Fraude na vacinação é falta de caráter

No dicionário, mau-caráter é o indivíduo capaz de ato traiçoeiro, que não é confiável

FONTEO Globo, por Flávia Oliveira
Flávia Oliveira (Foto: Marta Azevedo/ Arquivo O Globo)

O sérvio Novak Djokovic é o tenista número um do mundo. Aos 35 anos, caminha para uma centena de títulos, 22 deles em torneios de Grand Slam. Foi o primeiro no ofício a ultrapassar a marca de US$ 100 milhões em premiações nas quadras. Em 2020, quando as competições estavam suspensas em razão da pandemia, organizou torneio em Belgrado com público, sem distanciamento nem obrigatoriedade de máscara. Na sequência, promoveu uma festa, igualmente aglomerada. Pela farra, ele, a mulher, o técnico, o preparador físico e um punhado de atletas adoeceram. Assim, ganhou o apelido de DjoCovid.

Em meio a um planeta ávido por imunização, o tenista decidiu não se vacinar. Em 2022, foi deportado da Austrália, após seu visto ser cancelado por ele não ter esquema vacinal completo. Em entrevista à BBC, disse que perderia outras competições:

— Sim, é o preço que estou disposto a pagar.

E pagou. O Aberto da Austrália foi o primeiro de oito torneios de que não participou; o mais recente foi o Aberto de Miami, em março. Ao todo, abriu mão de conquistar 10 mil pontos no ranking ATP e faturar US$ 11 milhões em prêmios.

Djokovic pode ser chamado de negacionista e antivacina, anticiência e ignorante, irracional e estúpido, egoísta e radical. Caráter ele tem. No dicionário, mau-caráter é o indivíduo capaz de ato traiçoeiro, que não é confiável. Nesta semana, tornaram-se públicas investigações da Polícia Federal sobre uma “estrutura criminosa” que produzia certificados falsos de vacinação para quem, contrário à imunização, se recusava a pagar o preço. Puro mau-caratismo.

O ministro Alexandre de Moraes, do STF, acolheu o pedido de prisão de seis homens e concedeu mandado de busca e apreensão contra 16 envolvidos, incluindo Jair Bolsonaro. Entre os presos, estão o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens e nome de absoluta confiança do ex-presidente da República; João Carlos Brecha, secretário de Governo de Duque de Caxias, terceiro município mais populoso do Estado do Rio; e Ailton Barros, advogado, major reformado do Exército e autoproclamado Zero Um de Bolsonaro.

Em diálogo com Cid, Barros disse que sabe quem mandou matar a vereadora Marielle Franco, assassinada com o motorista Anderson Gomes em 2018. Os autores — os ex-PMs Ronnie Lessa (já condenado em segunda instância por tráfico internacional de armas) e Élcio Queiroz — estão presos e aguardam julgamento. Mandante e motivo seguem desconhecidos. A PF vai agora investigar se a declaração de Barros, completamente ignorada pelo militar da ativa e servidor do Planalto, foi bravata ou é consistente. Sendo verdadeira, ele teria também prevaricado.

Brecha é secretário em Caxias desde 2017. Trabalhou com Washington Reis, que comandou a cidade por três vezes, e agora com Wilson Miguel, sucessor e tio do ex-prefeito, cuja candidatura a vice-governador foi indeferida pelo TRE-RJ e que hoje é secretário de Transportes de Cláudio Castro, reeleito no ano passado. Todos bolsonaristas. Segundo a PF, Brecha fazia as inserções indevidas no sistema do Ministério da Saúde. Ao longo de 2022, foram mais de 60 registros. No despacho, o ministro Moraes diz:

— A conduta se apresenta ainda mais grave pelo fato de permitir que os beneficiários não vacinados se passassem por indivíduos imunizados e, com isso, infringissem as medidas sanitárias relacionadas à pandemia da Covid-19, colocando em perigo a coletividade, tanto no Brasil quanto no exterior.

O relatório final da CPI da Covid-19, de 2021, identificou 29 tipos penais e sugeriu indiciamento de 66 pessoas. Bolsonaro foi acusado pelo relator Renan Calheiros de nove crimes: prevaricação, charlatanismo, epidemia com resultado morte, infração a medida sanitária preventiva, emprego irregular de verba pública, incitação ao crime, falsificação de documentos, crime de responsabilidade e crimes contra a humanidade. No caso dos certificados, a PF identificou seis: infração de medida sanitária, associação criminosa, falsidade ideológica, uso de documento falso, inserção de dados falsos em sistema de informações e corrupção de menores. Duas filhas de Mauro Cid e a mais nova de Bolsonaro também foram certificadas por vacinas que não tomaram em Duque de Caxias.

O Brasil perdeu pelo menos 701 mil habitantes na pandemia. Metade das mortes não teria ocorrido, houvessem sido respeitadas medidas sanitárias, houvesse pressa na compra e aplicação das vacinas. A CPI comprovou o descaso na compra de imunizantes. Bolsonaro promoveu aglomerações, debochou de doentes, recomendou medicação ineficaz. Pregou contra a vacinação, até de crianças; defendeu a liberdade de não se imunizar.

Até hoje diz que não se vacinou nem à filha, de 12 anos. Mas foi emitido, de forma fraudulenta, o certificado que lhe daria acesso a qualquer localidade que exigisse o esquema vacinal jamais cumprido. Pode ser responsabilizado por ato semelhante envolvendo uma criança, enquanto, sem pudor, discursava em nome da família, de Deus e da pátria. Sem respeitar nenhum dos três.

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