Freira, pastora e doutora: quem são as cristãs a favor do aborto no Brasil

FONTEUniversa, por Denise Meira do Amaral
A pastora da igreja Cristã de Brasília Wall Moares Imagem: Arquivo pessoal

O caso da menina de dez anos que engravidou após ser estuprada e teve de enfrentar uma jornada, do Espírito Santo ao Recife, para conseguir interromper a gestação levou dois grupos a protestar na frente do hospital onde o procedimento legal aconteceu.

De um lado, estavam os ditos religiosos, que se manifestavam contra o aborto. Do outro, um grupo mais “secular” defendia que a menina tivesse a gravidez interrompida como lhe era de direito.

A polarização da cena, no entanto, esconde um lado mais cheio de nuances do debate: o das mulheres que, mesmo ligadas a grupos religiosos e desempenhando funções de destaque em suas igrejas, apoiam o direito ao aborto.

“A descriminalização do aborto é uma questão de justiça social. No Brasil, se uma mulher tem dinheiro, encontra várias clínicas de aborto. Agora, como faz uma mulher que mal tem dinheiro para comer e para pagar a conta de luz?”, questiona a freira Ivone Gebara, feminista, filósofa e integrante da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, que luta pela autonomia da mulher perante o seu próprio corpo.

No Brasil, o aborto é permitido em três condições: estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia do feto. Até os 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já fez um aborto. Entre as que abortaram, 67% têm filhos e 88% declaram ter religião.

A maioria dos abortos foi feita por católicas, seguidas de protestantes e evangélicas e, só então, por mulheres de outras religiões ou sem religião, de acordo com pesquisa realizada pela Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, em 2016.

“É preciso deixar claro que ninguém quer fazer o aborto. A gente quer é que essa mulher não vá parar em um presídio [por fazer aborto ilegal] que já está lotado de mulheres negras”, diz a pastora Wall Moraes, militante do Movimento de Mulheres Evangélicas do Brasil e do movimento negro.

Assim como a freira Ivone e a pastora Wall, Universa conversou com mais quatro mulheres que não veem conflito entre suas crenças religiosas e a militância pelo direito ao aborto legal e seguro.

Wall Moares, 62, pastora da igreja Cristã de Brasília e membro do Movimento de Mulheres Evangélicas do Brasil 

“Sou pastora protestante neopentecostal há 20 anos e já perdi a conta de quantas mulheres me procuraram desesperadas atrás de um aborto clandestino. Algumas, e digo isso com grande tristeza, acabaram perdendo a vida. Testemunho há 20 anos essa dor e esse sofrimento.

A violência dentro das organizações religiosas protestantes pentecostais é tão contundente —elas ouvem três vezes por semana, nos cultos, que precisam ser submissas, que quem dá a última palavra é o homem— que elas acabam tendo essa repressão reforçada. Acabam não contando para ninguém que desejam fazer um aborto.

Muitas já chegam passando mal, depois de ter feito, e a gente precisa levar às pressas para um hospital. Aí começa outra briga, como aconteceu com a menina no Espírito Santo. Tem médicos que se dizem cristãos, mas não atendem quando elas precisam.

A nossa luta é pela descriminalização do aborto. E não é fácil debater esse tema com mulheres evangélicas. É preciso deixar claro que ninguém quer fazer o aborto, a gente quer é que essa mulher não vá parar em um presídio, que já está lotado de mulheres negras.

Nas organizações religiosas pentecostais e neopentecostais, a maioria é de mulheres negras. E somos também as principais usuárias do SUS, para quem é negado o atendimento em caso de complicações após um aborto clandestino.

Como até então só havia homens brancos e ricos ocupando esses espaços [de poder] nas igrejas, eles falavam que a gente era herege, louca e encrenqueira. Mas agora nós, do Movimento de Mulheres Evangélicas do Brasil, estamos trazendo um contraponto. Esse movimento surgiu há alguns meses, após um clipe da cantora gospel Cassiane romantizar a violência contra a mulher, sugerindo que a única providência seria orar.

Esse vídeo disparou os gatilhos em nós, mulheres evangélicas. Nosso objetivo é criar propostas de empoderamento de mulheres, pleiteando a ordenação de mulheres nos mesmo cargos que os homens. E eles ficam apavorados, porque sabem que quem sustenta as organizações religiosas aqui somos nós, mulheres, e, principalmente, as negras.”

Ivone Gebara, 75 anos, freira, filósofa, teóloga e doutora em filosofia e em ciências religiosas 

Ivone Gebara Imagem: Faculdade Unida de Vitória

“Me deparei com a teologia feminista quando era professora em Recife. Comecei a participar das reuniões e a ler muitas coisas. Fiquei mais atenta a como era a vida das mulheres nos bairros populares e me tornei feminista. Quando voltei para São Paulo, na década de 1990, ingressei no Católicas pelo Direito de Decidir e comecei a refletir, com outras teólogas católicas e protestantes, sobre como a sociedade e a Igreja possuem os corpos femininos.

O estado não pode decidir quando podemos interromper ou não uma gravidez, quando podemos tomar anticoncepcional. Há toda uma política em que a vida das mulheres não aparece como prioridade. São homens legislando sobre corpos femininos. Na nossa sociedade, o poder público, o social e o religioso ainda são dos homens.

Quem somos nós para saber o que Deus quer ou não quer? É uma pretensão infundada. No Brasil, se uma mulher tem dinheiro, encontra várias clínicas de aborto para fazer o procedimento. Agora, como faz uma mulher que mal tem dinheiro para comer e para pagar a conta de luz e que precisa do serviço público de saúde? Por isso, a descriminalização do aborto é uma questão sobretudo de justiça social. Porque vivemos em um país desigual.

Até hoje todos os papas foram homens. E é impensável que ele não seja homem na estrutura hierárquica masculina em que estamos inseridos. Mas não basta mudar por uma papisa. Basta ver a nossa ministra da Mulher [Família e Direito Humanos, Damares Alves]… Se a mulher não tiver uma formação crítica e humanista, acaba reproduzindo o mesmo modelo opressor.

Sei que muitas freiras pensam como eu sobre a questão do aborto, mas muitas não têm coragem de expor suas convicções com medo de represálias. Eu recebo emails dizendo: “Obrigada, você falou o que não consigo expressar”. Já o mundo protestante é mais aberto. Você encontra mais pastoras falando sobre o tema publicamente.

O que aconteceu com a menina em Recife foi uma falta de respeito. Ela foi duplamente estuprada: pelo estuprador e pelos fanáticos como essa Sara Winter [a militante de extrema direita Sara Giromini, que divulgou os dados da menina].

Por isso, digo que não basta ser mulher para ser feminista. A Igreja pode até me proibir de entrar em alguns lugares ou não me chamar para dar palestras. Já fui chamada inclusive de boca do diabo. Mas o que me importa é que tenho o apoio de muita gente, de muitas mulheres de todo o mundo.”

Camila Mantovani, 25 anos, cientista social e fundadora da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto 

Camila Mantovani, da Frente Evangélica pela Legalização do Aborto Imagem: Arquivo pessoal

“Nasci e fui criada na igreja. Meus pais era pastores neopentecostais em Volta Redonda, no interior do Rio de Janeiro. Mas sempre tive uma percepção nítida de que aquele ambiente favorecia uma série de injustiças em relação às mulheres.

Foi na faculdade que me deparei com o aborto de perto: tive uma amiga negra e periférica que precisou abortar. Entendi que precisava fazer algo. Comecei meu trabalho conversando com mulheres evangélicas que já tinham passado por essa situação e se sentiam culpadas e depressivas.

Muitos anos depois, decidimos nos organizar enquanto mulheres evangélicas para uma ação mais consistente. Nos encontramos com grandes líderes evangélicos por entender que era importante que tivéssemos um espaço de acolhimento para as mulheres onde elas pudessem falar abertamente sobre as questões ligadas ao sistema reprodutivo e ao aborto.

Foi aí que nasceu a Frente Evangélica Pela Legalização do Aborto, com quatro meninas, em 2017. Fomos super bem recebidas pela minha igreja. Tivemos um dia todo de debates e, no final, a igreja assinou um documento que endossava nosso pedido de descriminalização do aborto.

A gente precisa entender que criminalizando o aborto, quem é criminalizado é a mulher e não o aborto. São sempre as pobres e as negras as criminalizadas. Elas enfrentam sérios problemas de saúde e chegam até a perder a vida por conta de um aborto ilegal, clandestino e inseguro. Ser a favor da manutenção de uma lei que reforça os privilégios de classe é um recado claro da sociedade em mostrar o racismo quem tem.

Por conta da exposição das redes sociais, após a criação da Frente, passei a sofrer perseguições. Começaram a me intimidar na minha rua, inclusive com armas. Recebia bilhetes como: “Se você não valoriza a vida por bem, vai valorizar por mal”. Por conta disso, deixei o Rio no ano passado e me exilei na América Central. Mas ainda acho que, no final das contas, nosso propósito é muito maior do que o medo. Só por isso continuo.

O que aconteceu com a menina em Recife foi criminoso. Essas pessoas deveriam deixar claro que esse discurso pró-bebês é fachada. Porque a vida de uma criança, a menina de dez anos, no caso, não valia nada. É uma fé tão focada no céu, nesse lugar distante e imaginário, que se esquecem completamente do chão em que pisam, da realidade concreta. A fé não calcada na realidade perde o sentido. O evangelho é o anúncio das boas novas para quem está sendo oprimido. E, se a igreja não demonstra isso, ela perde seu propósito.

Cris Serra, 46 anos, psicóloga, doutoranda em saúde coletiva pela UERJ e coordenadora da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+ 

Cris Serra, coordenadora da Rede Nacional de Grupos Católicos LGBT+ Imagem: Arquivo pessoal

“Aprendi a rezar com a minha avó, estudei em colégio religioso, fiz primeira comunhão, crisma e tal. Meus primeiros conflitos com a igreja foram por conta da minha sexualidade. Minha primeira grande paixão foi pela minha melhor amiga, aos 18 anos. Hoje me considero uma pessoa não binária e já não me identifico com meu nome de batismo.

A minha militância começou em grupos de católicos LGBT. Atualmente, coordeno a Rede Nacional de Católicos LGBT e foi por esse grupo que meu caminho se cruzou com as Católicas Pelo Direito de Decidir. Nossas estratégias para lidar com os conservadorismos religiosos são bem parecidas. Foi com essa leitura que me deparei com as mulheres que precisam ou querem interromper uma gravidez. A pergunta sobre o aborto é feita de maneira equivocada. Se você perguntar: “Você é a favor do aborto”? Todo mundo vai dizer que não. Mas se você perguntar: “A mulher que abortou merece ser presa”? Claro que as pessoas acham que não.

Essa menina do Espírito Santo passou por um pesadelo. As mulheres que sofreram violência precisam de acolhimento. Dar o bebê para a adoção é acolhimento? Para mim, é empilhar mais uma violência em cima de uma montanha de violências que essa menina já sofreu. É uma distorção do que seja misericórdia e caridade.

Algumas pessoas falaram que a menina de dez anos deixou por tantos anos porque gostava. A mulher sempre está fazendo a coisa errada. A culpa é tão entranhada, esse lugar de inferioridade é tão forte, que as meninas desde pequenas acham que estão fazendo algo de errado. É muito comum a vítima de estupro se sentir responsável pelo que aconteceu com ela. E a sociedade reforça isso. É sempre: ‘também, olha onde ela estava, a roupa que ela usava, com quem ela estava. Tem sempre um também.

Dentro do catolicismo, as mudanças vêm acontecendo. As igrejas estão imersas na sociedade. Assim como existem grupos que se valem de uma linguagem religiosa para reforçar poderes já existentes, existem outros que encontram na Igreja valores éticos que mobilizam um mundo mais justo. Temos uma teologia feminista riquíssima, principalmente na América Latina. Deus é amor e ele só quer uma coisa: que a gente seja feliz -e nesse mundo, agora. A luta é por uma Igreja que pregue o fim das injustiças e que fique do lado dos discriminados.”

Lusmarina Campos Garcia, 56, pastora da igreja luterana e doutoranda em direito pela UFRJ 

A pastora da igreja presbiteriana e doutora pela UFRJ Lusmarina Campos Garcia Imagem: Arquivo pessoal

“Quando fui estudar teologia em Dourados, no Mato Grosso do Sul, lembro do reitor me dizer: ‘Minha irmã, você sabe que não ordenamos mulheres? Por que não vai estudar música ou educação religiosa?” Ali nascia uma semente de luta para que nós não ficássemos em posições diferentes na formação acadêmica. Em 1987, comecei a me aproximar da igreja luterana e, dez anos depois, me tornei pastora.

Passei um tempo pesquisando em uma zona de prostituição e pude notar ainda mais a sociedade machista, patriarcal e misógina em que estamos inseridas. Na medida em que fui me aprofundando nessas temáticas, percebi como a teologia cristã é construída de maneira a cercear os espaços das mulheres.

Em 2018, participei de um debate sobre aborto no STF como representante do ISER (Instituto de Estudos Religiosos). Foi minha primeira grande exposição pública a favor da descriminalização do aborto.

Houve uma repercussão imensa: de um lado, muitas pessoas me apoiando, mas também um grupo muito grande de pessoas contrárias e muito violentas. Recebi inclusive ameaças de morte e precisei entrar em um programa de proteção a defensores de direitos humanos.

No vídeo, eu cito dois textos do Antigo Testamento que falam sobre o aborto, e em nenhum deles ele é considerado pecado. O que existe é uma manipulação hermenêutica da Bíblia, um erro. Mesmo o mandamento que diz ‘Não matarás’ não é universal. Porque você podia matar mulheres adúlteras, inimigos estrangeiros… Tinha uma série de pessoas ‘matáveis’. Como os textos são muito antigos, eles precisam ser lidos à luz de seu contexto.

Quando fiz esse pronunciamento, o presidente da minha igreja na época fez uma nota dizendo que eu não falava em nome da igreja, que eles não defendiam o aborto. Foi uma pressão das forças conservadoras. Mas cerca de 50 outras organizações me apoiaram.

Mesmo nos casos em que o aborto é permitido, o serviço público não faz da maneira como deveria. As mulheres não são acolhidas, são colocadas sob suspeita de que o que estão narrando não é real e, muitas vezes, acabam sendo presas. Por isso, elas preferem se arriscar em meios perigosos para não ir ao hospital. O índice de mortandade de mulheres por conta de abortos inseguros é enorme. A descriminalização é importante para que possamos ter uma sociedade mais saudável e democrática.

Tivemos uma reunião por conta do caso da menina estuprada no Espírito Santo com várias organizações e coletivos de mulheres e redigimos uma carta em que dizemos que não vamos nos calar diante dos abusos do patriarcado da tradição cristã.”

Letícia Lopes Rocha, 38 anos, mestre em ciências da religião a e uma das coordenadoras do Católicas Pelo Direito de Decidir 

Letícia Lopes Rocha, coordenadora do Católicas Pelo Direito de Decidir Imagem: Arquivo pessoal

“Minha família toda, no norte de Minas Gerais, era católica. Tive a infância e a adolescência permeadas pelas atividades no espaço da igreja. Por alguns anos cheguei a ser consagrada em um instituto secular, o que quer dizer que tinha votos de castidade, pobreza e obediência. E, assim como as freiras, não poderia me casar.

Quando entrei na universidade de ciências da religião, passei a questionar o lugar da mulher na Igreja. Meu trabalho de conclusão foi uma comparação entre a sexualidade das mulheres católicas e a das mulheres de umbanda, porque me chamava a atenção a forma repressiva com que a Igreja lidava com a sexualidade.

Eu, enquanto mulher negra, periférica, religiosa, vindo dessa estrutura patriarcal e machista, fui precisando desconstruir esses aportes, até chegar à questão da interrupção da gravidez. Em 2016, recebi um convite para integrar o grupo Católicas pelo Direito de Decidir.

Entendi então o que representa o aborto para a maioria das mulheres, porque, mesmo para mim, por muitos anos, era um pecado. Fui vendo os números exorbitantes de abortos que eram realizados no Brasil e de mulheres que tinham suas vidas ceifadas em razão de procedimentos clandestinos. Entendi que o aborto não deveria dizer respeito a nenhum credo religioso porque ele compete somente a um campo: o das políticas públicas. Nenhuma religião deveria legislar sobre o corpo das mulheres.

Tem uma fala da [feminista italiana] Silvia Federici de que eu gosto muito: para ela, o aborto é nada mais do que um acidente de trabalho, tendo em vista o papel da mulher dentro de uma sociedade patriarcal, capitalista, onde o sexo é parte do trabalho das mulheres em satisfazer os homens.

Vivemos em um país em que ser mulher já é perigoso. Somos mortas por sermos mulheres. Basta ver os números de estupro, de violência doméstica, de feminicídio, de violência sexual infantil. Por isso, a minha luta é pelas mulheres. Queremos a vida em todos os sentidos. Queremos todas as mulheres vivas.

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