#GeledésnoDebate: “O racismo é preponderante para a perpetuação do feminicídio”

O Portal do Geledés inicia a partir deste domingo (10), a coluna GELEDÉS NO DEBATE em que um/ uma convidado (a) discute as principais temáticas da semana.

Nossa primeira entrevistada é Débora Prado, jornalista da Agência Patrícia Galvão e uma das participantes do Dossiê Femininicídio.

Débora aprofunda a discussão sobre dois temas que chamaram atenção na questão de gênero: 2018 deverá ser o ano mais violento na história do México e o Atlas da Violência 2018, divulgado na terça-feira 5, em que aponta diferença de 71% na taxa de homicídios entre mulheres negras e não-negras e ainda aponta Roraima como o Estado mais letal para mulheres e meninas.

Débora aprofunda a discussão sobre dois temas que chamaram atenção na questão de gênero (Foto: Luciana Araujo/Agencia Patrícia Galvão)

Geledés- Se a tendência de aumento de feminicídio continuar no México, o país alcançará o maior índice de casos em sua história. Essa tendência de violência contra mulheres pode se verificar também no Brasil? De que forma?

Débora Prado – A questão das estatísticas sobre o feminicídio no Brasil ainda é um grande desafio, uma vez que a tipificação do feminicídio como um crime no Código Penal ainda é recente, de 2015. O poder público não criou, de um modo geral, um banco de dados nacional nessa frente, como recomendam os tratados e convenções internacionais que o país ratificou. Com isso, ainda é difícil saber de forma acurada a quantidade de feminicídios no Brasil e fazer essa comparação no tempo ou mesmo conhecer melhor suas características e os contextos em que ocorrem pra pensar e aprimorar políticas de prevenção. Nesse contexto em que nomeamos recentemente essa morte discriminatória como feminicídio é difícil até mesmo saber se há um aumento de fato ou se já acontecia, mas não era registrado como feminicídio, como decorrente da violência de gênero.

De todo modo, é possível afirmar com base em diversos estudos, com os Atlas da Violência e o Mapa da Violência 2015, que as taxas de mortes violentas de mulheres são alarmantes no Brasil, que elas morrem cotidianamente e que somos um dos países que mais matam mulheres no mundo. Também podemos afirmar que uma parte considerável dessas mortes é evitável, porque acontecem num histórico de violências e em contextos discriminatórios, em que os direitos das mulheres são sistematicamente violados, sem que isso desperte um sentido de urgência em relação ao enfrentamento ao problema e à desconstrução das desigualdades e discriminações pelo poder público e pela população como um todo. Assim o Estado, por ação direta ou omissão, é também conivente com a perpetuação dessas mortes, que não vão cessar ou mesmo diminuir enquanto não forem garantidos os direitos das mulheres e enquanto a violência de gênero não deixar de ser banalizada.

Também sabemos que a violência letal não atinge todas as mulheres da mesma forma e que o racismo é um fator preponderante para a perpetuação dos feminicídios no Brasil: a mais recente edição do Atlas da Violência, que saiu essa semana, mostrou, por exemplo, que em dez anos, a taxa de homicídio de mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto que a entre mulheres não negras houve queda de 8%. E sabemos muito pouco do peso da LGBTfobia nos números disponíveis, porque essa questão ainda é invisível, embora saibamos que o Brasil é um dos países que mais mata a população travesti e trans no mundo e que acontecem crimes contra mulheres lésbicas e bis todos os dias.

Geledés- Quais as semelhanças e diferenças do feminicídio entre países da América Latina?

Débora – As mulheres são diversas, como são diversos os contextos em que vivem e sofrem violências tanto na América Latina, como no Brasil. Mas o Mapa da Violência 2015 nos mostrou que, com base nos dados abordados naquele estudo, o Brasil era o 5º país com a mais alta taxa de morte violenta de mulheres a cada 100 mil habitantes e que, entre esses cinco, quatro países eram latino-americanos. Então, isso é uma evidência do impacto do nosso processo histórico na violência de gênero – ou seja, é um indicativo que precisamos compreender melhor como o colonialismo, a violência, a desigualdade, o racismo e o sexismo que, infelizmente, são marcos em nossa história, se relacionam com a violência de gênero e raça que vivemos hoje em dia.

Geledés Existe algum tipo de política pública que seja exemplar em países da América Latina e que possa ser adotada pelo Brasil?

Débora– Seria importante conhecer, além das diretrizes das políticas públicas, o modo como estão sendo materializadas no dia-a-dia das mulheres. Em relação à violência doméstica e familiar, o Brasil tem uma lei que é considerada uma das mais avançadas do mundo pela ONU, a Lei Maria da Penha. Já seria um grande feito se o país avançasse nas políticas públicas para ampliar a efetivação dessa lei.

Geledés – Por que em alguns Estados mexicanos, e o mesmo acontece com o Brasil, como Roraima, por exemplo, há maior reincidência de casos de feminicídio?

Débora– Há diversos fatores que podem gerar essa diferença, seja a ausência ou a maior presença dos serviços voltados à garantia dos direitos das mulheres naquele território, seja a forma como o Estado se apresenta ali (como efetivador de direitos e serviços ou como agente de mais violência), sejam as normas discriminatórias que vigoram ali ou não ou até mesmo uma questão de registro, de que um Estado pode registrar mais acuradamente os feminicídios do que outros. Com isso, é importante olhar cada caso e pensar o enfrentamento à violência em contextos específicos, considerando o cotidiano das mulheres que vivem ali. Nesse sentido, a Human Rights Watch fez um estudo recentemente em Roraima, Estado apontado como o mais letal para mulheres e meninas no Brasil. Acho que esse é um estudo muito interessante pra tentar entender um pouco essa desigualdade regional no caso brasileiro.

GeledésEstamos em ano de eleições. Qual proposta um candidato deveria levar em conta como plataforma no combate ao feminicídio?

Débora – O Brasil conta com boas legislações para enfrentar as violências contra as mulheres, como a Lei Maria da Penha, como já dito acima, e ainda as convenções internacionais, como a Convenção de CEDAW e de Belém do Pará, que o país ratificou. Existem ainda melhoras que podem ser feitas em termos de legislação, mas acredito que, de um modo geral, o que precisamos com urgência são de políticas públicas para materializar esses direitos no dia a dia das mulheres brasileiras, considerando toda nossa diversidade. Precisamos de compromisso, de prioridade política e orçamentária para ampliar e fortalecer a rede de atendimento às mulheres. Precisamos de um compromisso sério de enfrentamento ao racismo institucional nas mais diversas esferas do Estado. Precisamos considerar a diversidade das mulheres e das situações vividas na formulação de políticas públicas, que, como mostram os dados de mortes violentas do Atlas e de outros estudos anteriores, não estão funcionando da mesma forma para mulheres negras e brancas, por exemplo. E, por fim, precisamos que as mulheres sejam protagonistas desse processo, de um modo que tanto tenhamos mais mulheres, em sua diversidade, eleitas e nos espaços de poder e decisão, como que quem ocupa esses espaços mantenha diálogo com a sociedade civil organizada e com os movimentos, que já acumulam muitos saberes e práticas no sentido de efetivar os direitos das mulheres e enfrentar as mais diversas formas de violência.

Dossiê Feminicídio #InvisibilidadeMata (Divulgação)

Geledés – O que as pessoas precisam saber sobre feminicídio que ainda não sabem?

Débora– Acredito que é importante dizer que as violações aos direitos das mulheres acontecem todos os dias, que acontecem violências e discriminações que podem sim chegar ao extremo da letalidade. Precisamos quebrar essa invisibilidade e entender que esse é um problema complexo que demanda ações em múltiplas frentes e que o feminismo e a perspectiva de gênero e raça são muito necessários. No Instituto Patrícia Galvão o Dossiê Feminicídio #InvisibilidadeMata, que tenta sistematizar algumas questões importantes nesse debate e que reúne a avaliação de diferentes fontes que lidam diretamente com esse problema, trazendo também documentos e dados disponíveis nessa frente. Esse dossiê pode ser acessado online pelo endereço: www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossies/feminicidio. E é importante lembrar ainda que os dados são alarmantes, mas que precisamos pensar que cada vida importa, que essas mulheres que morreram em contexto evitáveis poderiam estar conosco hoje, que há ali uma trajetória interrompida e que é importante também contar a história de vida dessas mulheres.

O Estado, por ação direta ou omissão, é conivente com a perpetuação das mortes de mulheres, que não vão cessar ou mesmo diminuir enquanto não forem garantidos os direitos das mulheres e enquanto a violência de gênero não deixar de ser banalizada.

GeledésO Geledés lançou o aplicativo JUNTAS no combate a violência contra a mulher. Como esse tipo de iniciativa faz a diferença para mulheres em situação de vulnerabilidade?

Débora– É muito importante iniciativas como o JUNTAS, que vem de uma instituição com tanta experiência no enfrentamento à violência de gênero e ao racismo. Todo esse acúmulo do Geledés é refletido e está presente no modo como o aplicativo foi desenhado – o que pode fazer com que seja muito efetivo no cotidiano das mulheres em situação de violência, porque foi pensando por mulheres e para mulheres, considerando a importância do acesso à informação, do apoio e do acolhimento, e considerando ainda a importância da rede e de uma ação coletiva para promover proteção e empoderamento. É importante disponibilizarmos tecnologias e iniciativas que sejam pensadas e construídas a partir desse tipo de premissa, por uma organização de mulheres negras que é histórica na luta às violências, ainda mais num país em que a maior parte das políticas públicas e espaços de poder contam ainda com tão pouca diversidade.


Katia Mello – Jornalista 
Mestrado em Estudo Africanos pela University of Birmingham (Inglaterra)

Leia Também:

Feminicídio 

Feminicídios em Teresina já ultrapassaram todos os casos de 2017 em mais de 30%

-+=
Sair da versão mobile