Gays derrubam preconceito e conquistam aceitação em favelas

Definitivamente, revelar uma opção sexual ao mundo não é fácil. Imagine, então, sair do armário numa comunidade controlada pela mão pesada do tráfico ou das milícias e onde a religião, muitas vezes, dita normas de conduta. O anúncio pode detonar um rastilho de deboches, constrangimentos e humilhações diversas. Quem, num passado recente, enfrentou essa situação tem viva na memória as marcas da discriminação. Mas, felizmente, a questão da diversidade parece vir trilhando um novo caminho, no qual o respeito dá um tom de cordialidade às relações. Exemplos não faltam. Em Rio das Pedras, na Zona Oeste bomba um pub frequentado pelo público LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros). E olha que a comunidade é um reduto cabra-macho, sim senhor. Juntamente com a Rocinha, a favela é um dos destinos preferidos dos nordestinos que vêm morar no Rio.

Nos bailes da periferia também há novidades positivas. Oriundos de Cinco Bocas, uma favela de Brás de Pina, cinco jovens estouraram no Youtube com o grupo funk Bonde das Bonecas. Um dos vídeos teve mais de três milhões de visualizações em dois meses. Na comunidade viraram ídolos e trouxeram novo visual para o figurino do batidão. Eles sempre se apresentam com as cores do arco-íris.

— A gente se orgulha de nosso trabalho ajudar a diminuir o preconceito. Se éramos olhados de lado, agora pedem para fazer fotos com a gente. — diverte-se Rafael Cullen , de 19 anos, dançarino do Bonde das Bonecas.

Tornar-se celebridade local pode ser o passaporte para a aceitação pública. Mas nem sempre foi tão tranquilo assumir uma opção sexual na favela. A história de Ronides dos Santos, de 22 anos, nascido e criado no Morro do Andaraí, é emblemática. Com 15, trocou as roupas masculinas por femininas. Transição difícil. Expulso de casa pelo pai, acabou adotado por uma família da comunidade, que também tinha um filho gay, o amigo-irmão Marcinho. O passado difícil ficou para trás e hoje Ronides é famosa no Andaraí. Adotou o nome artístico Bey Brasil e faz shows como cover da cantora Beyoncé com Marcinho, de 18:

— Quando me assumi mulher, eu era uma aberração por aqui. O tráfico chegou a tentar me impedir de usar roupas de mulher e ameaçou me bater, mas hoje, graças ao meu trabalho, sou respeitada.

Ela teve uma figura fundamental nessa mudança: Carlinhos do Salgueiro, também criado no Andaraí. Ele mantinha uma academia de dança no morro, onde se matriculavam, segundo ele, todos os meninos que não tinham coragem de sair do armário.

— Na minha geração, era muito mais difícil se assumir gay. Para mim, principalmente, pois meu irmão era traficante. Ele fingia não saber. Ninguém tinha coragem de fazer nada contra mim. Só que eu não podia me revelar. O jeito foi escapar para a arte. Aprendi dança e montei uma escola. As pessoas viam meu jeito e diziam: “Ah, ele é artista”. A academia virou algo libertador para os meninos sem coragem de se assumir. O problema é que começaram a achar que eu era responsável por alunos virarem gay. Ao contrário, eles é que ainda não tinha saído do armário porque ser bicha não é algo que se pegue — brinca ele, outra celebridade do pedaço e do mundo das escolas do Grupo Especial.

Comportamento mais tolerante serve de inspiração para filme

A visibilidade dessa população chamou a atenção do cineasta Rodrigo Felha. Ao gravar um vídeo na Cidade de Deus, no ano passado, ele se impressionou com a quantidade de homossexuais no torneio local de queimado. Surgia aí, em parceira com Cacá Diegues, o documentário “Favela gay”, previsto para estrear no fim do ano.

— O que antes parecia invisível, como a opção sexual, ganha tolerância — diz Rodrigo.

Para a doutora em Antropologia Laura Moutinho, professora da USP, o fato de as favelas serem vítimas do preconceito do chamado asfalto não faz com que as relações internas se tornem mais tolerantes. Autora de dois trabalhos sobre orientação sexual, feito na Maré e outro em Rio das Pedras, ela observou ainda um grau maior de invisibilidade das mulheres homossexuais:

— Ser preconceituoso não é domínio desta ou daquela classe social. Você pode ser discriminado numa situação e exercer o preconceito em outra. E as lésbicas são menos visíveis na sociedade de modo geral.

Na vida do cabeleireiro Fabiano dos Santos, de 37 anos, o termo humilhação atingiu um novo patamar. Quando adolescente, foi expulso de casa por ser gay. Perambulando e fazendo biscates, ele foi parar numa favela na Zona Norte, onde o chefe do tráfico, após uma sessão pública de espancamento, o expulsou da área.

— O traficante, que tinha mulheres e filhos, quis fazer um programa, mas não topei. Foi o estopim para ele me humilhar. Fiquei calado por amor à vida — diz Fabiano, acolhido, há 12 anos, por amigos gays de Rio das Pedras.

Nesse grupo numeroso de Rio das Pedras faz parte também a travesti nordestina Edna Mattos (nascida Ednaldo), de 23 anos. Há sete anos, ela deixou a família no Ceará, quando descobriu que não podia se comportar como homem. Desde 2010, adotou um visual feminino:

— Ando vestida de mulher. No máximo, ouço um comentário isolado.

Outro reduto nordestino, a Rocinha é o endereço de Marco Aurélio da Silva, desde que nasceu, há 34 anos. Aos 15, teve uma briga homérica com a mãe ao admitir que era gay. Aos 20 anos, ele se tornou Martinha e passou. Passada mais de uma década, ela mantém vivos na memória dois episódios humilhantes:

— Na época, havia aqui um grupo de travestis. Ninguém se tornava gay sem a aceitação dele. No meu batismo de iniciação, me atiraram num valão de esgoto. Em outra ocasião, saí de casa arrumada, quando um grupo de homens atirou frutas podres e caixotes em mim.

Banheiro LGTB

Saia justa para Martinha hoje é ir ao banheiro fora de casa. Feminino ou masculino? O avanço veio da quadra da Acadêmicos da Rocinha, que criou o banheiro LGBT. Sinal dos tempos.

Novidade vem também de Rio da Pedras, onde funciona o badalado Energy Pub, frequentado por drag queens e transgêneros. Com status de único point gay numa favela carioca, o Energy oferece, em dois ambientes, diversão variada. Para abrir as portas há três anos e ter as bênçãos da associação de moradores, a dona do Energy, Edna Brum, heterossexual e com tino empresarial, e o marido, Edson, firmaram um compromisso. A casa não poderia permitir drogas, promiscuidade, presença de menores e brigas. O público, apesar de espalhafatoso, respeita as regras da casas e se diverte como se não houvesse amanhã.

 

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Fonte: Globo

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