).
Fabiana Schleumer
Doutora em História pela USP
Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Unifesp
E-mail: schleumer@unifesp.br e Facebook: Fabiana Schleume