Em 21 de março de 1960, mais de 20 mil sul-africanos protestavam pacificamente contra a Lei de Passe, instaurada pelo regime segregacionista apartheid e que determinava a obrigatoriedade de negros portarem uma caderneta (um instrumento de controle estatal) na qual constava onde eles poderiam ir, a cor, a etnia e a profissão. Nesta data, a manifestação pacífica em Shaperville, província de Gautung, terminou em uma violenta repressão pelo Estado sul-africano que matou 69 pessoas e feriu 189. Em 1966, em memória às vítimas do massacre, a ONU determinou o 21 de março como o Dia Internacional contra a Discriminação Racial.
Geledés – Instituto da Mulher Negra em memória ao Dia Internacional de Discriminação Racial lança sua campanha de combate ao genocídio da juventude negra #Memóriatemcor, para sensibilizar o País contra a “naturalização” da matança de jovens negros. É um alerta máximo, um chamado para que brasileiras e brasileiros, independente de sua cor, se conscientizem sobre esse fenômeno de invisibilidade social.
#Memóriatemcor recupera as ações realizadas por Geledés na denúncia do genocídio da população negra perpetrado pelo Estado brasileiro. Dialoga também com diversas ações e produções dos movimentos negro, feminista e de direitos humanos.
Queremos que pessoas não negras compreendam a gravidade de uma questão que ocorre em diferentes capitais do Brasil. É necessário que as pessoas que não compactuam com a situação se juntem à denúncia da situação alarmante que coloca a população negra, e em particular jovens negros, em constante situação de risco.
Os massacres contínuos cometidos pelo Estado contra os jovens negros seguem numa espiral crescente e quem os comete segue impune. As estatísticas são evidentes: a cada 23 minutos morre um jovem negro no País, como informa o Atlas de Violência do Brasil de 2019. Um relatório alicerçado em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, destaca que apenas em 2019, 75% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras, maior índice registrado na última década, deixando claro que a violência contra negros e negras não para de crescer.
Segundo dados da ONU também divulgados em 2019, de cada mil jovens, quatro serão assassinados antes de completarem 19 anos. Se não houver providências urgentes contra essa matança, a projeção é de que teremos o extermínio de uma geração: 43 mil jovens, entre 12 e 18 anos, serão assassinados no período entre 2015 e o final de 2021, sendo que três vezes mais negros do que brancos.
Um recorte relevante nas estatísticas se refere às jovens negras. De acordo com o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência 2017, as jovens negras entre 15 e 29 anos têm 2,19 vezes mais chances de serem mortas no Brasil do que as brancas na mesma faixa etária. Nesse sentido, o Atlas da Violência de 2017 mostrou que entre 2005 e 2015 a taxa de homicídios de mulheres brancas teve redução de 7,4%, enquanto a taxa de mortalidade de mulheres negras aumentou em 22%.
As agressões contra a população negra no Brasil ocorrem desde a infância: dados do UNICEF indicam que entre 2014 e 2018, apenas na cidade de São Paulo, os agentes policiais mataram 580 crianças e adolescentes, o que daria 12 menores por mês, como informa a TV alemã Deutche Welle, em reportagem de junho de 2019, sob o título “Em São Paulo, crianças e adolescentes na mira da polícia”.
Existem inúmeras formas de violência racial no Brasil, mas sem sombra de dúvida a mais extrema é o genocídio em pleno século XXI. Essa matança é sustentada por dois pilares: o racismo estrutural e o racismo institucional que permeiam a sociedade brasileira e suas instituições.
Talvez a maior perversidade contra o povo negro esteja justamente nas instituições de Segurança Pública, herdeiras de dois sistemas marcantes que determinaram os rumos da história do País: a escravidão e a ditadura. E como destaca o antropólogo e ex-secretário de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, “o sangue negro corre dos dois lados”, porque muitos dos policiais que morrem, principalmente nas disputas entre facções do crime, são negros.
As ações de Geledés
Geledés, em seus 31 anos de combate ao racismo, vem realizando inúmeras ações efetivas para estancar a matança de jovens negros e negras. “Quando falamos de genocídio contra a população negra estamos nos referindo à complexa estrutura arquitetada pelo Estado brasileiro, desde sempre, no sentido de aniquilar corpos negros, desde uma política eugenista de branqueamento até encarceramento e assassinatos em massa. A completa negação da possibilidade de incorporação dessa parcela da população no status de cidadãos, cidadãs”, diz a presidente da organização Maria Sylvia de Oliveira.
Entre os primeiros programas desenvolvidos por Geledés no enfrentamento desta questão está o programa SOS Racismo, de assistência legal para vítimas de racismo. Entre os casos atendidos pelos advogados do SOS Racismo, está o dos jovens Elias, Sidney e David, que frequentavam o projeto Rappers do Geledés. Em 1998, eles foram alvejados por policiais de uma viatura na rodovia Dutra ao voltar do Rio de Janeiro para São Paulo, após uma apresentação.
Como relata o advogado de Geledés Rodnei Jericó, “assustados, eles imprimiram maior velocidade no carro, que foi alvejado nos pneus e colidiu em uma coluna de viaduto da rodovia. Sidney recebeu um tiro em uma das pernas, e os outros dois amigos só não foram alvejados por pura sorte ou desejo divino, pois foram 14 tiros no veículo”. Os agentes policiais alegaram, como sempre, abordagem de suspeitos de criminalidade. O inquérito policial não andou, no entanto, o SOS Racismo abriu procedimento administrativo na corregedoria da policia federal rodoviária. Após todos esses anos, o processo foi julgado em agosto de 2019, condenando a União ao pagamento de indenizações.
Outro caso atendido pelo SOS Racismo é de 2008, quando André, funcionário de uma loja, saiu do trabalho à meia-noite para sua casa com outras duas colegas em um táxi, na zona sul de São Paulo. As duas jovens foram deixadas em casa antes dele e, na Avenida Cupecê, ao passar ao lado de uma viatura da polícia civil de SP (do GOE), os agentes suspeitaram que André estivesse assaltando o taxista. Os policiais abordaram o táxi e exigiram que ele descesse. André foi obrigado a deitar-se no chão e ao fazer isso, os policiais fizeram dois disparos que atingiram sua perna. O taxista desceu do carro gritando, alegando que André era cliente. Os policiais perceberam o erro e mandaram o taxista levar André para o Hospital Saboia. Mas não desistiram dele e foram até o hospital para tentarem removê-lo a força. Foram impedidos pela enfermeira que exigiu ordem judicial para a liberação do paciente.
O SOS Racismo abriu inquérito policial e processo administrativo na corregedoria da Polícia Civil. Os policiais foram penalizados apenas com a realização de serviços administrativos. Porém, em paralelo, os advogados de Geledés abriram uma ação contra o Estado de São Paulo. No final de 2018, uma década após o ocorrido, o Estado paulista foi condenado a indenizar André.
#Memóriatemcor
A campanha #Memóriatemcor destaca que não é possível mais compactuar com o extermínio da população negra. Está mais do que na hora de denunciar essa situação alarmante de um povo que se encontra em permanente situação de risco. As vítimas dessa tragédia possuem rostos, identidades, famílias e o impacto não é apenas para quem perde um ente querido, mas para a sociedade brasileira como um todo. Especialmente neste momento em que comunidades inteiras, majoritariamente negras, se encontram à mercê de uma pandemia por ação ou omissão do Estado, a outra face do genocídio.
Neste sentido, convidamos cada uma e cada um a se juntarem em uma luta que é das mais justas – é pelo direito à vida!
Veja aqui o resultado da campanha! É uma luta de todos